O mundo de Una' estava firmado, o nascimento de Mayari trouxe vida e o início dos primeiros seres e a criação de Ghaata resultou no fim destes e no surgimento da morte. As primeiras divindades a residir no grande mundo em uma espiral constante. As terras e mares eram alvos de uma sequência infinita de pintar o mundo com a vida e ser apagado pela morte. A deusa do nascer soltava de seu respirar, de seu tocar a mais simples existência mortal, o cheiro era suave e puro, tomado de cores claras e vividas.
Já a ceifeira de todas as coisas tinha uma tonalidade diferente, seu rastro trazia consigo um fedor, sua presença matava os mais fracos quebrando as pequenas células liberando a podridão interna de seus corpos, os mais fortes fugias, resistiam, mas mesmo com tanto esforço seus corpos envelheciam e se degradavam. As cores da morte eram escuras e pasteis, o marrom marcava onde passava, o cinza fazia as curvas de seus pés descalços e sua mão trazia um azul esverdeado tão escuro quanto as profundezas das águas.
Este ciclo se mantinha por infindáveis anos, todo o momento ambas iam aonde a outra passava, arrumando a seu gosto o lugar onde se encontravam. Era um ciclo imparável, a vida se nutria da morte e se elaborava enquanto a morte ceifava a vida por onde ela a encontrava. Deste ciclo veio a primeira vontade das duas divindades, de saber quem era a outra que desfazia seus feitos.
Mayari era curiosa, sempre foi desde que saiu do ventre da entidade suprema, não havia limite ao novo e para os porquês que saiam de sua boca. Em momentos, esta perguntou a Una' quem era o ser que usurpava a vida de sua criação, mas a deusa planar se calou e nada disse sobre a regente do fim. A deusa da vida sentia que havia algo errado sobre aquilo e, por sua própria vontade, foi em busca de seu algoz.
Ghaata já era bem direta e focada, a única coisa que ansiava era limpar o mundo daquelas estranhas criaturas, mas cada vez se irritava mais, mais vida aparecia no lugar onde ela acabava de purificar, mesmo se banhando no mar isso não impedia da vida retornar aos oceanos purificados. A deusa da morte estava impaciente, não queria ter sua existência ligada a um caminho sem fim em círculos, ela sabia que por onde tocou voltaria a ter saúde e cor. Contrária à sua missão, ela se sentou pacientemente a espera daquela que sujava o mundo de sua criadora.
Pela primeira vez, a deusa de tudo dava início, viu a figura que trazia o fim. Era estranha para seus olhos, dava angústia em ver que parte daquele temível Deusa era pútrida e assustadora e a outra era tão delicada e polida que se assemelhava à beleza da deusa planar. Mesmo com tamanha estranheza, sua curiosidade e interesse eram maiores, com pequenos passos caminhou em direção àquela que a vigiava, que pacientemente a via se aproximar.
Una' não interferiu em nenhum momento, sentia que aquilo se resolveria com o tempo que ambas ficariam afastadas uma da outra. Seu erro deu a ela um incômodo desmedido, ela sentia Mayari se aproximar mais e mais de sua criação e também entendia o aborrecimento do mesmo, ela sabia que ambas se levariam a um intenso conflito de interesses. A mesma tentou intervir criando uma gigantesca tempestade, mas não adiantou.
A deusa planar começou a mostrar seu empenho, Ghaata não se incomodava, somente queria o momento perfeito de dar fim a seu incômodo e Mayari pendia a ver de perto. As três divindades estavam próximas demais, Una' forçou a deusa da vida a se afastar da morte contra sua vontade, a carregando com os ventos e areias para longe.
A inocente deusa se irritou com o ato
da regente, sua voz estava aguda e agressiva como de uma pessoa desaforada na
frente de todos. Mayari se sentia humilhada por Una', mas a deusa planar apenas
respondeu grosseiramente para a divindade.
— Não seja idiota, você não pode vencê-la e ela não liga para você! Ela
te quer morta.
— Você está errada! Eu podia ir até ela e dialogar! E quem é ela? Por que diz
isso? Essa moça machuca e tira a vida de minhas criações! Quero respostas do
porquê ela faz isso. Por que ela causa tanto mal a eles? — Una' se sentava nas
rochas de seu mundo, desaprovando a sensibilidade da deusa da vida e ainda mais
sua inocência.
— Ela é minha criação e eu te aviso. Chegue perto dela e você verá o verdadeiro
terror, ela tem um foco, e é por ordem a sua criação desordenada. — Mayari se
calou ao ouvir o que havia sido feito contra ela.
