1
Às cinco horas da tarde, podia-se ver um Ford Del Rey rodando a 60
quilômetros por hora numa rodovia totalmente deserta. Em breve, o
crepúsculo abandonaria o céu para dar lugar ao inevitável anoitecer e
Velma sabia que seria a primeira noite sem a presença de sua avó em
casa. O enterro de dona Mirta fora ligeiro, no máximo quarenta minutos,
o que era esperado, pois não havia outros familiares para chorar pela
recente perda.
A cerimônia fúnebre fora silenciosa, apenas algumas senhoras amigas de
sua avó compareceram para se despedir. Elas disseram palavras em
homenagem, que foram bem-educadas e rápidas, e Velma fez um
pequeno discurso. Apenas porque pensou que seria desrespeitoso, no
olhar dos outros presentes, ficar calada no enterro da única pessoa de sua
família.
Velma sentia-se vazia. Ela não sentia aperto algum no coração ou
engasgo de choro reprimido em sua garganta. A única coisa que poderia
dizer que sentia era culpa, de não sentir necessidade de aceitar o luto,
pois não havia nada para aceitar. Mesmo sua avó a tendo criado desde
que ela era um bebê e sempre tendo feito de tudo para sustentá-la com
dignidade, ela não estava triste como deveria estar. Talvez fosse o fato de
que agora nunca teria as respostas concretas sobre o seu passado e o que
realmente aconteceu com seus pais — mortos num acidente de carro,
como dona Mirta sempre relatou com bastante firmeza.
A noite seria fria, mais cedo vira no noticiário do canal 6 que a
temperatura cairia mais de 10 graus até a madrugada e que esta seria a
estreia magnífica de um inverno que há muitos anos não fazia jus ao
nome. O vento que entrava pela janela meio aberta no lado do carona era
gelado e Velma não queria de jeito nenhum encostar o carro para fechála.
Em alguns minutos já estaria de volta em sua casa e faria um belo
jantar, estava faminta, merecia algo para si mesma depois de enterrar sua
avó. Mas não seria errado? O jejum após um funeral era algo mais
respeitável a se fazer. Talvez apenas para quem estivesse em luto. Velma
não se sentia assim, de jeito nenhum, mesmo desejando.
— Eu apenas preciso me distrair. — disse para si mesma. Sua voz saiu
rouca e um pouco trêmula.
Velma ligou o rádio, tentando acertar em meio a chiados uma estação FM
que estivesse tocando qualquer música, a primeira que encontrou estava
tocando o refrão de How Can It Be Now. Quando seus olhos voltaram à
direção, havia algo no centro da rodovia, imóvel, uma silhueta escura que
imediatamente fora iluminada pelos faróis de seu carro. Velma desviou
para a esquerda e pisou nos freios, o rádio voltou a chiar, os pneus
cantaram desafinadamente. Quando o carro finalmente parou, entre o
acostamento e a pista, a música voltou a tocar normalmente. Velma tirou
o cinto e saiu para socorrer quem ou o que ela quase atropelou. No local
onde primeiramente o vulto estava não havia nada agora.
— Olá, meu anjo. — disse uma voz rouca, feminina e fina como um grito
de gato. Velma soltou um berro abafado pelas suas mãos em volta da
boca e olhou para trás, finalmente viu alguém. Era uma velha, com cara
enrugada e cheia de sulcos, castigada pelo tempo. Vestia uma saia florida
com cores mortas que lhe caía até os pés, tinha um véu na cabeça para se
proteger do frio e o que sobrava caia em seus ombros por cima de sua
blusa comprida de seda azul marinho.
A cor clara de seus olhos, fundos e miúdos, mas atentos, eram
enaltecidos pelo contorno de lápis de maquiar preto. Velma soube na hora
que se tratava de uma cigana.
— Deus! — Soltou Velma, recuperando-se após o susto que fez seu
coração disparar, mantendo uma mão em seu coração acelerado. — A
senhora me assustou! Está machucada?
— Estou bem. — A cigana respondeu.
— O que faz por aqui sozinha? — Perguntou desconcertada, mas
tentando não demonstrar.
— Eu fui expulsa da condução porque perdi meu bilhete. O motorista era
um velho amargo e me deixou aqui a Deus dará. — A velha respondeu
num tom sereno, mas por algum motivo, ela carregava um olhar triste
que fez Velma sentir-se levemente benevolente a ela.
