Hannah bateu a porta do quarto e ligou a caixa de som no último volume. Era exatamente isso que ela queria fazer, mas continuava de pé, em frente à tia Martha, que gritava toda a irritação que sentia naquele momento.
A garota, cabeça baixa, já deveria estar acostumada com os rompantes da tia, mas era algo que ainda a afetava muito. Doía muito. Cada palavra era um soco na boca do estômago.
Hannah não tinha uma caixa de som para ligar e, se tivesse, jamais poderia ligar no último volume. Aliás, ela não tinha nem o seu próprio quarto. Dormia numa cama dobrável, que havia sido adicionada no quarto da prima Kívia, de seis anos.
Quatro meses atrás, no dia em que os pais morreram, Hannah ficou esperando por eles até tarde. Dona Bertha, a diretora do Colégio Astoria, tentou ligar para eles, mas o celular de ambos estava desligado e, em casa, ninguém atendia.
— Desculpe, Hannah — a diretora falou, desconcertada — mas já está tarde e preciso ir para casa. Tem alguém que pode vir te buscar até seus pais aparecerem?
— Posso ver se minha tia vem me buscar, diretora.
Hannah tentou não demonstrar a preocupação que sentia quando perguntou se a tia poderia buscá-la na escola. Tia Martha, meia-irmã do seu pai, era a única parente que tinha, além dos pais. A mãe era filha única e os avós já tinham falecido.
A tia demorou pouco mais de cinquenta minutos para chegar. A garota, que estava sentada na calçada, entrou no sedan barulhento, que tinha pertencido ao falecido marido da tia. Percebeu, imediatamente, que ela estava zangada por ter que ficar com ela, até os pais voltarem.
— Aposto que aqueles dois folgados estão se divertindo por aí – ela lançou um olhar de deboche em direção à sobrinha — ou então, fugiram de você.
Martha se mostrava cruel assim só quando estava sozinha com a sobrinha, nunca na presença de outra pessoa, menos ainda diante dos pais de Hannah.
Os corpos só foram descobertos dois dias depois, quando um caminhoneiro precisou parar no acostamento e acabou vendo o carro, que saiu da pista e capotou ribanceira abaixo.
Foi a maior dor que Hannah tinha sentido na vida. Tudo mudou completamente. Martha, claramente, não queria ficar responsável pela sobrinha, mas não teve jeito. Era a única parente da menina de quinze anos.
Hannah teve que se adaptar rápido à nova rotina e ao temperamento explosivo da tia. Antes, uma casa cheia de amor e carinho, agora uma casa cheia de gritos e cobranças.
A tia brigava por tudo. Se ela não lavava a louça, bronca por causa da preguiça, por não ajudar em nada, por ser um peso morto. Se ela lavasse, bronca por não ter feito direito, por não ter secado os pratos ou não guardar no lugar certo.
Mas não eram as broncas que machucavam Hannah, eram as palavras que a tia usava. Ela se sentia culpada por estar importunando, por estar dando despesa e por não ser bem-vinda naquela casa.
Martha tinha ficado viúva muito cedo, quando estava grávida de Kívia. Foi um momento muito difícil para ela, sem dúvida. O pai de Hannah tentava justificar o comportamento rude e frio da irmã, mas a tragédia que ela tinha vivido não justificava tanta falta de amor ao próximo, incluindo a própria filha.
Kívia nunca soube o que era o amor de mãe. Era uma sobrevivente. Hannah tinha muita pena da prima e, sempre que podia, tentava dar à criança todo o amor que podia.
— Você está me ouvindo, sua ingrata?
A voz da tia a trouxe de volta à realidade.
— Sim, senhora. Desculpe, tia Martha. Não vou mais esquecer de tirar o lixo.
— Acho bom mesmo. Você só está morando aqui porque sou uma boa pessoa. Precisa ser mais grata.
Hannah olhou para o próprio pé. Pensou se já podia sair da presença da tia, sem deixá-la ainda mais irritada.
— Vai garota estúpida, saia logo da minha frente.
A tia deu a ordem e Hannah obedeceu. Era tudo o que ela queria. Subiu a escada sem correr, senão a tia teria prazer em dar outra bronca e um belo castigo. Ninguém podia correr, falar alto e nem brincar naquela casa. A tia era maníaca por limpeza.
Kívia subiu logo atrás da prima. Desde que Hannah tinha ido morar na casa da pequena, ela tinha aprendido o que era ter alguém com quem contar. Ela amava Hannah com todas as suas forças. E Hannah amava a menina. Eram apenas as duas contra o mundo.
Hannah sentou no tapete ao lado da cama dobrável. Enfiou a cabeça entre os joelhos e chorou baixinho, para a tia não ouvir. Kívia ajoelhou e passou os bracinhos em volta da prima, tentando confortá-la. Sentiu a maciez dos cabelos encaracolados e compridos de Hannah. Passou os dedinhos entre as cachinhos, desfazendo-os. O carinho surtiu efeito. Hannah levantou a cabeça, sorriu para a pequena, e a abraçou.
— Eu te amo, Hannah!
— Também te amo, Kívia!
Hannah se levantou e, sorrindo, brincou com Kívia para ir logo para a cama antes que uma bruxa má viesse devorá-la. A menina sorriu, tentando não fazer barulho, para não chamar a atenção da mãe, e correu para a própria cama. Puxou o cobertor sobre o rosto, escondendo-se da suposta bruxa má.
Kívia, parecendo lembrar-se de algo importante, descobriu o rosto e sentou na cama.
— Hannah, conta uma história para mim. Por favor!
