
O ponteiro vermelho do relógio na parede
marca os intermináveis segundos daquela tortura mensal à qual eu sou submetida,
e eu foco no tic-tac enquanto me acomodo na confortável cadeira de camurça do
consultório. Eu não queria conversar, só queria dormir, mas, para isso,
precisava aguentar aquela hora interminável, olhando desinteressadamente para o
rosto avaliador do homem grisalho e bochechudo.— Então, como você está se sentindo? — ele me questiona as mesmas coisas toda sessão, e a resposta simplesmente parecia não mudar.
— Cansada. O remédio não está me ajudando a dormir — informo, ainda olhando desinteressada para o relógio na parede.
— Você está tomando da forma correta? — uma pergunta necessária, mas que me dá uma pontada de irritação.
— Da forma que o senhor colocou na receita — respondo com o tom ríspido, enquanto observo a caneta nervosa rabiscar o caderno.
Aquilo faz com que eu bufe, irritada, mas, se quisesse ser liberada daquele martírio, precisaria tomar cuidado com meu temperamento.
— O que está acontecendo exatamente com seu sono? — ele me observa por cima dos óculos, com seus olhos caídos, e me pergunto o que exatamente eu estava fazendo ali.
— Sinto que minha cabeça não para e, quando finalmente consigo dormir, os pesadelos voltam, me acordando... — me estico na cadeira, procurando por uma posição mais confortável, e suspiro fundo. — Me sinto um zumbi na maior parte do tempo.
— Acha que os pesadelos têm relação com o trauma que sofreu? Como se as memórias quisessem retornar? — dessa vez, ele pergunta de forma mais direta, fazendo minha mandíbula se apertar.
Eu havia “retornado dos mortos” depois de um ano. O reboliço que aquilo causou tomou uma proporção internacional. Eu não poderia chegar contando que havia viajado para outro mundo. Por mais que as teorias da conspiração já especulassem a respeito, eu sabia que seria tratada como louca.
— Não... Ainda não me lembro de nada — minto, e provavelmente ele sabia. Neusa já devia ter contado sobre meus “delírios”, e o homem só estava me testando.
Mais uma canetada em seu caderno, e eu começo a ter certeza de que ele não confiava nas minhas palavras.
— Sentiu algum efeito colateral do resto da medicação? — questiona, me analisando por cima dos óculos.
— Bom... Se a intenção de tomá-los for me deixar feliz, eles não estão funcionando da forma correta. Sinto que, se eu visse um bebê morrer na minha frente, eu não sentiria grande coisa — péssimo exemplo para dar ao médico psicoterapeuta, mas já tinha saído.
Eu não sabia exatamente como me sentiria se visse uma cena como essa, mas, no estado de apatia em que me encontrava, era o que eu conseguia imaginar que aconteceria.
Identifico um sorriso discreto despontar no rosto do senhor. Com certeza, ele ouve muitas bobagens com frequência, e imagino que eu tenha dado minha contribuição.
— Me sinto dopada e incapacitada de dormir ao mesmo tempo — finalizo, apertando os lábios.
— Como estão suas crises? Teve alguma recentemente? — aquela maldita pergunta me faz respirar fundo.
— Não tive nenhuma crise recentemente — falo, com certa falta de paciência. — A última foi quando agredi o meu ex-chefe, há cinco meses... Foi quando você entrou com o... antipsicótico — informo, coçando minha testa, e novamente ele escreve no caderno.
— Como você está lidando com essa situação?
Lembrar daquele episódio me deixa extremamente irritada. Eu fui assediada e, depois de quebrar o braço do assediador em dois lugares, acabei afastada do serviço, como se meu estado de estresse tivesse me levado a atacá-lo.
— Ah... Estou lidando bem. Ser afastada me deu mais tempo para treinar, e eles ainda estão me pagando para ficar em casa. Não poderia estar melhor — dou um sorriso sarcástico, e ele sorri de volta para mim.
— Digo... Em relação a ter ferido o seu colega. Você havia mencionado que “não o matou porque não tinha um bisturi ao seu alcance”. Ainda pensa assim? — ele relembra minha citação, e eu engulo em seco.
