Naquele sábado, Renata acordou irritadiça e preguiçosa. Tomou café da manhã já pensando que não ia fazer almoço. Vou comer lá no shopping, pensou ela.
Saiu para dar uma caminhada pelas praças da região, refletindo. Depois das flores da segunda-feira, não tinha falado com Bernardo. Estava indo antes do trabalho à academia e ele parecia ter entendido o limite dela, pois, mesmo tendo seu telefone, não havia entrado em contato. Apesar da proximidade, também não haviam se cruzado.
Comida saudável…, enquanto caminhava, Renata não se desligava da matéria que estava escrevendo. Viu uma mãe enchendo uma mamadeira com refrigerante e dando a um bebê com menos de dois anos. Ficou ainda mais contrariada. Isso é um ponto. O exemplo de casa, como essa geração encara o alimento. O papel da indústria, da publicidade. Ninguém vê comercial de laranja ou banana na televisão, apenas de salgadinhos e outras porcarias. O quanto as pessoas não buscam informações de fontes seguras e creem justamente em quem quer vender. Claro que preciso entrevistar nutricionistas. Quem mais? Pediatras? Mães e pais?
Depois de uma hora na rua, ela voltou para casa e tomou um banho. Vestiu uma blusa de tricô justa roxo escuro, com gola alta, um casaco que ia até a coxa, uma minissaia com meia-calça térmica e um par de botas, todos pretos. Foi de carro para o shopping.
Passeou pelas lojas. Na livraria, comprou alguns romances quentes, gostava do gênero. Passou em algumas lojas de cosméticos e também abasteceu seus estoques: adorava perfumaria, já quanto à maquiagem, sempre fora partidária do básico.
Depois de uma passadinha na loja de chocolates, onde encheu uma sacolinha com bombons a granel escolhidos a dedo, foi para sua loja de lingerie favorita. Sutiã era uma coisa que usava às vezes, sim, às vezes, não. Em calcinhas, no entanto, era viciada. Pegou uma das suas preferidas, com laterais finas, fio-dental, de renda, pequena. Apesar de seu bumbum avantajado, ou talvez justamente por causa dele, gostava das peças que cobriam pouco. Seus parceiros de cama costumavam concordar.
Lembrou-se de Bernardo. “Que calcinha provocante do caralho, puta que pariu, mulher, eu que sou Satã e você que é toda pecado…”. Com as palavras dele, as sensações de estar em seus braços voltaram tão forte que Renata corou e ficou molhada. Sentiu-se como se qualquer um ali na loja pudesse saber que ela estava excitada. Olhou ao redor, com a pequena peça nas mãos. Escolheu três e foi ao caixa.
Cheia de sacolas, Renata rumou para a praça de alimentação, buscando o conforto de seu restaurante natural preferido. Pediu um filé de frango grelhado ao molho de espinafre, com arroz integral e salada de folhas, tomates e croutons. Para beber, sempre escolhia o suco verde deles, que adorava. Se acomodou cercada por suas sacolas e começou a comer. Gostava de observar os outros enquanto almoçava, e foi assim que viu Bernardo vindo em sua direção. Quase engasgou.
Calça jeans, jaqueta de couro preto com camiseta branca por baixo e tênis, ele caminhava resoluto para sua mesa. Não conseguia ler exatamente sua expressão facial, mas parecia prestes a se ajoelhar à sua frente. Assim que chegou à mesa, sentou-se na cadeira diante dela sem pedir licença.
— Boa tarde, quem te deu permissão pra sentar aí, posso saber? — Renata indagou, em um tom menos ríspido que as palavras que escolheu usar.
Ele suspirou. Que ar era aquele em seu rosto? Arrependimento?
— Boa tarde. Desculpa sentar sem permissão, Rê… Mandei as flores e te pedi desculpa, mas, depois disso… Você continuou me evitando.
Ela seguiu comendo, o encarando com uma sobrancelha erguida. Descansou os talheres e tomou um gole de suco estreitando os olhos, sem desviar o olhar.
— Não tô te evitando. Só tô vivendo minha vida em paz, como sempre vivi.
Ela voltou ao almoço, dando atenção ao prato.
— Olha só, Rê, nunca vou te cobrar ter cuidado de você, não me entenda mal. Mas achei que estávamos construindo uma relação… uma amizade tão bonita, tão gostosa, depois desse período ruim… Não entendo por que não podemos treinar juntos, comer, ver um filme. Juro que curti muito estar com você.
Renata outra vez largou garfo e faca na mesa e olhou nos olhos dele.
