Tudo começou após um dia árduo de trabalho, o estresse foi grande, meu corpo todo estava cansado, o peso no ombro era “himalaio”, só queria chegar em casa tomar uma ducha, encher o bucho, tomar uma gelada e cair na cama. O bom que era uma sexta-feira, véspera de feriadão, então teria vários dias para descansar, o ruim, é que cama teria que espera mais um pouco, depois da ducha, havia uma festa naquela noite, ok, ir em festa não pode ser ruim.
Mas o corpo estava cansado e a cerveja estava gelada, trincando, não tinha como não apreciar, uma após outra, acompanhada com sushi e o churrasco, bah!!! Nem te falo, desciam pelo gogó, como uma criança faceira desce pelo tobogã, a música corria solta, aliás, tocava tudo que era gênero e conversa vai, conversa vem e a noite foi-se.
Já sei o que você está pensado, que isso não passa de história de bêbado, mas calma, é só o começo.
Já há um bom tempo que venho sonhando que possuo o poder de flutuação, eu digo flutuação, por que não seria exatamente voar, sonho que através de impulso consigo permanecer flutuando no ar por longas distâncias, planando e pulando novamente, durante o sonho a sensação parece tão real, seja por diversão ou fugindo de alguma ameaça, salto por cima de rochas, árvores, muros, telhados, algo parecido com parkour, mas mais leve e suave.
No dia seguinte, após o almoço, um calor insuportável elevava a temperatura dos termômetros, o corpo ainda cansado da jornada anterior, adicionado à preguiça pós-almoço e ainda o calorão que não ajudava, me atirei na cama, sobre o lençóis ainda desarrumados, com ventilador ligado ao máximo e a janela aberta, na esperança de que alguma brisa refrescante entrasse.
Sem camisa, apenas de calção da Adidas preto, com listas branca nas laterais, coloquei uma música relaxante no celular para iniciar a meditação como de costume. Fechei os olhos inspirando profundamente e soltado o ar lentamente pela boca, escutava a música e os sons que vinham de fora, primeiros os mais perto, depois mais longe e mais longes, eram miados, latidos, motores de carros, vozes de pessoas, canto de pássaros, passos nas ruas, etc… após passei a ignorar os sons e concentrei-me em meu corpo, começando pelos pés e subindo até a cabeças, diminui a movimentação de todos os músculos, estava praticamente imóvel, agora a respiração estava lenta e compassada, comecei a sentir a brisa do vento no meu corpo, as partes onde eram atingidas com mais intensidade pelo vento e as partes onde eram mais fraca, após 5 minuto de relaxamento, a sensação de calor no corpo já estava ameno, já não havia suor, então parti para a “viagem”.
“Imaginei” meu espectro saindo lentamente do meu corpo, subindo em direção à janela aberta, olhando para trás e vi meu corpo físico deitado na cama, imóvel, com a pernas levemente aberta e os braços esticados ao longo do corpo, estava com olhos cerrados e respiração tranquila, sereno.
Lembro que as vezes durante o sono, sonhava que estava caindo de grandes alturas, mas com o tempo sinto que minhas habilidades durante o sonhos foram evoluindo, quando caia, eu conseguia planar, depois já conseguia pular em grande altitudes, com os impulsos o meu corpo se tornava leve e subia e logo usava a habilidade de planar, assim, conseguia voar com a ajuda do ar e do vento e não acabava estatelado no chão.
E usando esta mesma técnica, meu espectro saiu flutuando pelo céu, olhava lá do alto a cidade, mais adiante os campos, as árvores e as montanhas, era para onde eu estava indo, para os altos das montanhas, talvez onde tivesse algum lago, cachoeiras e campos floridos, pois são locais que me trazem paz e tranquilidade, deitar num gramado no alto de algum morro para apreciar a paisagem, ou as nuvens, ou os pássaros que cruzam o céu.

