- Senhora, Pode entrar!
Era minha primeira consulta com uma psicóloga e eu ainda não tinha certeza se deveria ter vindo. Essa ideia surgiu do Mateu, e ele nem se quer veio.
- Obrigada Querida!
- Boa Tarde Branca. Tudo bem? Sente-se por favor!
- Boa tarde Doutora, obrigada.
- Qual o motivo que a trouxe aqui?
- Doutora, na verdade quem marcou essa consulta foi o Mateu, meu esposo. Como pode ver o interesse, ele nem compareceu. E com isso, eu não sei muito o que fazer aqui! -
Eu entendo! Mas já que você teve interesse e veio, nós podemos conversar um pouco sobre você e consequentemente sobre o seu esposo também. Certo?
- Tudo bem. Vamos conversar um pouco!
- Ótimo, conversaremos a partir do que você queira começar me dizendo. Como é a nossa primeira consulta, eu preciso te conhecer um pouco. Sinta-se à vontade para começar.
- É... Desculpa, mas ainda não sei direito como começar.
- Tudo bem, é assim mesmo. Vai no seu tempo!
- Bom. Acredito que o motivo pelo qual o Mateu marcou essa consulta, é porque estamos enfrentando muitos desencontros no nosso casamento. Estamos brigando muito, e ele tem sido bem resistente ao me ouvir, e tentar entender o meu lado como esposa.
Respirei fundo e cabisbaixa comecei a me abrir. As palavras foram saindo naturalmente e eu apenas me permitir.
- Por muitos anos, vivi cedendo alguns caprichos que ele tinha, e isso foi aumentando muito. Chegando a um nível em que as crianças presenciam as nossas diversas discussões em casa. E isso tem me afetado muito! Eu tenho consciência que relacionamento é sobre uma vida a dois, mas já tentei de todas as formas mostrar isso para ele. mas já percebi que não será fácil!
Parei, respirei novamente e olhei para ela.
- Muito bom Branca, pode continuar se você quiser.
Nesse momento uma pressão caia sobre os meus ombros e eu começava a me sentir exausta. Mas ainda assim, muito confortável em conversar.
- Eu queria apenas que ele pudesse compreender que a nossa história não é mais um namoro da faculdade e que a nossa família deveria sim, ser a nossa maior prioridade.
Nesse momento as lágrimas rolaram em meu rosto e não fiz questão de segura- las. Apenas abaixei a cabeça e fiquei quieta.
- Está indo bem. Toma isso aqui!
Ela me entregou um lenço de papel e ficou calada. Apenas me esperando...
Respirando profundamente por algumas vezes, tentei me recompor e continuar a nossa sessão. Mas as lágrimas não me deixaram.
Um silêncio ainda maior se fez e apenas o meu choro ecoava por toda a sala. Ela permaneceu calada, me deixou muito confortável com a sua paciência, tendo apenas uma única atitude que foi se levantar e me entregar um copo com água. E eu chorava, chorava, chorava a ponto de soluçar. Eram lágrimas antigas, eram lágrimas sufocadas.
Depois de muito chorar e começar a soluçar bastante como uma criança, ela me chamou pelo nome e eu olhei para ela. Só nesse momento, comecei a perceber a importância de ter alguém para conversar. Principalmente, alguém que realmente esteja disposto a te ouvir de verdade.
- Branca?
- Oi doutora.
- Como se sente?
Continuei olhando para ela sem respostas a dar, apenas olhava como um animalzinho que sentia medo e incertezas.
- Eu vou te ensinar um exercício e preciso que você tente realiza-lo com muita calma. Tudo bem? Preciso que se concentre e não tenha pressa alguma. Apenas faça e quando se sentir mais calma, continuaremos. Ok? Vamos lá!
-> Imagine que você tem em uma de suas mãos uma flor, e na outra uma vela acesa.
-> Suavemente, encoste a flor em seu nariz e sinta seu perfume, apreciando-o.
-> Após, afaste a flor e lentamente sopre a vela pela boca como se estivesse apagando-a, com todo o cuidado e sem usar qualquer força excessiva.
-> Por fim, com muita calma e atenção, repita esse processo por algumas vezes até que se sinta mais calma. Não tenha pressa, estarei aqui para quando você se sentir melhor.
Assim que ela concluiu as orientações, comecei a fazer o exercício e ainda com as lágrimas escorrendo pelo meu rosto fui sentindo todas as emoções possíveis, a que mais se tornou presente foi a fragilidade e o medo. Mas continuei e depois de algumas tentativas comecei a me sentir bem melhor e mais leve. Mas continuei por mais duas ou três vezes.
- Doutora?
- Oi! Como se sente agora?
- Eu me sinto muito melhor! Mais leve e mais calma. Me sinto menos exausta também. Mais um pouco confusa! Em alguns momentos eu sentir medo e angustia, mas não consigo entender exatamente o porquê.