Eu estava irada na época, e ameaçar o homem de morte foi um momento de impulso.
Não deveria ter dito aquilo. Precisava parecer arrependida pelos meus atos, mesmo considerando minha reação bem razoável diante do ocorrido.
Mais uma canetada e um sorriso discreto. Queria muito saber o que ele tanto escrevia naquele caderno.
— Ainda frequenta as aulas de esgrima?
— Sim... — respondo, impaciente. As perguntas não pareciam me ajudar, e eu queria ir embora dali. — Olha, eu me sinto cansada, de verdade... Estou bem, só preciso dormir. Você não pode simplesmente me passar alguma coisa mais forte, que vai me... apagar de vez?
Estava desesperada. Havia três anos que eu praticamente não tinha uma noite inteira de sono, e tudo na minha vida parecia desandar por conta da minha falta de disposição para viver.
— Vou trocar sua medicação. Vamos trabalhar para que você durma! — o médico afirma, me dando uma sensação de esperança e alívio.
— Agradeço muito, doutor Solowich. O senhor vai transformar minha vida em um lugar melhor! — brinco, fazendo-o sorrir, enquanto pacientemente assinava a receita.
— Quero marcar seu retorno para quinze dias — ele estende a folha de papel para mim e simplesmente solta a bomba.
— Quinze dias? — pergunto, incrédula. — O último foi há um mês...
Pedir um retorno com metade do tempo de costume, para mim, só poderia significar que as coisas não iam bem e que eu teria que aturar aquela tortura por mais tempo.
Eu havia começado as sessões por insistência de Neusa. Nosso relacionamento estava totalmente desgastado pelas minhas crises e, devido a alguns acontecimentos, não estávamos nos dando bem.
— Calma... Você está evoluindo. Eu só preciso acompanhar a medicação nova — Solowich tenta me tranquilizar. Com certeza sabia que estar ali era a morte para mim.
— Não me sinto evoluindo vindo aqui todo mês, menos ainda vindo a cada quinze dias.
— Você passou por um trauma muito grande, ficou em cativeiro por mais de um ano, e isso gerou um bloqueio na sua mente que, até o momento, não conseguimos acessar... — o homem começa a falar, e meu coração se acelera.
Essa era a versão oficial da polícia sobre o meu caso — o que fazia Solowich crer ser o motivo do trauma e da “falta de memória”.
— Ninguém adoece sem ter um motivo, Laura. Isso que você está passando nesses três anos não veio do nada, só não conseguimos acessar a origem do problema...
Eu sabia a “origem do problema”. Sabia exatamente o motivo de todas as minhas frustrações, mas não queria falar. Eu não poderia. Simplesmente seria tratada como louca, e me enfiariam mais remédios do que eu já estava tomando.
— …ainda.
Olho para o rosto rechonchudo do senhor, e ele me avaliava com a expressão curiosa. Ele sabia que eu escondia alguma coisa, e que minha evolução não era maior em consequência da minha falta de abertura.
— Mas, com paciência e muito trabalho duro, vamos chegar lá. Você só precisa se encontrar e se sentir confortável para falar. Eu vou te ajudar com o que precisar, até você estar pronta.
— Espero que tenha razão — falo sem muito entusiasmo. Não via como ele poderia me ajudar. Ninguém poderia me ajudar.
***
Entro no carro de aplicativo e coloco meus fones enquanto sigo até meu destino. A música alta me acalmava, e havia começado a chover. Observo as gotículas colidirem contra o vidro e serem arrastadas pelo vento até desaparecerem por completo.
Era rápido, muito rápido, e eu frequentemente me perguntava se, com a forma como eu estava levando minha vida, quanto tempo levaria para que eu finalmente sumisse?
O som estridente do celular começa a tocar dentro da minha cabeça, me arrancando daquele transe e pensamentos melancólicos. Olho para a tela, e o número com o DDD de outro estado me faz sorrir.
— Alô?
— Boa tarde, menina. Como você está? — a voz simpática e amiga havia sido frequente naqueles três anos, e eu me sentia bem em ouvi-la.
— Boa tarde, Jairo. Estou bem. Como você e a Sueli estão? — pergunto amistosamente para o senhor com quem eu havia criado uma inusitada amizade.
