Demos inicio as pesquisas sobre os elfos uma semana após o recebimento das cartas. Vieram oito servos do diretor, acompanhados por um dos sábios da Casa da Mudança, para entregar os documentos requisitados e recolher a marca do selo, garantindo que tudo havia chegado às nossas mãos conforme o solicitado. O sábio era um senhor bem humorado, contando piadas ao longo de nosso breve contato. Parecia ser uma pessoa ideal para compartilhar um dia em uma casa de chá ou dividir uma jarra de Shaojiu.
Assim que tudo foi entregue, organizamos o grupo de operações para cada parte daquela delicada missão. Lei Jin e Zhuang Wu ficaram responsáveis pelo cadáver; Ji Annchi e Guan Qi cuidariam dos documento e da cópia do necessário. Noko, por sua vez, recebeu a missão de encontrar um voluntário para estudos vivos e de registrar os resultados. Confesso que, inicialmente, pensei que teria cometido um erro ao envia-la, quando talves a barda fosse a mais adequada para essa atividade, mas só saberia ao ler suas notas.
Inicialmente, não houve qualquer contratempo. Zhuang antecipou-se antes de todos e preparou a sala de pesquisas a seu gosto, marcando com ideogramas cada seção e objeto. Eu tinha conhecimento que organizar era algo que aquele mago levava muito a sério, mas o nível de detalhamento superava minhas expectativas. Quando demos início as atividades, Jun e Wu colocaram o corpo na mesa central. Retiraram os mantos e o deixaram nu: um jovem elfo que havia morrido em um assalto. tendo um corte em seu pescoço. a pele já estava pálida e o corpo estava gélido graças ao tempo que havia falecido, contudo, uma pequena aura envolvia todo o corpo como uma névoa encantada. mesmo após dias de seu falecimento, seus membros e órgãos não tinham sinais de podridão.
Era uma cena triste de se ver, uma pessoa tão jovem serviria como nosso experimento em prol do grande livro, sequer havia sinais de seu nome para registra-lo. Contudo, não podíamos ser seletivos. Lei iniciou os procedimentos, usando de uma pequena linha listrada, para medir orelhas, dentes, olhos, dedos e os demais membros daquele corpo. Cada medida era dita em voz alta, Wu ficava ao lado registrados de forma detalhada tudo que era dito em seu pergaminho.
Acompanhei-os por um breve momento até que Lei empunhou uma pequena lâmina e, com a delicadeza de quem corta pétalas, abriu a barriga do jovem. Annchi, observando à distância enquanto folheava os livros históricos élficos, mostrava uma face de completo nojo com ruídos de ânsia ao ver os órgãos expostos. Zhuang interrompeu Jun e arrumou ao lado da mesa uma bancada protegida com tecido cinzento para onde seriam transferidas as vísceras.
Jun examinava cada órgão com grande atenção, apalpando cada um, vendo seus detalhes e depois os medindo em diâmetro e comprimento. Depois, colocava-os de forma cuidadosa em recipientes preparados para conserva-los, criando um catálogo meticuloso do sistema interno do corpo. A dupla mostrava muito empenho e foco, ate aquele momento, minha presença parecia ser inútil lá.
Quando fui até Ji Annchi e Guan Qi, e ali a situação era completamente diferente. A barda e o copista discutiam de forma acalorada sobre os documentos, cada um fazendo suas próprias anotações. Para amenizar os ânimos, destinei Annchi para os livros de história e Qi aos de cultura. Mesmo com a separação de tarefas de tarefas, ambos continuaram a comentar o serviço do outro, corrigindo e disputando entre si quem faria a melhor anotação.
A escrita dos dois eram diferente, Annchi escrevia com fluidez, citando as fontes ao fim do texto, enquanto Guan Qi preferia parágrafos mais diretos, dividindo as culturas em blocos em um tom mais poético ao falar da carência de certas informações e obras menores. Ao avaliar alguma das anotações feitas, tive que descartar muitas das notas críticas postas nas margens das anotações, por seres críticas entre eles do trabalho alheio.
Enquanto estava me focando nas questões das aparências élficas do livro "as belezas vindas das estrelas", reparei que, em meio as anotações das histórias e culturas, haviam informações incluídas que referenciavam obras não presentes nos arquivos da Casa da Mudança. Ao questioná-los, disseram que aquilo era para enriquecer a bora — como se mais de vinte documentos não fossem suficientes.
Fui então à sala isolada, onde Noko realizava sua pesquisa sozinha. Ao entrar, tomei um susto ao ponto de travar-me. Ela estudava uma elfa viva, de corpo belo e curvas marcantes. Suas vestes estavam dobradas ao lado com cores muito chamativa, e usava apenas peças que cobriam suas intimidades. Noko, com a mão nas costas da dama, ajustava sua orelha de cervo escutando os órgãos enquanto dedilhava com leveza a região.