- As dores são complexas, e em alguns casos, elas doem por motivos presentes e atuais; mas em outros, elas nos machucam por ainda estarem presentes em algumas feridas que permanecem escondidas abaixo de cicatrizes que pensamos estar totalmente curadas. Mas isso é algo que precisa ser trabalhado com muita paciência, e é você quem tem a chave para fechar totalmente essa ferida curada apenas de maneira superficial.
Abaixei a cabeça e olhei para as minhas que estavam molhadas de tanto suor, a minha boca secou e a saliva descia seca na garganta. Respirei profundamente pelo nariz e soltei todo ar pela boca por duas vezes seguidas. Olhei para ela e disse e lhe disse algumas palavras.
- Doutora, eu sempre evitei buscar a ajuda de qualquer pessoa em minha vida. Nunca confiei em me abrir com ninguém. Já pensei por diversas vezes em conhecer e poder conversar com um profissional, mas nunca consegui. O medo de me abrir nunca me permitiu. Mas depois de hoje, eu entendi que nem tudo somos capazes de resolver sozinhas e que não há nenhum problema em se ouvir e buscar ajuda. Eu me sinto muito mais calma e muito leve depois da nossa conversa.
- Ok! Muito bom! Pratique o exercício sempre que precisar. Quando perceber que fugiu do controle ou quando você sentir que suas emoções estão prestes a explodir. Se concentrar na respiração te traz de volta e lhes fornece a sensação de que você saiu do centro do medo. Espero poder ver você novamente na próxima seção. Por hoje a nossa conversa se encerra aqui!
Apenas consenti acenando com a cabeça e levantei do sofá, indo em direção a porta, quando ela me pegou por uma das mãos dizendo.
- Se precisar, pode usar o banheiro aqui da sala mesmo.
- Obrigada!
Entrei no banheiro, lavei o rosto, me olhei no espelho e senti vontade de chorar novamente. Pareciam que essas lágrimas estavam sufocadas a muito tempo, esperando apenas, uma oportunidade para saírem.
Fiquei lá alguns minutos, me contive e retoquei a maquiagem. Ao mesmo tempo. Ao mesmo tempo que me sentia aliviada em ter conversado, eu me sentia como se precisasse de mais. Sair do banheiro e dei apenas um leve sorriso para ela, ela fez o mesmo como se soubesse que eu estava agradecendo pelo cuidado.
Sair da clínica e me deparei com uma forte chuva. Corri até o estacionamento e entrei no carro, por sorte tinha uma toalha de rosto de uma das meninas no banco de trás e me sequei um pouco; mas algo parecia me incomodar bastante, mas eu não conseguia entender o que se tratava.
Segui até a escola das meninas e fiquei esperando elas saírem por uns dois minutos ou um pouco mais. Nesse momento, inquieta, peguei o celular e coloquei em um podcast. Sempre ouço alguns sobre positividade, mas toquei o dedo na tela e sem querer entrei em uma live. Ainda era um podcast, mas com apresentadores que não costumo escutar.
“Você já se perguntou porque existem tantas brigas em seu casamento? Você já parou para pensar que isso pode ser uma transmissão psíquica de trauma a repetição?” no Analisando a Mente de hoje falaremos sobre...
Bloqueei a tela do celular desconectando a live. A partir daí, tudo começou a acontecer; sentir como se algo estivesse me enforcando. Comecei a suar e me tremer muito, ao mesmo tempo em que chorava. Sentia uma angustia muito forte, um medo desesperador, e tudo começou a vim à tona.
Um gatilho foi acionado, e todas as lembranças dolorosas da infância se faziam presente em minha mente. Fiquei completamente conturbada, a minha visão ficou embaçada e o espaço de dentro do carro parecia pequeno demais e cada vez mais me dava a sensação de que iria me esmagar.
E então eu chorei, chorei muito, a ponto de soluçar. Não conseguia parar! Eu não tinha controle! Mas precisava me manter firme pelas meninas. Foi aí que decidir abrir a janela e pôr o rosto um pouco para fora e fiz o exercício da respiração que a psicóloga havia me ensinado na sessão. No momento em que ela me ensinou achei banal e infantil, mas funcionou muito bem! A partir daí fui me tranquilizando e sendo capaz de segurar as lágrimas, assim como as minhas emoções.
Não demorou muito, e elas vieram me gritando desde o portão da escola.
- Mamãe?
- Mamãe?
Elas corriam como se estivessem competindo pelo primeiro lugar nos meus braços.
- Oi minhas princesas lindas, que saudade de vocês.
Me abaixei e abracei elas. De volta as duas também me abraçaram e juntas deram um beijo em cada bochecha. Por mais que tentasse esconder a Aurora sempre muito observadora me perguntou.
- Mamãe, você estava chorando?
- Não meu amor. A mamãe só está com a renite muito forte e é por isso que meus olhos estão tão vermelhos assim.
Ela continuou me olhando, como se não tivesse acreditado. Mas logo foi puxada pelo braço para entrar no carro.