— Já está tarde, bonequinha! Amanhã eu conto.
— Por favor! Eu nunca te pedi nada...
— Como não? Você me pede para contar história toda noite! Você é a maior pidona de historinhas do mundo!
Elas riram. Riram baixo, para a tia não ouvir.
— Então, só mais dessa vez! – insistiu a pequena.
— Ahhh! Tá bom! Você é muito teimosa e insistente. Vou te contar do dia em que meus pais me levaram ao zoológico, para comemorar meu décimo aniversário.
Kívia amava as histórias que a prima contava, especialmente quando eram sobre suas memórias com os pais. Para a pequena era uma fuga da realidade cruel em que vivia. As histórias de Hannah, embora verdadeiras, pareciam contos de fada para a pequena criança.
Por outro lado, para Hannah, lembrar do seu passado, ao contar essas histórias para Kívia, era uma forma de manter viva a lembrança dos pais. No fundo, eram um dos poucos momentos alegres da jovem órfã.
Ela deitou na cama, ao lado da menina. Esse era um dos muitos segredos compartilhados entre as duas primas. Se Martha descobrisse a “hora da contação de histórias noturna”, decerto seria o fim das duas.
— Legal! Eu sempre quis ir no zoológico e ver todos os animais do mundo! — Kívia vibrou de emoção.
Hannah sorriu da ingenuidade da prima, e explicou-lhe que os zoológicos não abrigavam todas as espécies de animais do mundo, mas apenas uma parte. De toda forma, tinha muitas espécies diferentes, inclusive animais raros e exóticos, e era, sem dúvida, um passeio muito interessante.
Enfim, iniciou a história.
— Era uma manhã de sol, num céu azul sem nuvens. Mamãe preparou uma enorme cesta de piquenique com muitas gostosuras. Tinha um bolo confeitado, velinhas, balão e tudo mais.
— Que tudo! Sabia que eu nunca tive uma festa de aniversário, Hannah? Minha mãe diz que é muito desperdício. Mas eu queria uma festa, pelo menos uma vez. Deve ser muito bom ganhar presentes e comer bolo de festa.
Hannah engoliu seco. Pobre Kívia. A menina tinha uma vida muito triste. Nunca soube o que é ser criança. Não podia brincar, se sujar, levar as amiguinhas em casa. Nem mesmo uma festa de aniversário simples, só com um bolo e velinhas para soprar ela nunca teve.
Mas ainda assim, a menina sabia aproveitar o que a vida lhe dava. Ela tentava ser feliz com o que tinha.
— Continua, Hannah! Estou gostando muito.
— Meu pai ligou uma caixa de som portátil e me pegou pelas mãos, rodopiando comigo. Mamãe filmou o momento. Foi mágico, sabe? Eles eram muito felizes e faziam de tudo para me fazer feliz. Naquele dia, nos três sorríamos, despreocupados, felizes, nada de ruim poderia nos acontecer.
Hannah narrou, em detalhes, o encontro com cada animal. Kívia, que nunca tinha ido ao zoológico, e só conhecia os animais através dos livros, ouvia com tanta atenção, que Hannah quis detalhar o máximo possível cada um dos bichos que visitou. Os olhinhos azuis da pequena brilhavam, enquanto imaginava-se ao lado de Hannah, no zoológico.
— O elefante era imenso. Mas tinha um filhotinho muito fofo. Eles brincavam com uma bola, acredita?
— Jura, Hannah? Eles brincavam com a bola de verdade?
Kívia estava admirada.
— Os animais são muito mais inteligentes que você pensa, minha bonequinha! Eles são capazes de fazer muitas coisas inteligentes e de aprender muitos truques.
— Conta mais, por favor!
Hannah sorriu do interesse exacerbado da prima. Continuou, buscando na memória, as cenas que havia vivenciado naquele lindo dia. Descreveu, com certo exagero, o tamanho do pescoço das girafas. Contou das traquinagens dos pequenos macaquinhos e da tranquilidade do grande gorila.
Kívia não dormia. Esse era o problema de contar certas histórias para a menina. Ao invés de dar sono, deixava-a mais alerta que nunca, curiosa e concentrada em tudo o que Hannah contava.
— Precisamos dormir, bonequinha. Já está muito tarde. Amanhã eu continuo.
— Ahhh...
— Amanhã....
Hanna deu um beijo na testa da prima, levantou-se e foi para a própria cama, que, aliás, era bastante desconfortável. Mas era o que tinha.
Ela tinha terminado de contar a história para Kívia, mas as lembranças teimavam em dançar em seu pensamento. Naquele dia, a mãe deu a ela um anel.
— Hannah, querida, venha aqui — a mãe tinha lhe chamado — tenho um presente para você.
— O que é, mamãe?
— É um anel. Esse anel foi meu. A minha mãe, sua avó Dayse, me deu no meu aniversário de dez anos. Eu sempre o usei e agora quero que você fique com ele.
Hannah amou o presente. Além de ser um anel lindo, tinha uma história mais linda ainda.
— Cuide bem dele, filha! Não o tire do seu dedinho! — alertou a mãe, colocando o anel no dedo da filha.
Hannah nunca mais deixou de usar o anel. Era dourado e tinha uma fada esculpida no metal. Era uma joia delicada, perfeita para aquela ocasião.
Hannah esticou a mão, encarando o anel em seu dedo. Que saudade sentiu. Daria qualquer coisa para ter a mãe e o pai de volta. Chorou. Colocou o travesseiro sobre o rosto, para abafar o som triste de sua dor. Chorou até dormir.
Dormiu segurando a foto dos pais.