— Que desgraçado! Onde a senhora mora? Posso lhe dar uma carona. —
Ofereceu gentilmente. Velma ainda se sentia um pouco assustada, mas
que mal a velha poderia lhe fazer? A única coisa ruim que poderia
acontecer era justamente deixar uma velhinha sozinha numa rodovia
deserta numa noite fria daquelas.
— Que gentileza a sua, mas não tenho dinheiro para lhe pagar.
— Não há necessidade, não posso deixá-la sozinha aqui. Teve sorte de eu
ter te visto e desviado. Essa rodovia é bem perigosa.
— Muito obrigada, meu anjo. — Agradeceu a cigana com simpatia.
Velma abriu a porta do carona para a senhora, que entrou com cuidado
para não pisar em falso, por conta da falta de luz.
O sol já havia abandonado o céu e as primeiras estrelas começaram a
cintilar entre as nuvens cinzentas que vagavam devagar no horizonte. A
única iluminação naquela parte da rodovia era dos faróis acesos do Ford,
que logo voltou a roncar e a seguir em direção à cidade que já brilhava
em suas luzes amarelas e distantes. O rádio chiava escandalosamente de
novo. Velma o desligou.
— Meu nome é Velma. — Apresentou-se com um sorriso nervoso, sem
tirar os olhos da direção.
— Sou Ondina. — Ela disse de volta. — Sou de um grupo de ciganos
que está de passagem pela cidade.
— Ah sim. Por isso eu vi uma comitiva rodando por lá, achei que era
algum circo ou parque de diversões procurando um lugar para se fixar.
A cigana apenas sorriu, apesar de não ter dentes bonitos ou brancos, não
eram dentaduras.
— Acredito que deve estar se perguntando o porquê eu estava pegando
uma condução para fora da cidade — disse a cigana após um breve
momento de silêncio. Velma assentiu com a cabeça. — Peguei o ônibus
errado. Queria ter ido para o centro da cidade, mas sabe, velhas na minha
idade não deveriam sair sozinhas. Acontece que eu sou teimosa, sai
escondida, e me perdi. Acho que foi minha sorte não ter encontrado o
bilhete, senão sabe-se lá Deus onde eu estaria no momento.
— Verdade — concordou Velma.
— Acredita em sorte? — Perguntou a cigana.
— Sim, mas acho que ela não anda muito ao meu lado — Suas mãos
estavam começando a suar.
— Você me parece abalada. Se me permite perguntar, aconteceu algo?
— Hoje foi o funeral de minha avó. — Respondeu Velma após hesitar
por alguns segundos. Ela queria aparentar estar mais triste ou algo do
tipo, mas ainda sentia que passava uma imagem de tranquila, quase
indiferente sobre o assunto.
— Oh, eu sinto muito, querida! — disse a cigana com voz esganiçada.
— Está... está tudo bem. — Afirmou um pouco aflita. Havia algo na
cigana que a incomodava. Talvez fosse o seu perfume doce que era dos
tipos que sua avó usava, ou talvez fosse mesmo o jeito da cigana ou sua
idade, que fazia ela lembrar de dona Mirta. — Na verdade faz horas que
o enterro terminou, mas resolvi dar uma volta pelos limites da cidade
para pensar um pouco.
— Entendo completamente. — A senhora mantinha suas mãos juntas e as
esfregavam de vez em quando. As inúmeras pulseiras em seu pulso
tilintavam quando movimentava os braços. — A perda de um ente
querido sempre nos afeta e nos leva a reflexões desconfortáveis sobre o
que poderíamos ter feito de diferente quando ainda estavam vivos.
Velma não disse nada, apenas olhou para cigana e esboçou um sorriso. Se
a cigana dissera essas palavras com a intenção de consolá-la, não
funcionou muito bem. Mas ela não ligava. Por que não ligava?
Estavam se aproximando da entrada da cidade, onde uma grande placa
verde anunciava seu nome em letras brancas - NOVA FRANÇA. Alguns
metros à frente, localizava-se um viaduto com cores cinzentas,
desbotado, marcado com pichações em caracteres reconhecíveis apenas
para quem os pichara.
— Onde a sua comitiva está ficando? — perguntou Velma, quebrando o
silêncio desconfortável.
— Na praça central, a do obelisco gigante, minha querida. — Respondeu
a cigana Ondina. — Muitas pessoas teriam me ignorado — acrescentou
de repente.