Ela se afastou, desacreditava do que foi feito contra ela, não acreditava que tinham criado a morte de seu algoz somente para se fazer contraponto contra ela. A Divindade do início subiu para Amissaeteri para falar com sua matriarca, ao chegar foi recebida pela Entidade Suprema, que estranhava sua visita. A deusa da vida, ao adentrar, desabafava tudo que lhe havia ocorrido, estava indignada pelo que foi feito contra ela, aquilo em sua visão era uma maldade.
A Primeira divindade concordava calada
com ela, ao tempo que se dizia mais e mais, mas após tanto dizer, de tanto se
frustrar, a única resposta era o silêncio. Mayari não entendi o porquê de sua
própria mãe se omitir com ela. A entidade se sentou em seu trono pálido,
olhando para sua filha com um singelo sorriso.
— Por que achas injusto? Só pelo fato de existir um fim para tudo que cria? —
Não é por isso… Por que tem que ser assim? Fiz algo bonito, algo simples e bom…
não é justo com eles ser destruído assim. O que eles fizeram para merecer isso?
— Eles nasceram e surgiram de algum lugar, isso é o normal — A entidade suprema
pegou parte do pó que se acumulava no vento do vazio e formava uma pequena
escultura — um dia você os trouxe do pó e depois…
Ela soprou a pequena escultura,
a desfazendo da mesma forma que surgiu.
— Ela voltará ao pó. — A poeira do céu vagou sem rumo pelo castelo da divindade
em ondas lentas e dispersas enquanto Mayari, ainda se sentindo injustiçada,
mordeu os lábios com um amargor.
— E por que não posso me aproximar dela?
— Não disse que você deve ficar longe dela, mas aconselho não o fazer. Eu a vi
ser feita, mas eu não vi o que ela pensa. — A Entidade tocou o nariz da jovem
deusa em um toque suave e gracioso. — Já te aviso, se ela te fizer algum mal,
eu até irei intervir, mas se for você que for atrás. Lembre-se de responder
pelas consequências de teus atos. Você me entendeu?
A deusa da vida olhava cabisbaixa, ainda desconsertada com o resultado, tanto a patrona do mundo quanto sua criadora tinham se mostrado omissas contra o mal-feito a ela em sua mente, era um erro aquilo. Ela saiu do castelo deprimida, estava chorando, mas retornou ao mundo onde estava.
Agora estava quieta, em confusão do que teria a se fazer. Queria muito entender o porquê da hostilidade da deusa assassina, mas temia hostilidades da regente e de sua mãe, mas por aquele momento acatou suas falas e continuou sua ação. Das divindades, Mayari parecia mais lenta, sua vida ficava mais resistente e complexa, as vidas estavam se tornando mais resistentes, cada vez mais Ghaata se via com dificuldade para continuar seu trabalho.
Mesmo com tamanho desafio, a morte se mantinha focada em sua sutil atribuição, levando toda a vida, inclusive aquela, e tentava fugir de suas mãos. Novamente, a deusa da vida tentou melhorar sua criação, deu características, os deixou com paredes resistentes, eles estavam mais diversos e cada vez mais preparados para o encontro final, mas nada adiantou, eles ainda pareciam em sua fútil corrida contra aquela que trazia o término.
Mayari continuou isso por anos, se cansou, os alertas passados de Una' e da Entidade Suprema já não surtiam efeito em sua mente. O confronto estava claro, a morte e a vida se encontrariam a qualquer momento. A deusa do início parou de andar e esperou a chegada da morte, ela caminhava tranquilamente, usando agora um curto cajado de pedra e matéria morta, estendendo o efeito de seu toque.
Ambas as deusas se viram ao longe, porém Ghaata desconfiou daquele ato, uma deusa tão energética que trazia vida ao mundo só por seu respirar, estava quieta e paciente, em sua visão, era uma armadilha. Elas se encararam em total silêncio, uma espera se iniciava, eram como dois predadores à espera de um erro, um desvio sequer para dar o bote. A morte abusava de sua frieza, avaliando cada detalhe da postura de Maya, seu ar inquieto, o foco de seus olhos dourados, os ventos mostrando seu pescoço e suas orelhas levantando o cabelo.
Já a deusa do nascer somente encarava, esperando respostas, sua intenção era questionar e não antagonizar a deusa. Ela se levantou e deu seus primeiros passos em direção à sua opositora. Cada passo, a pressão subia, os ventos paravam, a brisa, as águas se acalmavam. . . Mayari chegou ao ponto extremo, era possível sentir a intensa aura da morte.
— Por que você destrói minhas criações? O que eu te
fiz para merecer teu mal? — O amargo da voz daquela que trazia o início era
clara, mas a morte somente a encarou em total silêncio.