— Bernardo, você tá se fazendo de bobo. “Não entendo por que”, “uma amizade tão bonita”... Porque nós já fizemos isso algumas vezes: da sua “amizade tão bonita”, quando menos se espera, estamos fodendo. Não é?
Ele devolvia o olhar, tenso.
— Mas… nas nossas conversas, você disse que não fica sozinha, tem “amizades coloridas”. — argumentou.
— Você vai me fazer deixar minha comida no prato, e eu o-dei-o deixar comida no prato. — reclamou Renata.
— Estou mentindo?
— É isso que você quer de mim, Bernardo? “Amizade colorida”? Olha só, não adianta você vir com seu giz de cera querer colorir uma amizade comigo. Sabe o que acontece? Nós temos o mesmo endereço e isso não é nada propício a uma amizade colorida. Não posso dar toda hora para alguém que está a dez passos da minha porta.
Os dois se entreolharam, em um minuto de silêncio incômodo.
— Por quê? — Bernardo tomou coragem de perguntar.
Eu só podia estar tendo um diálogo como este com uma criança como ele, mesmo, pensou Renata.
— Porque é proximidade demais, Bernardo! Fui sincera com você te dizendo como já me magoei, é esse tipo de amizade que você quer? Saber dos meus traumas e, mesmo assim, mexer na ferida? Poderíamos ter uma amizade em preto e branco, mas, pelo jeito, não conseguimos manter nesse nível.
— Então, dessa vez, você está mesmo cortando relações comigo? — indagou Bernardo, ansioso.
Ela engoliu em seco.
— Por ora, vamos ser apenas vizinhos. Deixa passar um tempo desse último deslize, não seja insistente.
Ele assentiu devagar, se levantando. Ia saindo, mas virou-se e olhou outra vez para ela.
— Sabe, Rê, durante esta semana… Eu senti sua falta. Das conversas, das risadas… De ver seu sorriso. Mas você tem razão. Faremos o que for melhor pra você. Tchau.
Bernardo voltou-se e continuou caminhando. O olhar de Renata o seguiu até que sumisse na porta de vidro da saída do shopping. Terminou de comer e soltou um suspiro fundo.
Eu também senti sua falta, Bernardo, e o que você não entende é que o problema é justamente esse, pensou ela, indo devolver a bandeja.
A mão de Bernardo deslizava carinhosamente pelo rosto de Renata. Os dois trocavam olhares cúmplices. Ela sorriu. Ele sorriu de volta. Estavam deitados, de frente um para o outro, na cama dele.
— Sabe, Rê, você me faz sentir que posso ser mais. — disse Bernardo.
— Como assim “mais”, Bê?
Ele aproximou-se e deu-lhe um beijo terno.
— O engraçado está aí. Você me faz sentir que posso ser mais do que apenas o canalha que você mesma pensa que sou.
Renata riu, incrédula.
— E você seria o que, então?
— Eu seria capaz de cuidar de você, de estar ao seu lado, de merecer sua confiança. Alguém digno, que pode te fazer feliz.
O sorriso dela brilhava. Bernardo, num lampejo, percebeu que vê-la sorrir mexia com ele tanto quanto vê-la sem roupa, tocá-la. Mexia de maneira diferente, mas tão intensa quanto. Quando seu corpo e o dela se encostavam, o calor que sentia era o maior que já vivera. Mas quando ela sorria… era como se o peito dele se banhasse de uma luz… Olhando para ela, sentia… que era todo dela.
— Você me deixa te fazer feliz? — perguntou a ela.
Renata ficou séria.
— Não faça promessas que você não pode cumprir, Bernardo. Tá tudo bem assim.
Ele a puxou para um abraço e disse no ouvido dela:
— Jamais vou descumprir uma promessa que fiz a você. Você sabe o que sinto.
— O que você sente, afinal?
Bernardo afastou-se um pouco para encará-la.
— Sinto que…
Peraí. Mas a Renata estava brava comigo. O que ela está fazendo aqui na minha cama? Ah, isso é um sonho. Assim que se deu conta do que estava acontecendo, acordou. Lamentou ter despertado. Ao menos em sonho, Renata o havia perdoado. Ficou surpreso com seus próprios sentimentos.
Era domingo de manhã. Bernardo estendeu o braço para a mesinha de cabeceira e pegou o celular. Abriu a conversa com ela.
Tinham mandado alguns memes e mensagens engraçadas durante o curto período em que se aproximaram. Releu com pesar. Conseguia ouvir a voz dela ao ler suas palavras. Eu não devia estar pensando nisso. Eu sei perfeitamente como eu sou.