Estava deitado sobre a relva, no cume do morro, vendo a movimentação das nuvens distantes, ao longe havia algumas montanhas, que protegiam um vale com pinheirais e outras vegetação, pássaros cortavam o céu e algumas borboletas voavam ao meu redor, o campo a minha volta estava repleto de flores, mais abaixo havia um riacho que era o seguimento do deságue de uma cachoeira.
Percebi que ao longe, as nuvens começaram a escurecer e os pássaros voavam apressados para se esconder, era sinal da tempestade que se aproximava, levantei e lentamente iniciei o caminho de volta.
Lá do alto, avistei a minha casa, as ruas da esquina onde estava localizada, o muro que a cercava, o pátio em volta dela e a janela por onde havia saído antes. Dirigi-me em direção à janela e entrei no quarto.
Fiquei por um tempo observando o meu corpo deitado na cama, estava na mesma posição de quando sai, só que diferente de outras vezes, agora parecia realmente que estava fora do meu corpo e vendo aquela situação, não me lembrava de isso ter acontecido antes, das outras vezes, eu não lembro de ter voltado até em casa, eu simplesmente abria os olhos de onde estava ou era acordado por algum movimento a minha volta, mas agora eu estava ali, de frente para o meu corpo e naquele momento, não sabia o que fazer, não sabia como que eu voltava para o corpo.
Tentei tocar em mim mesmo, mas minhas mãos viravam fumaça no momento em que transpassava o meu corpo e o mesmo acontecia com as outras partes, tentei entrar em mim, mas nada, permanecia ali dormindo na cama e o meu espectro me observando, sem saber o que fazer para acordar.
Pensei em trazer um copo de água e jogar na minha cara, mas era só um espectro, só um fruto da minha mente, não tinha como carregar algo físico, tentei chamar a atenção das pessoas de casa, mas tudo que eu imaginava, não era possível de executar. E agora? Pensei.
O jeito foi ficar ali e aguardar até eu acordar.
Já era quase 17 horas e nada, foi quando minha esposa Regiane, entrou no quarto e da porta perguntou se não queria tomar café ou fazer um lanche, mas como eu não esbocei nenhuma reação, ela acreditou que ainda estava dormindo e me deixou descansando, olhei para mim mesmo desanimado.
Alguns minutos depois, ela volta para o quarto e senta do seu lado da cama de casal e fica olhando e mexendo o seu celular e mesmo assim meu corpo não esboça nenhum movimento, permaneço dormindo e imóvel.
Como a situação não se altera, meu espectro resolve dar uma volta pela casa, vou para a sala e depois para o quarto das minhas filhas: Liza e Michaele, lá, vejo as duas, cada uma em seu computador jogando online e dando risadas. Sobre a cama, a Estrela, uma gata atigrada de cor branca e laranja, dorme enroladinha parecendo uma rosquinha, posso ouvir seu ronco e sentir a paz com que ela dorme, tento passar a mão na pelagem da sua cabeça, mas os dedos desaparece antes que possa tocá-la.
Ouço o som de motos, vindo da rua, que vão e vem em frente ao portão de casa, atiçando o cachorro que começa a latir incessantemente, vou até lá e vejo o pittbull branco correndo de um lado para outro, do portão até o final do muro, todo excitado, latindo sem parar para os motoboys. Conforme adestramento, dou o comando para ele parar e ficar junto de mim, mas ele não me escuta e nem me vê, Dio fica de pé sobre as patas traseiras, com as dianteiras apoiadas na grade do portão, permanece latindo para a rua e não percebe minha presença, também não consigo tocar nele.
Volto para dentro, e vou para o quarto, ainda estou lá, desmaiado, tento novamente me tocar, mas nada muda, já começo a ficar agoniado.
A Re se levanta da cama, dá uma olhada para mim e segue para o quarto das meninas, fala algo com elas, mas eu não presto atenção, permaneço ali em frente a mim, observando.
Nisso, Liza entra no quarto e passa através do meu espectro. Levo um susto e apesar de ter se dissolvido no ar, ainda permaneço consciente de tudo que ocorre à volta e escuto minha filha falar:
– Papai! Papai! Vamos sair para comer?