— Diga algo? Me responda. Por que disso? Está tão focada em matar que não
precisa me dar satisfação alguma do que faz contra mim!? — A instabilidade
permeava a voz da deusa, a tristeza de ver seus esforços toda vez serem
apagados e a indiferença mórbida.
Ghaata não expressou, apenas agiu, aquele era o momento que tanto esperou, dar fim à vida que tanto encardia o plano de sua criadora. Comprimindo a cabeça de seu cajado, transformou-o em uma lança; o ataque foi direto e, embora tenha conseguido desviar do golpe, um leve corte foi infligido em seu braço. Mayari foi assolada pelo desespero, uma emoção que nunca experimentou ao longo de sua existência. Seu estômago se contorcia e seu coração pulsava de maneira intensa ao ver aqueles olhos frios invadidos por uma determinação, como se tudo dependesse daquela investida.
O medo invadiu a mente da deusa e de todos os seres vivos, as pequenas vidas se juntavam em grandes grupos formando proteções e defesas para a deusa da vida contra o toque da caçadora. Ela fugia em desespero, os golpes que se aproximavam eram barrados pelo sacrífico das crias de Maya e o fedor da morte se espalhava a cada vez que seu toque era repostado. Una' sentiu algo errado e viu o atrito, a tensão alarmava-a e a mesma forçou a intervir a distância na luta, moveu terra, ar e água para separar ambas, mas nada adiantou.
As mãos de Ghaata se aproximavam cada vez mais de seu alvo, as defesas conjuntas não eram páreas para aquela ofensiva desprovida de moderação. A morte se levantou sua azagaia, a disparando contra Mayari, sua brutalidade, sua frieza fez atravessar a panturrilha da divindade. Era o fim, a deusa da vida estava presa ao chão, não conseguia fugir do fim, mesmo sob ajuda da regente do mundo, não havia uma escapatória. Medo transbordava a jovem, ela se arrependia de não ter escutado sua Una', não ter dado ouvidos aos conselhos da entidade suprema.
A morte levava seu toque ao corpo da vida, o frio queimava sua pele, lágrimas caíam do rosto da divindade, mesmo a divindade planar usando suas rochas para empurrar e dos ventos para afastar, aquilo não dava brecha para a vida fugir. Um grito de desespero saiu da boca da dama dourada, e o céu se rompeu, mostrando a lua branca., Ghaata que enfiava seus dedos ósseos na deusa da vida, parou, os olhos da caçadora tomavam uma cor azulada.
O ar gelou, Mayari estava em choque sem saber o que acontecia com a morte que estava sobre ela. A deusa Planar não entendia o que estava ocorrendo, ainda mais o cessar tão repentino da usurpadora de vidas, gradualmente uma energia rondava a mente de sua criação vinda dos céus… Una' compreendia o que acabara de ocorrer, aquela se senta no trono pálido finalmente se moveu contra sua criação.
A regente do mundo foi tomada por uma raiva intensa, nunca havia visto ela interferir de tal forma e agora todo aquele ato de consequências parecia irrelevante. A entidade Suprema desceu da lua branca, parando próxima à Deusa planar, que em ira desferiu um golpe contra o rosto da entidade.
— Como ousa interferir desta forma! Ela quem provocou isso! Mesmo eu ajudando-a, mesmo eu alertando ela. Foi ela quem fez isso consigo mesma, você deveria deixar ela pagar pelo que fez! — A criadora de tudo olhou calada para Una', a raiva só crescia em seu coração cristalino e se expressava pelo ranger de seus branquíssimos dentes. — Por que não diz? Veio aqui protegê-la porque é sua criação! Não é justo que ela saia impune do que ela fez!
— Quem lhe disse que ela está saindo impune? — A
deusa parou ouvindo aquilo, não entendeu naquele momento o significado daquela
frase, apenas um fraco grito de Mayari de incômodo e angústia.
— O que você está fazendo então? — ela olhou com uma face confusa, vendo ao
longe uma doma se formar com as duas divindades.
— Penalizando-a de uma forma que ela entenda.
O sorriso da deusa suprema veio com sons
indescritíveis, a deusa planar conseguia ver o que estava acontecendo, e aos
poucos sentia um desconforto da cena, tinha repúdio pelo ato. Olhou para a
entidade com nojo.
— Você vai pagar, minha Ghaata não tem culpa de nada e você sabe disso, fazer
essa atrocidade que você está forçando-a a fazer não é certo.
— Sei disso. Mas quem deve tratar isso comigo é ela, não você. Este mundo
precisa de mim, assim como este universo precisa de você, Una'. — Ela se
virava, vendo o regramento sendo feito — Sou justa e sei que você às vezes não
gosta de minhas ações. Entendo isso…, mas, não saia descontando. Seu mundo tem
uma benção, esta era está acabando.