Mateus molhou a batata frita na maionese temperada e colocou na boca. Bernardo olhou em torno. O bar estava razoavelmente cheio para uma quinta-feira.
— Você disse que não, mas, para mim, está ficando óbvio que ela é mesmo sua kriptonita, Bernardo. — provocou Mateus.
Após engolir a batata que estava mastigando, Bernardo retrucou:
— Ah, começou. Não adianta, o assunto roda, roda e termina sempre nisso. Vamos voltar a falar da faculdade, chato.
O outro riu, deixando Bernardo ainda mais irritado.
— Gosto de falar nisso porque o prazo se aproxima e você segue sem transar com ela de novo. O que faremos se chega seu aniversário e você não conseguiu nem levá-la pra cama outra vez? Na minha opinião, nesse caso, você perde, porque disse que comia e não se apaixonava. Já ficou faltando comer, a primeira parte da coisa, ou seja, perdeu.
Bernardo revirou os olhos.
— Acho que, caso isso aconteça, é um empate. — sugeriu ele, erguendo a garrafa de cerveja artesanal.
Mateus deu uma gargalhada.
— Empate no seu mundo! Muito fácil para você. Não consegue conquistar a mulher e depois sai com essa de empate.
A conversa sobre a aposta, ultimamente, deixava Bernardo desconfortável. Ele não sabia interpretar por que, de repente, tudo ficava confuso e nublado. Só queria que seu aniversário chegasse logo. E se ele perdesse? Ok, tudo bem. Pelo menos aquele incômodo passaria.
— Quanto tempo falta? Praticamente duas semanas. Eu consigo. — insistiu, sem muita ênfase.
Mateus estranhou o amigo. Observou Bernardo, pensativo, bebendo sua cerveja. Depois, remexendo com a batatinha no molho, com a atenção concentrada, alheio. Alguma coisa estranha estava acontecendo com ele, não era a primeira vez que Mateus reparava nisso.
— Bom, então tá. Enquanto isso, vou escolher a sua calcinha.
Os dois se despediram por volta das 22h. Bernardo havia bebido um pouco mais do que o costume, queria disfarçar para o amigo, mas estava um tanto cabisbaixo. Os outros amigos o convidaram para festas e ele declinou. Nem mesmo pensar em seu projeto de robô, que costumava deixá-lo tão empolgado, estava adiantando.
Queria, de alguma forma, que Renata mudasse de ideia e aceitasse ser sua amiga. Sabia, no entanto, que não podia obrigá-la, é claro.
Desceu do Uber em frente ao prédio e subiu. Quando o elevador se abriu no 7º, escutou a voz dela. Percebeu outra voz, grave, misturada à da vizinha praticamente ao mesmo tempo em que se voltava naquela direção.
Renata e Leandro andavam para o 701. Estavam devagar e de costas para ele, como se tivessem acabado de sair do elevador pouco antes.
— Trouxe este vinho, você curte? — perguntou o professor de musculação, sorrindo.
— Ah, sim, curto, sim. Vem, entra. — convidou ela, abrindo a porta para ele.
Bernardo continuou parado na frente do elevador, sem reação. Não podemos ficar porque nos veremos muito seguido. Mas a proximidade não parece problema no caso desse aí. Ele é professor da academia e eles se veem quase todo dia, nesse caso, porém, tudo bem! Porra, Renata, se você realmente não quer algo comigo, pra que inventar essa desculpa de proximidade? Seja sincera! Mas e ele? Podia dizer que era sincero com ela?
Foi para casa com um misto de sentimentos querendo explodir no peito. Não conseguia conter a própria imaginação e via em sua mente os dois se beijando, se tocando, as mãos de Leandro passeando pela pele de Renata.
Com o peito apertado por aquele ódio dolorido, Bernardo se ajeitou para dormir e deitou-se. Custou a cair no sono. Ficava lembrando da preocupação com Renata quando ela estava doente. Era genuína. Lhe fazia mal saber que ela estava com febre, com dor. Queria que ela se alimentasse, que ficasse bem.
E aqueles momentos em que a via sem roupa…? Precisava evitá-los porque, como havia dito a ela, ela o atraía com um magnetismo que ele nunca havia sentido antes. Ela era absurdamente linda, gostosa, não era, no entanto, a única mulher muito bonita com quem tinha ficado. Era algo que ele não sabia explicar… Nunca tinha vivido nada assim.
Adormeceu ainda refém dos sentimentos que não sabia interpretar. Só sabia que doía. Doía muito.