A cena era, no mínimo, estranha... para não dizer exótica. Noko me acenou alegremente, sem dizer uma palavra sequer, ainda concentrada em seu trabalho. Perguntei como havia conseguido convencer uma elfa de aparência tão distinta ao estudo. Ela, com uma sinceridade e nenhuma vergonha em sua felpuda face, respondeu que pagou algumas moedas para que ela fosse participar de seu estudo. Era forma inesperada, ela cumpriu a tarefa que eu lhe atribui. A dama noturna se manteve tranquila na sala, mesmo com minha presença, lançando alguns elogios para minha pessoa, que mesmo tentadores, tive de ignorar.
Noko me entregou seu relatório. Ele era simples, escrito de forma clara e direta, sem nenhuma complexidade ou perfumaria — era como uma redação feita por um jovem, só que mais eficiente. Tive que ajuda-la em experimentos mais complexos; o restante, ela completou com leve dificuldade, mas sem depender de mim.
Ao retornar à sala principal, uma nova discussão havia se iniciado, agora era entre Wu e Jun. O motivo: o posicionamento das ilustrações anatômicas feitas por Lei, que interferiam no texto feito por Zhuang. O mago não queria as imagens juntas ao texto, pois atrapalhariam a organização feita, enquanto o Apotecário defendia que por suas ilustrações iriam enriquecer o entendimento dos futuros leitores, usando de fundamento outras obras de antigos senhores das cores. Mesmo sendo para min, uma discussão infantil. Eu tomei o lado de Jun na discussão, o draconato ficava frustrado, mas para evitar seu rancor a min e a Lei, dei a ele a seção do texto sobre as variantes que eu havia feito, para que ele organiza-se da forma que mais achava adequado.
No retorno ao dueto, estravam em uma relativa paz, inicialmente estranhei aquilo. Eles haviam mudado de assunto e estavam muito quietos. Por sorte, eu descobri o por que do silencio, o desinteresse de Annchi pelas políticas ligada as tradições élficas e a aversão de Guan Qi a outros doutrinas religiosas que não fosse as majoritárias do império, isso garantiu uma trégua nas farpas de comentários que faziam entre si. Ainda assim, precisei revisar muitos trechos confusos referenciados em suas anotações, desta vez por culpa dos danos causados pelos ratos e traças aos pergaminhos, que comprometeram frases chaves do texto.
Tive de escrever minha própria seção inteira sobre os nomes, nações, relações interfaciais e traços de personalidade — este ultimo como um pedido feito pelo imperador, que se mostrava um desafio atroz para não dizer que fosse uma loucura desprovida de qualquer bom senso, considerando a variedade de indivíduos de todo o império e em Dá Däo.
Noko foi a primeira a concluir, após quatro noites e três dias de estudo das reações e dos movimentos do corpo. Sua abordagem objetiva poupou revisões de seus relatórios. Ela também me ajudou a revisar os outros, mas tive que rever sua ajuda após ela descartas muitas partes que julgava irrelevantes. Lei e Zhuang terminaram em seguida, os detalhes feito por eles eram muito diretos e específicos, era como ler um artigo de lei, e por fim, Annchi e Qi enviaram suas anotações pomposas, muitas delas continham uma riqueza em termos e detalhes dignas de canções, mesmo que eu possa estranhar quem seria o estranho que cantaria sobre uma cultura élfica de forma prosada. Duas semanas de trabalho intenso resultando em pilhas de páginas e cópias. O cadáver após semanas de estudos de músculos, órgãos e partes, estava completamente dissecado, com ossos e tendões separados e estudados.
A seção mais difícil de se corrigir foi a dos romances e contos imperiais — estes quase impossível de mensurar aonde começava suas verdades e aonde era alegorias. Mas não havia outra opção, graças a falta de documentos mais verídicos.
Agora, com todo os estudos finalizados, restava-me elaborar e compilar todos aqueles registros para a primeira parte do Grande Livro das Raças. A responsabilidade era imensa, especialmente que este conteúdo se trata não só da raça mais comum dentro do império, quanto da que compunha toda área de poder, como o próprio Imperador Jing. Meu nervosismo fazia com que eu cometesse alguns erros, borrando pequenas partes das páginas com o meu suor e as gotas de tinta que respingavam na pagina. O tempo para mim era uma maldição, cheguei ao ponto de fadigar escrevendo por horas aqueles textos, por dias a fio sem pausa em busca de expressar-me da melhor forma possível. Penso eu que descartei mais de 30 folhas só pelo fato de errar os termos usados e seus verbos da forma correta. Cada ideograma, ponto e pagina era como uma experiencia perigosa de alquimia prestes a explodir em minha face.
Restava-me torcer para que aquilo estivesse ao agrado do Império.
Eu espero, que, sinceramente, que isso dê certo.