Após retornar para meu mundo, segui pela trilha até uma pequena vila na estrada à procura de um telefone, e as boas referências de Jairo fizeram com que eu conseguisse contato com ele. O senhor ficou totalmente em choque ao conversar comigo pelo telefone — e mais ainda ao me buscar, depois de um ano que tinha me levado até a entrada da trilha.
— Muito melhor do que a gente merece — me informa com uma gargalhada gostosa, que eu retribuo com esforço.
— Você anda mais tranquila? Tem um tempo que a gente não conversa — o senhor me pergunta com cuidado, e eu me preparo para mentir.
— Estou sim. Acabei de sair do psicoterapeuta. Ele disse que estou evoluindo bem — deturpo a conversa. Eu sabia que não estava indo bem.
— Fico feliz. Abóbora trouxe a mulher e três filhotes pra casa, acredita? É a primeira vez que ele assume família — Jairo me conta, empolgado, e eu sou incapaz de segurar um sorriso.
— Mesmo?! Quem diria! Abóbora virou um gato de família! — brinco com o senhor. Ele parecia satisfeito com os novos moradores.
— Um dos gatinhos é a coisa mais bonitinha. Você podia vir buscar ele pra você. Você gosta de gatos. Vou ficar com todos, mas se for pra você, eu dou — ele me oferece, e eu sorrio com a consideração.
— Eu adoraria, mas Neusa é alérgica, e eu ainda estou morando com ela — informo, o deixando em silêncio por alguns segundos.
— Vocês fizeram as pazes? — a pergunta preocupada faz meu coração se acelerar, e eu seguro a vontade de chorar.
— É... Complicado. Uma machucou muito a outra, estamos trabalhando nisso — tento explicar, e ele respira fundo pelo telefone.
— Ela é sua mãe, menina. Ela ama você. Ela errou, mas foi tentando acertar. Você precisa perdoá-la.
— Eu ainda não consigo — falo, engasgada. O sentimento de decepção me consumia, e eu me sentia totalmente esgotada.
— Mas você precisa. Laura, perdoar é um ato de força, e você é muito forte.
— Eu não me sinto forte — respondo imediatamente, e Jairo me interrompe.
— Mas você é! Nós não perdoamos porque as pessoas merecem perdão. Nós perdoamos porque nós merecemos paz! — as palavras fazem meu rosto queimar. — Pode parecer que o perdão é um ato de altruísmo, mas não é. É um ato totalmente egoísta. Perdoamos por nós, e não pelo outro.
— É um bom ponto — respondo com um sorriso no rosto. Eu ainda não estava preparada para perdoar. Não estava preparada para ter paz. Mas sentia que estava um passo mais próxima desse objetivo.
— Vocês duas merecem uma segunda chance. E, qualquer coisa que precisar, você já sabe... Pode vir morar com a gente. Tem até um quarto aqui arrumado pra você.
Solto um pigarro com a hospitalidade. Os filhos e os netos moravam longe, e eles eram um casal carente.
— Fico feliz em poder contar com alguém — agradeço com um tom agradável, mas um sentimento de amargura tomava conta do meu peito.
Jairo acreditou na minha história e me deu apoio, enquanto Neusa me tratou de forma ríspida e queimou as coisas de Azarias e os pertences que eu trouxe de Andenia, para que eu “parasse com os surtos”.
Volto minha atenção para a chuva do lado de fora e fico remoendo o assunto. Eu precisava perdoá-la. Eu queria perdoá-la, mas a única chance que eu tinha de encontrar outro portal para atravessar de volta estava naqueles documentos e ela os havia destruído para que eu “voltasse para a realidade”.
Converso com o homem por mais alguns minutos e desligo o celular. Não demora até que ele toque novamente, mas, dessa vez, olho para a tela e simplesmente ignoro a chamada. Não queria conversar com ela. Eu estava indo para casa, e lá a gente conversaria, caso fosse necessário.
Vou ao supermercado e compro o que faltava na despensa antes de subir para o apartamento. Aguardo a moça do caixa finalizar de passar as compras, quando sou atingida por um menino correndo.