-Papai??? Fala ela tocando com a ponta do dedo indicador em meu joelho.
Chego perto para ver minha reação, mas meu corpo não se mexe, ouça ela falar alto para sua mãe, em tom de deboche:
-Mamãe!!! Acho que o papai morreu! Ele não quer acordar.
Ao que ela responde:
–Deixa então, acho que ele está muito cansado, vamos pedir algo pelo ifood.
Liza sai e volta para o seu quarto e se junta a sua mãe, para fazer o pedido no aplicativo. Resolvem pedir umas panquecas e um litro de refrigerante, feito o pedido, não demora muito a chegar, em pouco mais de meia hora o pedido é entregue.
Com a chegada das panquecas, novamente sou chamado para levantar e comer, apesar da insistência, não respondo e nem esboço nenhuma reação, pelos comentários na mesa, percebo que neste momento elas começam a ficar preocupadas com a minha situação, pois nunca antes fiquei tanto tempo dormido sem ao menos resmungar nada.
Após terminarem de comer, Regiane vem até o meu lado e começa a falar, perguntando se estou bem, coloca a mão em minha testa para verificar a temperatura, constata que não tenho febre. Tenta me acordar mexendo no meu corpo e como não reajo a nada, ela faz cara de preocupação.
- Ixi!! Deve estar de ressaca, deve ter bebido demais ontem.
Ao ouvir isso, comecei a pensar, será que estou de coma alcoólico? Acho que não, se estava acordado e bem no almoço, só estava ainda cansado, mas por que será que eu não acordo?
Michaele, nossa filha mais nova, também chamada pelo apelido de Mimu, vem até o quarto e começa a me cutucar com os seus dedos, e fala:
-Papai tá mal! Morreu mesmo!!!
- Liza! Avisa os tios que o teu pai tá mal, que tá aqui desmaiado o dia todo. Clama a Re.
A casa da minha mãe, onde moram meus irmãos, fica aqui perto, umas poucas quadras da nossa, não mais que 700 metros de distância, lá, além da minha mãe, no seus mais de 85 anos, moram meus três irmãos e quatro irmãs, ainda tenho um quinta irmã, a mais velha, que reside em São Paulo.
Assim, não demora muito, logo chegam dois dos irmãos: Jonnes e a irmã Janna, penso comigo mesmo, pra que isso, nem precisava, mas a verdade é que nem eu mesmo sabia como fazer para me acordar.
– E aí? O que houve? Ele está assim desde quando? Pergunta Jonnes.
-Ah! Ele acordou pra fazer o almoço, comemos e a tarde ele dormiu e não acordou mais.
-Mas ele estava bem, não estava ressaca ainda? Perguntou a Janna.
-Parecia normal, como sempre, disse que ia descansar depois do almoço, mas não acordou pra tomar café nem jantar, aí eu chamo e mexo nele e nem se mexe.
-Não jogou água na cara dele?
-Não! Reponde a Regiane meio sem graça.
Eles permanecem ali debatendo e analisando em volta do meu corpo, observo tudo e é tão constrangedor me ver diante daquela situação, que chego novamente perto de mim, tento dar uns tapas na minha cara, mas novamente minhas mão se evaporam ao tocar no meu rosto, tento dar uns gritos para me acordar, mas nenhum som não sai da boca.
Decidem chamar o SAMU.
“- Ai MEUS DEUS!!! penso comigo mesmo. – Pra quê isso? Estou SÓ tô dormindo!!!!!”
Vejo o pessoal se preparando para a chegada dos paramédicos, verificam o acesso à casa, liberando espaço na sala e no quatro, dando um jeito na “bagunça”, ainda escuto a Re falar:
-Liza! Prende o Dio na garagem, pois acho que é mais fácil eles entrarem pela porta da frente. Ah, e cadê a chave do cadeado do portãozinho?
-Tá bom vou prender, tu não tinha a chave no teu chaveiro, ou está ali junto com as outras chaves, mas já vi o papai abrir sem chave também, só levantar aquele ferrinho de baixo.
