O ar na cobertura do Castellan Tower era rarefeito, impregnado com o aroma sutil de couro envelhecido e um toque de uísque caro. Do lado de fora, as luzes de São Paulo cintilavam como diamantes espalhados sobre veludo negro, um espetáculo que Nicolay, agora com seus quarenta e poucos anos, observava com a mesma serenidade de quem contempla um antigo mapa de tesouros. Aos dezoito anos, ele era um jovem idealista com um futuro incerto; hoje, era um titã, um cirurgião renomado cuja fama transcendia os limites da medicina, alcançando o panteão dos homens que moldavam o mundo com suas decisões.
O toque suave do interfone quebrou o silêncio contemplativo. — Senhor Castellan, o Senhor Saulo Silva acaba de chegar, anunciou a voz polida da sua assistente.
Nicolay sentiu um sentimento nostálgico familiar percorrer sua espinha. Saulo. A menção do seu nome trazia consigo um turbilhão de memórias: tardes ensolaradas no campus, discussões acaloradas sobre o futuro da medicina, a cumplicidade de dois jovens sonhadores que, de maneiras diferentes, buscavam deixar sua marca no mundo.
— Solicite para ele entrar, por favor, disse Nicolay, ajeitando o nó da gravata de seda escura que contrastava com a camisa branca impecável. Ele se levantou, a figura alta e musculosa exalando uma autoridade calma, a maturidade gravada em cada linha de expressão ao redor dos seus olhos azuis, que, apesar do tempo, ainda guardavam um brilho de curiosidade e uma profundidade que poucos conseguiam penetrar.
A porta se abriu e Saulo entrou, também era de estatura alta, não tanto quanto Nicolay nem tao forte, mais bem cuidado Dez anos haviam passado desde a última vez que se viram pessoalmente, mas a essência dele permanecia intacta. O cabelo, agora com alguns fios prateados discretos entre os castanhos, emoldurava um rosto que, embora marcado por anos de negociações e investimentos arriscados, ainda irradiava uma energia vibrante e um otimismo contagiante.
— Nicolay, meu amigo! Você não mudou nada, continua com essa pose de quem vai salvar o mundo, Saulo exclamou, estendendo a mão para um aperto firme.
Nicolay riu, aceitando o cumprimento. — E você, Saulo, continua com essa energia de quem acabou de fechar um negócio milionário. Que bom te ver! Ao contrário de Nicolay, Saulo não seguiu a medicina atendendo as pessoas mais, sim, abrindo várias franquias de hospital por todo o Brasil e no exterior
Eles se afastaram, e Nicolay o guiou até um sofá de couro macio, oferecendo-lhe uma taça de água com gás. — Não tão amargo quanto o uísque, ele brincou. — E me diga, o que traz o grande Saulo Silva até a minha humilde cobertura hoje? Algum novo empreendimento que vai revolucionar o mundo?
Saulo sentou-se, um sorriso maroto brincando em seus lábios. — Na verdade, Nicolay, é sobre algo que nós dois sempre sonhamos. Algo que une nossas paixões: a medicina e a inovação. Estive pensando muito ultimamente, vendo o quanto você cresceu como cirurgião, o impacto que você tem... e me veio uma ideia.
Nicolay inclinou-se para frente, a curiosidade aguçada. Ele sabia que Saulo, com sua mente afiada para negócios, raramente trazia ideias triviais.
— Uma franquia de hospitais, Saulo declarou, a voz carregada de convicção. — Pense nisso, Nicolay. Hospitais de ponta, com a sua expertise em gestão e a minha em expansão de negócios. Poderíamos criar uma rede que oferecesse o melhor atendimento, com tecnologia de ponta, em diversas cidades. Imagine o alcance, o impacto que teríamos na vida das pessoas.
Nicolay ficou em silêncio por um momento, absorvendo a magnitude da proposta. A ideia de expandir sua influência para além do seu hospital principal, de replicar o modelo de excelência que ele tanto prezava, era tentadora. Ele sempre sentiu que tinha uma responsabilidade maior, um dever para com a sociedade, e essa franquia poderia ser a materialização desse desejo.
— Uma franquia de hospitais…, Nicolay repetiu, saboreando as palavras. — É ambicioso, Saulo. Muito ambicioso. Mas você sabe que eu nunca fui de fugir de um bom desafio. Ele olhou para Saulo, um brilho de cumplicidade em seus olhos. — Você tem algum plano em mente? Alguma estrutura?
Saulo sorriu, satisfeito com a receptividade do amigo. — Claro que tenho! Já pesquisei o mercado, identifiquei cidades com grande potencial de crescimento e pouca oferta de serviços de saúde de alta qualidade. Pensei em um modelo de negócio que combine a excelência clínica com a eficiência operacional, um padrão de qualidade que seria reconhecido em todas as unidades. Poderíamos até mesmo incluir clínicas especializadas, centros de pesquisa...
Os dois homens começaram a discutir os detalhes, as ideias fluindo livremente entre eles. A maturidade de Nicolay, combinada com a visão de negócios de Saulo, criava uma sinergia poderosa. Eles falavam sobre a estrutura da franquia, os tipos de especialidades que seriam oferecidas, a importância da formação contínua dos profissionais, a aplicação de novas tecnologias.