Una' sentiu o seu mundo alterar, e se virou para a
sua antiga tutora, que saía ainda não aceitando sua decisão.
— Eu ainda farei algo tão grande que você ainda ficará surpresa. — A entidade
parou, escutando o último som ecoar distante.
— Sei que vai… só lembre que…
— Tudo que fizer terá consequências…
— Boa garota. — A voz carinhosa voltava, a Entidade suprema saia do mundo de
sua aprendiz, ela a olhava partir enquanto, ao fundo, a doma se rompia.
Mayari estava marcada, com feridas pelo corpo e tremula. Senti seu corpo, o frio, o suor, a dor e o incômodo. Ghaata estava inconsciente, a energia divina que a controlou se dissipou, sua forma estava alterada sutilmente, lembrava até mesmo sua criadora em força e tamanho, seus trejeitos fortes e másculos se dissipavam aos poucos, a pondo em um estado vulnerável. Una' não acreditava na derrota, via sua criação exausta, mas sem máculas, a pegou nos braços e a levou para longe da deusa vivida.
A recuperação do conflito foi lenta, A regente do plano via o poder da morte aumentar, de sua boca saíam secas e simples palavras. O ser que saiu do lago metálico parecia mais sereno, harmônico e justo. Una' pela primeira vez, sentou-se com sua criação.
— Como se sente minha jovem Ghaata? — A deusa tocou-a na
cabeça, vendo-a mesma em um olhar distante.
— Sinto-me correta, mas algo estranho aconteceu. Recuperei-me bem. — Ela levava
sua mão ao toque da entidade com grande delicadeza. Mesmo não sendo afetada
pelos poderes da usurpação, era possível sentir o frio que deles provinha.
— Fico feliz por ti. Você mudou… por quê? — Ghaata sorriu fechadamente,
entreolhou-se com sua criadora com aquele olhar morto.
— Não sei lhe responder, minha mestra, meu poder intensificou, agora vejo não
só onde há vida, mas também vejo linhas…
— Linhas? — Una' arqueou as sobrancelhas em um tom curioso.
— Sim, linhas. Quando as toco, posso ver o que cada
ser fez desde seu nascer, mas agora elas estão mudando. — Seus olhos
desviavam-se da face da regente, observando por cima de sua cabeça, tocando o
vento calmamente, como se aquilo fosse as cordas de uma harpa.
— Mudando? Como assim mudando? Elas te mostram algo diferente? — A aproximação
era direta, cada fala, cada gesto daquela que trazia o fim intensificava a
curiosidade de Una'. O que acontecera de tão extraordinário? Qual foi a benção
dada pela Entidade à sua criação, que a mesma mudou de forma tão única?
— Me mostram agora novas necessidades, antes via estes seres não fazendo nada
além de meramente existir, agora vejo que alguns comem seus mortos e outros
caçam seus iguais ou similares. Alguns ficam fracos demais depois de muito
tempo vivos… isso é estranho para mim. — Escorava a mão em seu lado do rosto
ósseo, pensativa com as novidades.
A regente olhou com estranheza para a fala da morte,
seu estranhar era claro. Tinha algo acontecendo com a vida, mas era bem
diferente de tudo que já foi visto
— Você lembra do que ocorreu em seu confronto?
— Somente até o momento que encravei minhas garras no corpo daquela deusa.
Depois disso me senti leve e não lembro do que veio depois.
— Sentiu algo ao retornar à consciência
— Uma fervura em minha barriga e mãos, meu corpo estava ressecado, mas também
sonolento.
Una' não sabia o que a afetava, e tampouco de qual punição foi feita a Mayari. Podia ver ela de longe, mas não se importou com seu estado, seu foco era afastá-la de Ghaata para evitar males maiores e assim fez nos primeiros momentos. Aquilo era um sinal, a mudança chegava sutilmente à vida quanto a morte, a morte se fortalecia, porém moderada, sabia quando dar um fim rápido e a quem dar seu fim mais sereno.
Já a vida mostrava uma ramificação, os seres que agora saiam de sua presença eram divergentes, alguns eram carnívoros, outros apenas filtravam o ar e se alimentavam dos gases soltos, alguns se aproveitavam do andar da morte e alguns poucos usavam das poucas luzes das estrelas para prover seu alimento. Porém, Mayari se mostrava estranha, alguns momentos ela fugia para Amissaeteri, outros comia cristais e metais das jazidas, ela parecia mais lenta, porém muito mais cautelosa, parecia esperar por algo…
Ghaata pressentia algo diferente, algo se formando, uma energia que não era pura e tampouco obscura, era algo cinzento, forte e bruto…