Tão logo a Liza leva o Dio para a garagem, deixando-o de forma isolada naquele recinto - o cuidado era justificado, a fim de evitar que ele mordesse alguém - Jonnes vai para o pátio e abre o portão de grade que separava o cachorro e o acesso ao portão principal, permitindo assim um acesso mais facilitado para se entrar na casa.
Logo uma ambulância branca com detalhes em vermelho, identificada com número 192 e SAMU em letras garrafais e o giroflex ligado, para em frente ao portão de casa, com o barulho e a movimentação de gente estranha em volta de casa, o Dio começa a latir incessantemente de dentro da garagem. “Nossa! Ele vai fazer uma bagunça lá dentro.” penso, além da vergonha que “estou passando”, pois a vizinhança vão ficar tudo de olho para saber o que estava acontecendo.
Dois socorristas entram na residência, procurando saber os detalhes do que se tratava o chamado, após o breve relato de Regiane, eles começam os procedimentos para verificar os sinais vitais: medem a pressão, os batimentos cardíacos, temperatura do corpo, examinam as pálpebras, etc. Um deles, virando-se para minha esposa, pergunta:
– Ele caiu? Bateu a cabeça, teve convulsões? Engasgo, secreções, vômito?
– Não, nada que ele tenha fado ou a gente tenha visto, ele estava normal, dormiu depois do almoço e não acordou mais.
–Ele tem diabete?
-Não! Mas ontem ele tinha bebido bastante, será que não entrou em coma por causa disso?
– Não creio, pois se ele dormiu bem ontem e hoje já tinha acordado e os sinais vitais estão bem, a temperatura está normal, os batimentos ok, mas vamos ter que levar ele para hospital fazer exames, pois pelos sinais não aparentar ter nada, parece que só está dormido, pode ser hipoglicemia, que é a condição em que a quantidade de glicose (açúcar) no sangue está muito baixa, e ele pode ter entrado em coma, mas um especialista vai ter que examinar para ver a causa e tratamento. Aqui a gente não pode fazer muita coisa.
Re olha para o meus irmãos, meio que querendo uma opinião, e eles falam:
-Vamos levar então, pode ser para Becker? (Hospital Dom João Becker, em Gravataí).
-Pode, lá ele tem convênio com a Unimed né?
-Sim, tem. Responde Janna.
– Ok, então, vamos, vou pegar umas roupas e os documentos.
Decidida a questão, os socorristas vão até a ambulância buscar uma maca para transportar meu corpo até o Hospital, enquanto isso, minha esposa troca de roupa e resto do pessoal separa em uma mala, algumas roupas minha e meus documentos.
Com o retorno dos socorristas, vejo meu corpo sendo colocado na maca, com muito esforço, meus 80 quilos são colocados sobre o equipamento, após as cintas são fechadas em volta do corpo para que não caia, eles verificam se está tudo certo e iniciam a locomoção.
Fico observando o meu corpo sendo transportado até o veículo, percebo que alguns vizinhos estão olhado de suas janelas, para aumentar ainda mais minha vergonha, pois nunca antes, precisei ir a um hospital de ambulância.
Após me acomodarem dentro da viatura, um dos socorristas pergunta se alguém irá acompanhar junto com a ambulância, ao que a Re responde sim, que ela irá juntos, e os meus irmãos irão de carro atrás.
Minha esposa dá as últimas orientações para nossas filhas, olho para elas, vejo em seus rostos um misto de aflição, perplexidade e graça, pois ainda estão sem entender direito o que estava acontecendo.
A filha mais velha, Liza, questiona:
– Mamãe! Quer que eu vá junto?
– Não precisa, fica com a Mimu, qualquer coisa eu aviso, fecha tudo aí.
– Tá, mas manda notícia logo. Pede ela.
Re entra na ambulância e a porta é fechada, antes do carro partir, eu entro junto atravessando pela lataria do veículo, e nos dirigimos ao hospital no centro da cidade, logo atrás o carro do meu irmão segue a ambulância e seu giroflex luminoso.