— Eu nunca a deixaria sozinha lá, seria irresponsável de minha parte,
principalmente após eu quase a ter atropelado.
— Alguns provavelmente passariam por cima de mim. — disse, olhando
Velma fixamente. — Você é uma pessoa boa.
— Obrigada. — Agradeceu Velma com um pouco de incerteza.
Não saberia dizer o porquê começara a pensar se realmente era uma boa
pessoa. Podia ser culpa ou curiosidade, não tinha certeza, mas começou a
refletir sobre isso. Sempre ajudou e respeitou sua falecida avó, nunca
tiveram discussões sérias, apenas coisas do dia a dia que talvez nem
pudessem chamar de discussão. Nunca tentara fazer alguém se sentir mal
para sentir-se superior ou tirar alguma vantagem disso, muito menos ferir
alguém.
Velma pegou um atalho que as levaria mais rápido à praça onde os
ciganos estavam, por isso não levou mais que dez minutos para chegarem
lá. Cabanas, caminhonetes, lonas, luzes e até fogueiras, crianças
brincavam com seus cachorros e mães cozinhavam o jantar em fornos
pequenos, pais e filhos bebiam cerveja e tocavam violão alegres. Ela
estacionou no outro lado da rua, observando aquela cena em que todos
aparentavam estarem felizes naquela vida singela e peculiar.
— Quer vir passar um tempo conosco? — perguntou a cigana
gentilmente.
— Desculpe, mas estou cansada e amanhã me levanto cedo para o
trabalho. — respondeu Velma tentando não ser ríspida. Talvez o clima
feliz da comitiva a incomodasse um pouco.
— Eu entendo, a senhorita merece uma noite de sono tranquila após o
funeral. — comentou Ondina. Após soltar-se do cinto de segurança, ela
pareceu ter uma ideia ao esboçar um sorriso repentino. — Mas então,
posso pelo menos lhe dar uma leitura de mão, para pagar a carona?
— Não se incomode, de verdade, não estou cobrando nada...
— Por favor, vai me fazer sentir melhor.
— Tudo bem. — Cedeu Velma, então, ligou a luz interna do carro e
estendeu a mão para a velha.
— A quiromancia é um dos meus dons, não se assuste. — Ondina sorriu
e segurou delicadamente a mão direita de Velma, que se sentiu um pouco
incomodada com as mãos calejadas e unhas pontudas da senhora. —
Mãos delicadas e pequenas, ótimo... ótimo... Oh. — disse enquanto
passava o dedo indicador nas laterais da mão de Velma. — Você tem uma
profunda e comprida linha da viagem, o que significa que há uma
importantíssima viagem a ser feita. Nunca vi uma linha tão profunda
assim!
Velma observou a palma da mão, logo abaixo seu dedo mindinho era
possível ver uma das linhas horizontais mais chamativa, sempre achou
que poderia ser o nascimento de algum calo por causa dos serviços
pesados que às vezes fazia na floricultura onde trabalhava.
— Você tem o Monte de Marte. Significa que tem grande determinação,
isso irá ajudar nos obstáculos que encontrará nessa viagem e... a sua linha
da vida está muito apagada e curta.
— O que isso quer dizer? — perguntou Velma.
— Você terá algum problema de saúde ou acidente, sua vida pode estar
em risco por causa disso. Mas tudo dependerá de como enfrentará essa
viagem. — A velha aparentava estar mais nervosa que Velma, parecia
saber mais do que dizia sobre a leitura. Ela estava omitindo algo, Velma
conseguia perceber, mas não tinha fé nessas coisas místicas, pelo menos
não tanto quanto gostaria. — Está certo. As outras coisas que vejo são
suas qualidades, cada...
— Eu preciso ir — interrompeu, afastando sua mão da de Ondina. —
Desculpe, realmente preciso ir, mas obrigada, de qualquer forma.
— Está tudo bem, querida. — A cigana não demonstrava estar ressentida,
muito pelo contrário, sentia algo quase maternal para com Velma, e
talvez um pouco de preocupação. — Obrigada pela carona. Posso lhe
abençoar? Para que sua viagem tenha êxito.
— Ah... tudo bem. — Aquiesceu com um pouco de rubor.
Ondina colocou a mão na bochecha de Velma e começou a sussurrar algo
com os olhos fechados, em seguida, recolheu sua mão e beijou sua testa.
