O confronto estava encerrado, ambos os lados agora afastados não se viam, uma tensão integrou todo o plano de Una'. De um lado, a morte vagava tranquilamente, conhecendo as novas micro-criaturas que habitavam, algumas fugiam de sua presença, enquanto outras a seguiam com grande cautela para devorar os restos deixados pela obra da ceifeira.
Já a vida havia tomado um tom cansado, seu poder se mantinha constante, mas estava lenta, seu andar era pesado. A vida que saía de suas mãos era avançada, ela não só existia, ela comia, ela se reproduzia e também enfraquecia. A divindade não entendeu o porquê de sua criação estar diferente, do porquê ela estava diferente. O mundo estava mudando, cada dia que se passava, as divindades mais alternadas ficavam, até mesmo a regente do plano estranhou a mudança não só em sua cria quanto em Mayari.
A dúvida do que ocorria martelava a mente da entidade, pressentia algo novo vindo, mas não sabia o que era de fato. Não queria falar com a criadora de tudo, pois sabia que parte daquilo era culpa dela, era sua vez de resolver os problemas de seu mundo. Inicialmente, seguiu Ghaata, com um andar singelo, ambas conversaram, Una' ficava satisfeita com o empenho e a nova atribuição daquela que trazia o fim, enquanto a deusa citava sobre os novos desafios e as dificuldades de julgar o que era certo a se fazer.
Por dias acompanhou de perto sua criação, viu as mais bruscas e mais sutis mudanças, algumas imperceptíveis em seu primeiro momento. O andar era mais técnico, parecia um gingar de um caçador, de sua lança acertava pontos que já estavam cinzentos, seu respirar era lento e seu olhar era preciso. Cada ataque representava um singelo efeito, sempre acertando aqueles que não se sustentavam em sua corrida. Sua aura estava amena e, mesmo com a capacidade de ceifar tudo ao seu redor, ela julgava o que viveria e o que iria padecer.
A Deusa planar estava surpresa, sua fala tendia pela primeira vez entre os tons frios e sérios de um executor e o moderado e formal tom de um juiz, estava em total equilíbrio. A benção da Entidade Suprema não foi apenas poder, mas sim uma responsabilidade, a responsabilidade de julgar antes de executar, de escolher antes de ceifar. Ghaata havia deixado de ser somente o fim não só pela ação, mas também pela palavra, a julgadora, a juíza de todos os seres.
Una' ocultou sua felicidade, mesmo que não gostasse de quem deu aquele poder. A gratificação de ver sua criação evoluindo de forma tão magistral era incontestável, por um momento ela se despediu da deusa da morte, uma despedida silenciosa, mas íntima entre as duas. Deixou sua criação e foi atrás da filha da Entidade, sua procura não tardou, ela sentia e via tudo que existia, chegou celeremente a Mayari que se encontrava em contraste de tudo que presenciou.
Sua face mostrava grande angústia, um peso no olhar de quem carregava uma dor em seus pés, suas mãos estavam marcadas pela terra. Antes polidas, estavam sujas das constantes escavações que fizera. Seus cabelos dourados, antes lisos, mostravam grande contraste, momentos arrepiados e outros alinhados, pressentindo a alternância de emoções que estava a divindade.
A deusa da vida estava instável, hora tinha uma grande raiva latente, no outro, o choro vinha sem aviso. A regente do plano sensibilizou-se com a pobre e sofrida deusa, acompanhando-a por vários dias a fio. Porém, percebeu haver algo mais, aquilo não era somente uma dor, havia mais poder na deusa da vida, mas este era diferente, uma energia cinzenta e crescente.
De início, aquilo foi visto com desconfiança, se afastou dela e evitava o toque, era um medo que se intensificava com os momentos de instabilidade. Lentamente, esta insegurança foi se rompendo, quando a emoção não florescia, era possível ouvir a mais bela melodia. Mayari deixava sugerido a espera de algo em suas falas, tal dizer era poético, cada palavra trazia um sentido além do próprio, mesmo a Deusa planar sentiu em momentos dificuldade de entender.
Além da fala, seu toque mudou, deixou de ser algo simples e direto e se tornou único, um desenho que polia o chão, de cada linha, de cada ponto e cor que impunha formava uma forma cada vez mais complexa e única. A vida que saía era diferente de tudo, daquela ilustração se definia o que ela comia, o que ela respirava, de como se protegia e as coisas que fazia. Ainda era micro, mas divergia de tudo que antes existiu.
Una' sabia que havia algo errado, tinha algo que ela escondia, aquele jeito não era dela, aquela energia tampouco. Tudo aquilo estava errado, mas a Deusa da vida não dizia o que era, a morte não lembrava e perguntar à criação o que ela havia feito era algo fora do cogitado. Ela tinha que tomar alguma medida, entender o porquê daquela mudança, o porquê de tudo estar mudado de forma tão repentina.
Aquilo havia se tornado um ciclo, um combate silencioso entre Ghaata e Mayari, elas não se viam, mas cada ato afetava indiretamente a outra. Uma rixa sem intenção, derivada de um instinto apagado. A deusa planar permaneceu com a deusa do início por mais um tempo, dessa vez para estudá-la. Por sua vez, a deusa sentiu um elo amigável, aquele pouco afeto a deixava bem.
O tempo das duas juntas fez efeito. A vida estava voltando à sua virilidade, à sua energia, mesmo as dores e os surtos tinham menos efeito. Porém, ela tinha deixado de ser apenas algo vivido, estava madura e carinhosa e, aos poucos, mais aberta a falar o que tinha. Una' se aproveitou disso e descobriu cada vez mais sobre a Entidade Suprema e ela, a criadora de tudo, não era uma mãe muito afetiva, pelo dito, era da mesma forma que foi quando a ensinou a gerir o mundo e a entender seus poderes divinos.
Após tamanho laço ser feito, a deusa revelou finalmente à regente o que era toda aquela energia crescente. Mayari tinha algo em seu ventre, estava carregando uma deusa nova, algo que trazia os traços tanto da vida quanto da morte, não uma substituta, mas alguém para manter um ciclo constante e natural. A Deusa planar, ao ouvir tal mensagem, perdeu o rosto carinhoso, tomada por algo sério e assombrado. Ela entendeu finalmente o que havia ocorrido com sua criação, o que foi a punição tão dita pela Entidade. Ela estava perplexa e assustada em saber o quão longe a criadora de tudo levava.
Seu olhar era tenso, sua morena pele ficava pálida com a notícia, até seu sorriso falso era tomado com um suor nervoso. A vida tentou ajudar, mas a deusa ficava tensa, diversas ideias vinham, conspirações se formavam, a Criadora de tudo tinha um plano? Aquilo era uma punição ou um próximo passo? Ela não sabia qual era o jogo dela, mas sabia que tinha que agir... e rápido.