- Calma Olívia! Assim você me machuca.
- Desculpa Aurora, sua mimada!
Entrei no carro e me virei para trás, pedindo para que eles colocassem o cinto de segurança. Mas elas já tinham feito isso! Parabéns meninas, vocês colocaram o cinto antes mesmo que eu pudesse pedir. Já são duas mocinhas, e por isso, hoje iremos tomar um sorvete antes do almoço.
- Eba!
Me espantei quando apenas a Olívia comemorou a notícia. Diferente da Aurora que permaneceu calada e com um semblante de seriedade. Fingi não perceber e decidir conversar com ela apenas em casa.
Me virei para frente e seguir para a sorveteria. Para quebrar o silêncio da Aurora, coloquei a sua música favorita. Mas, nem mesmo a música mudou o jeito dela. Aquilo me intrigou ainda mais e então pensei em novas ideias para animá-la.
- Meninas, o que vocês acham de passar na vovó?
- Não mãe! Eu quero ir para casa.
Olhei pelo retrovisor e a cada minuto que passava a Aurora ficava mais diferente do seu normal. Ela é sempre muito alegre e falante. Não mais que a Olívia, mas ainda assim, bem espontânea, e aquilo começou a me preocupar um pouco mais. Já tinham muitas coisas em minha cabeça e tudo parecia se misturar, me confundindo demais. Então parei na sorveteria para que as meninas pudessem pegar suas sobremesas, e só depois de um banho eu pensaria com mais calma em tudo que aconteceu hoje.
Não demoraram muito e elas saíram de lá com suas escolhas, cada uma com sua sacola na mão. Entraram no carro e fomos para casa. Chegamos e ainda no estacionamento tive outra crise como a que tive em frente à escola, mas dessa vez foi com menos intensidade e eu apenas parei e respirei fundo com a cabeça virada para cima e me tranquilizei, tentando disfarçar a emoção e não transparecer nada para elas. Mas quando me recuperei e olhei para frente a Aurora estava parada me olhando.
- Oi Filha, vamos?
Sem dizer uma palavra, ela me entregou uma das sacolas que segurava e seguiu. Abrir a sacola e dentro tinha uma caixinha amarrada com um lacinho branco, imaginei que seria uma lembrancinha da escola, mas ao tirar a fita sorrir em ver que dentro, na verdade tinha um Morango do Amor em forma de coração. Fiquei muito feliz com a atitude dela, em ter comprado para mim, um doce nesse formato.
Entrei em casa e fui direto para a cozinha. Lá, as meninas já estavam sentadas a mesa esperando a Maria colocar o almoço. Junto a elas, estava o Mateu. Quando olhei para ele sentir um enorme desconforto e peso na região dos ombros e nuca. Algo que nunca havia sentido antes.
- Oi meu amor, vem! Senta aqui com a gente.
Sentir uma espécie de raiva misturada com nojo e só consegui responder que precisava tomar banho, saindo da cozinha e indo direto para o quarto, entrei no box do chuveiro e de roupa e tudo me molhei da cabeça aos pés. E chorei! Eram diversas as emoções que eu sentia, e ao mesmo tempo que um calafrio subia pelo meu corpo, eu parecia estar suando em baixo do chuveiro, e ainda mais eu chorava.
- Branca? Abre a porta!
O Mateu me seguiu até o quarto, mas eu tinha trancado a porta do banheiro e ele não pôde entrar, ficando apenas batendo na porta, enquanto chamava o meu nome. E eu chorava! Chorava por lembrar de tudo que vi durante a minha infância; por me recordar de todas as dores que vi a minha mãe passar, quando os meus pais brigavam; chorava por lembrar que por diversas vezes escondida, via ela chorando e tentando esconder com roupas mais compridas as marcas das agressões. E ainda mais eu chorava, por perceber que essa realidade está presente na família que construir! E que uma ferida, está se abrindo na minha filha. Ferida essa, que há muitos anos atrás foi feita em mim, e até hoje doí.
Por mais que eu dissesse a mim mesma durante toda minha infância e adolescência que não viveria aquilo, parece que o destino entendeu diferente e me pregou uma peça. Hoje vivo com o Mateu, uma vida muito parecida com a vida dos meus pais. A única diferença, é que na minha relação com ele não existem agressões. Mas todas as nossas brigas e conflitos tem palavras ofensivas e xingamentos. Por mais que tente evitar, algumas delas tem a presença das meninas.
Por muito tempo tentei entender o porquê de doer tanto sempre que brigávamos. Mas não era uma dor passageira! Eu sentia como se algo apertasse fortemente o meu peito até que ele pudesse estourar; sentia um vazio inexplicável; me sentia frustrada, enganada por mim mesma. E ele sempre conseguia me deixar pior, com todas as palavras que ele usava. Além de dizer, que todas as nossas brigas, eram causadas por paranoias minhas.