Ela sorriu e agradeceu mais uma vez. E então, Velma estava sozinha
novamente em seu carro. Esperou a cigana atravessar a rua e ir em
direção a uma das cabanas até entrar e finalmente sumir. Que loucura,
pensou, mas sentiu-se bem por ter ajudado a senhora. E sentiu-se bem,
mesmo não acreditando muito nessas coisas, com a benção dela.
2
Velma chegou em casa por volta das nove da noite, ela estava faminta e
exausta. Por mais que quisesse apenas se deitar em sua cama e dormir,
sabia que não podia ficar sem se alimentar. A única coisa que pusera em
seu estômago naquele dia tinha sido um café da manhã bem moderado,
estivera com pressa por conta das coisas do funeral que precisara
organizar praticamente sozinha.
Ela foi lutando contra seus próprios pés cansados para a cozinha preparar
um sanduíche com qualquer coisa que estivesse disponível na geladeira.
Velma não queria cozinhar nada naquela noite, só enganar a fome e
dormir o máximo que pudesse. Enquanto preparava o seu lanche com pão
amanhecido, presunto e queijo prato com rodelas de tomate, seus
pensamentos estavam fixos em o que diabos ela faria com todas as
bugigangas de sua avó.
Dona Mirta trabalhava em casa consertando roupas de pais de família;
costurando vestidos; fazendo meias de lã para vender para as vizinhas;
tudo relacionado à costura no geral. Tinha em seu quarto duas máquinas
de costura, várias caixas com linhas de todas as cores, botões, tesouras,
tecidos de cetim, seda e todos os outros tipos guardados em prateleiras e
caixas. Sem contar todas as roupas que estavam prontas, mas os donos
por algum motivo não vieram buscar. Velma teria de devolvê-los
pessoalmente alguma hora. Talvez pudesse deixar tudo como estava, por
algumas semanas, os donos das roupas viriam eventualmente quando
achassem necessário. O cliente mais fiel de dona Mirta era um homem
que há anos já fora cuidado por ela nos tempos de babá, Carlos Fontana.
Ele era um advogado agora, mas não dos que passam o dia no tribunal
defendendo grandes estrelas de cinema que atropelam por acidente
senhoras enquanto bebem e se drogam. Não, ele defendia pequenas
causas na prefeitura da cidade, ganhava o suficiente para se sustentar —
era solteiro, corpulento e de aparência elegante.
Velma praticamente cresceu junto de Carlos, sempre brincavam juntos
enquanto dona Mirta os observava. Ela mantinha um olho neles e o outro
não saia de seu crochê. Carlos sempre gostara de Velma, desde os tempos
de criança e até nos dias de hoje, ainda jogando seus charmes para ela,
que ignorava totalmente. Ela nunca sentiu nada parecido por ele ou
nenhum outro homem; nos tempos em que eram crianças, ela sentia
repulsa quando ele a tentava acariciar.
Velma sabia que se o avisasse sobre o falecimento de sua avó, ele apenas
iria para o funeral para vê-la e tentar consolá-la de modos não ortodoxos,
por essa razão ela não contou a ele ou a ninguém que não fossem as
amigas velhotas de sua avó. Não vou me preocupar com isso agora, estou
cansada.
3
Mais tarde, Velma deitou-se em sua cama, em cima dos lençóis, sem
desarrumar nada. Ficou olhando para o teto onde havia teias de aranhas
nos cantos das paredes que sua avó já cansara de pedir para que limpasse,
porém sempre esquecia por estar sem tempo para coisas triviais como
estas. Trabalhava oito horas por dia numa floricultura que ficava na
entrada da cidade, das oito às 16 horas, porém na maioria dos dias da
semana ia embora por volta das 17 horas. Por mais que gostasse de
ajudar nos serviços de casa, ainda tinha os serviços nos quais ela era paga
para fazer e deveria priorizar.
A casa em que ela e sua avó moravam ficava num terreno aberto onde
antigamente havia uma torre que levava sinal para os telefones nas
cidades daquela região, mas fora desmontado e transferido para outro
local. Dona Mirta costumava trabalhar na limpeza do escritório de
manutenção dessa torre e dormia na casa que na época abrigava seus
patrões — que eram os funcionários da empresa telefônica. A casa era
grande e tinha um bom espaço, em que ela pôde criar Velma enquanto
também trabalhava, tudo no mesmo lugar.