— E o mais importante Nicolay acrescentou, com um tom de seriedade, -seria manter a essência do cuidado. Não podemos nos tornar apenas uma máquina de fazer dinheiro. Cada hospital precisa refletir a nossa paixão pela cura, o nosso compromisso com o bem-estar dos pacientes.
— Exatamente! Saulo concordou entusiasticamente. — E é aí que a sua experiência como cirurgião se torna fundamental. Você será o guardião dessa essência. Cuido da expansão, da parte financeira, da logística. Juntos, podemos construir algo realmente grandioso.
Enquanto o sol se punha no horizonte, pintando o céu com tons de laranja e roxo, Nicolay e Saulo continuavam imersos em sua conversa, traçando os primeiros passos de um projeto que prometia redefinir o cenário da saúde no país. A amizade deles, testada pelo tempo e pelas circunstâncias, agora se fortalecia em torno de um objetivo comum, um legado que eles construiriam juntos, um hospital de cada vez…
Enquanto a conversa fluía, com ideias e projeções ganhando forma
— Nicolay, Saulo disse, a voz um pouco mais baixa, o tom de negócios cedendo lugar a uma preocupação mais pessoal. — Falando em pessoas importantes em nossas vidas... você tem alguma notícia da Anabelle? Faz tempo que não a vejo, e confesso que tenho me preocupado com ela. Sei que ela estava passando por um momento delicado...
Ele observou Nicolay atentamente, esperando uma resposta que pudesse aliviar um pouco da sua ansiedade. A amizade deles, forjada em anos de cumplicidade, permitia essa abertura, essa preocupação mútua com aqueles que faziam parte do seu círculo íntimo.
Nicolay suspirou, um gesto que denunciava o peso de memórias que ele carregava. A menção do nome de Anabelle sempre trazia uma melancolia sutil, uma lembrança de um tempo turbulento, de decisões difíceis e de um amor que, embora complicado, deixou marcas profundas.
— Anabelle, Nicolay repetiu, o nome soando como um eco distante. Ele olhou para Saulo, os olhos azuis fixos nos dele, buscando uma conexão naquele momento de vulnerabilidade. — Saulo, desde o parto da Anastácia... foi um momento muito delicado. Você sabe que as coisas eram... complicadas.
Ele fez uma pausa, reunindo os pensamentos e as emoções. Era um assunto que ele raramente abordava, mesmo com seu amigo mais próximo.
— Quando a Anastácia nasceu, Nicolay continuou, a voz embargada pela lembrança, -a situação era insustentável. Havia um perigo real para Anabelle e para a bebê. Eu... fiz o que pude para garantir a segurança delas.
Saulo ouvia atentamente, o interesse profissional dando lugar a uma preocupação genuína. Ele sabia que a vida de Nicolay, apesar de todo o sucesso, nunca fora simples.
— Ajudei Anabelle a fugir Nicolay revelou, a confissão saindo em um sussurro quase inaudível. — Organizei tudo para que ela e a Anastácia pudessem ir para o México. Um lugar onde pudessem recomeçar, longe de tudo aquilo. Pensei que seria o melhor para elas, o único jeito de protegê-las.
Ele desviou o olhar por um instante, a imagem da pequena Anastácia, recém-nascida, e de Anabelle, com o olhar assustado, mas determinado, gravada em sua mente.
— Desde então... Nicolay confessou, a voz carregada de uma tristeza resignada, -eu não soube mais nada delas. Tentei entrar em contato algumas vezes, mas foi como se elas tivessem desaparecido do mapa. Nenhum rastro, nenhuma informação. É como se o México tivesse engolido as duas, e elas nunca mais tivessem dado sinal de vida.
Um silêncio pesado se instalou entre eles, prenhe de perguntas não feitas e de um mistério que Nicolay não conseguia desvendar. A imagem de Anabelle e Anastácia, vivendo em algum lugar, longe dele, era um pensamento constante, uma preocupação que o acompanhava em seus momentos mais íntimos. Ele sentia uma mistura de alívio por tirá-las do perigo, mas também uma dor lancinante pela distância e pela incerteza do seu destino.
— É estranho, Saulo comentou, quebrando o silêncio. — Desaparecer assim, sem deixar rastros... especialmente depois de tudo o que você fez para garantir a segurança delas. Você tem certeza que não há nenhuma forma de rastrear, de saber se elas estão bem?
Nicolay balançou a cabeça. — Usei todos os meus recursos, Saulo. Pessoas de confiança, contatos... mas nada. É como se elas tivessem se tornado fantasmas. Talvez seja o que elas queriam, um recomeço completo. Mas a incerteza... essa é a parte mais difícil de lidar.
Ele voltou a olhar para Saulo, um apelo silencioso em seus olhos. — Eu só espero que elas estejam bem, que tenham encontrado paz e segurança. O pensamento de que elas possam estar sofrendo, ou em perigo, é algo que não me deixa em paz.
A conversa sobre os hospitais, por um momento, ficou em segundo plano, ofuscada pela preocupação com o paradeiro e o bem-estar de Anabelle e Anastácia. A vida de Nicolay, marcada por sucessos grandiosos, também era tecida por fios de perda, de amor e de um mistério que ele esperava, um dia, poder desvendar.