Quando a torre foi retirada, dona Mirta fez um acordo com a empresa
telefônica e comprou a casa com o dinheiro que seu finado esposo a
deixara alguns anos atrás, juntamente com um pouco de sua própria
aposentadoria. Agora, a casa era somente de Velma, e isso era algo que
ainda havia de se acostumar. Ela teria que se desfazer das coisas de sua
avó em breve, ninguém mais iria contratar seus serviços como costureira.
Talvez doasse para o asilo da cidade, as roupas e as máquinas de costura.
Velma não gostava dessas máquinas, faziam um barulho infernal que a
deixava agoniada sempre. Também tinham as caixas no porão cheias de
muambas velhas que dona Mirta nunca usava, mas também não deixava
ninguém pôr a mão, nem mesmo Velma. Agora não havia mais sua avó
por perto, não havia mais necessidade de manter essas coisas. Era melhor
se livrar de tudo de uma vez. Faria isso amanhã, no domingo, mas agora
só queria dormir e assim o fez sem muito esforço.
4
Velma acordou por volta das nove da manhã, sentia-se revigorada. Por
um momento esqueceu-se que sua avó tinha morrido, esperava que ela
aparecesse batendo na porta alertando-a que o café esfriou e que ela teria
de esquentá-lo novamente se quisesse tomá-lo. O que mais a incomodou
não foi esquecer-se da morte de sua avó, e sim que teria de fazer o café
sozinha se quisesse tomá-lo. Eu fiz o que pude por ela, sempre, a
prioridade sempre foi ela. Agora mereço meu descanso, apesar de meu
café sempre ficar horrível. Por um momento Velma refletiu sobre o que
de fato estava sentindo, e constatou que na realidade o que ela sentia era
alívio. Como se um peso em suas costas tivesse sido retirado de uma vez
só. Ela não podia se culpar por pensar assim e não iria fingir que estava.
Não havia ninguém para questioná-la sobre isso. Era uma coisa boa não
precisa aguentar o olhar torto de ninguém sobre não estar de luto.
Após levantar-se foi para a cozinha fazer o café, precisava por cafeína em
seu sistema mesmo que ele ficasse forte demais ou fraco como água de
batata. Não demorou muito para que ela terminasse seu café e fosse para
o quarto de sua avó fuçar em suas coisas, ver o que daria para guardar e o
que iria para a doação. Tinha uma certa curiosidade sobre o que poderia
encontrar lá, dona Mirta não gostava que entrassem em seu quarto sem
sua permissão ou presença. Velma desconfiava que ela escondia algo,
mas não sabia o que poderia ser. Ela mal tivera interesse em saber o que
tinha no quarto quando sua avó era viva, estava acostumada a ver a porta
pesada de madeira fechada, mas agora não havia nada para a impedir de
revirar tudo apenas por curiosidade.
5
A porta estava destrancada. Velma hesitou um momento antes de girar a
maçaneta pesada de ferro puro. Está tudo bem, Velma, ela não vai
aparecer do nada dando seus berros de alerta. Abriu a porta de uma vez
só, ligeira. O cheiro de mofo ou algo parecido e abafado entrou em seu
nariz. A primeira coisa que chamou a atenção de Velma foram as pilhas
de jornais velhos ao lado da cama, eram duas pilhas de mais de um metro
de altura e alguns jornais caídos em cima da cama de casal alta e dura de
molas.
Ainda parada na entrada da porta, Velma observou o grande guarda-roupa
de carvalho encostado na parede em frente à cama, devia pesar demais
para que ela sozinha o tirasse daí. Transformar o quarto em alguma sala
ou depósito estava fora de questão, na verdade, poderia ficar do jeito que
estava. Poderia ser um quarto de hóspedes, se fizesse uma faxina
completa por ali. Ela decidiu voltar outra hora, lembrou-se do porão (na
verdade era uma despensa que servia apenas para guardar bagunças
aleatórias de dona Mirta) onde realmente havia coisas para jogar fora
imediatamente. Sendo assim, ela fechou a porta do quarto de sua finada
avó, sem ter entrado ou dado algum passo lá dentro. Desceu as escadas e
foi para a cozinha onde ficava a porta para o porão. Ela tinha curiosidade
em saber o que tinha naquelas caixas cheias de papéis antigos que sua
avó guardava e não gostava que ninguém chegasse perto. Talvez tivesse
nada, apenas lixo, Velma não se surpreenderia em encontrar mais jornais
velhos guardados lá dentro ou tecidos velhos que dona Mirta nunca quis
se desfazer porque para ela, tecido sobrando nunca era desperdício.