—Desculpa. — ele pede com a face assustada, de quem temia uma bronca, mas não consigo responder. O cabelo bagunçado e as sardas no rosto fazem meu corpo tremer.
Uma lembrança de Rob toma conta da minha mente, e logo flashes daquele dia começam a me atormentar.
Um frio na barriga irradia pelos meus músculos, e preciso me escorar em algum lugar para não me desequilibrar. Fecho os olhos e respiro fundo, conto até quatro lentamente e expiro todo o gás carbônico.
Meu coração estava acelerado, e eu suava frio. Eu precisava sair dali, mas, se fizesse isso agora, provavelmente passaria mal — e Neusa não poderia saber.
— Moça, você está bem? Posso te ajudar? — a voz preocupada me traz de volta à realidade, e eu a procuro.
— Estou sim, só... Não almocei ainda, e acho que minha glicose abaixou. Você pode mandar entregar as compras no apartamento, por favor?
Peço à atendente. Imediatamente, ela pega minhas coisas com um rosto simpaticamente preocupado, e eu sigo para o prédio ao lado, em direção ao terceiro andar.
Paro em frente à porta branca e começo a procurar as chaves na bolsa. Novamente o telefone toca, e eu recuso a ligação. Aquela insistência me deixa irritadiça, e começo a resmungar e me estressar por não encontrar a porcaria das chaves.
— Oi, Laura — a voz grossa me causa arrepios, e eu olho lentamente para trás, avaliando o vizinho.
— Oi — respondo seca, voltando minha atenção para a bolsa.
— Você não me ligou...
— Tenho andado ocupada ultimamente! — justifico, sem dar muita satisfação.
— Entendo — ele parece pensar por um momento, mas continua ali, parado, me avaliando.
— É que eu fiquei preocupado. Depois do beijo você não resp…
Agressivamente, despejo a bolsa inteira no chão, e ele engole em seco.
A lembrança me deixa angustiada, e eu só queria me esquecer dos meus arrependimentos. Eu havia aceitado sair com ele por pressão de Neusa. Segundo ela, “eu precisava retomar a minha vida”, mas, depois que ele me beijou, um sentimento de nojo me consumiu, e eu tive certeza de que não estava preparada para dar esse passo.
Pego a porcaria das chaves e destranco a porta antes de finalmente recolher o resto das minhas tralhas espalhadas pelo piso.
Eu queria me livrar dele, mas o médico bem-apessoado se abaixa do meu lado e começa a me ajudar em silêncio, com o rosto decepcionado.
Me sinto mal pelo meu comportamento e respiro fundo. Ele não merecia. Ele não tinha culpa por nenhuma das minhas frustrações e arrependimentos, mas eu teria que acabar com aquilo.
— Olha, Rafael... — encaro o homem moreno, de olhos verdes, na minha frente, e começo a desabafar — Você é um homem incrível... mas eu não estou preparada para ter um relacionamento com ninguém. Neusa não deveria ter passado meu número para você, e eu deveria ter sido mais responsável e não ter aceitado o convite para jantar, sabendo que esse tipo de mal-estar provavelmente aconteceria.
Nos levantamos, e ele calmamente sorri para mim, com o olhar ainda decepcionado.
— Você merece alguém que te carregue no colo. Mas essa pessoa não sou eu — respiro fundo.
O homem guarda as mãos nos bolsos da bermuda e faz um movimento positivo com a cabeça, olhando para o chão. Seu olhar encontra meu rosto, e um sorriso branco desponta dos seus lábios carnudos.
— Bom saber que você não é do tipo que enrola... Amigos? — ele fala, estendendo a mão para mim, e eu a aperto.
— Amigos! — respondo, sorrindo um pouco sem graça pela situação.
— Vejo você pelos corredores — brinca, com um ar sedutor que eu não estava disposta a respirar, e faço um movimento positivo com a cabeça enquanto entro no apartamento.
Jogo as chaves em cima da mesa e finalmente desabo no sofá. Me estico no estofado quando o telefone toca.
— Inferno! — rosno antes de me levantar para atender.
— Alô?
— Boa tarde, consigo contato com Laura Paganini por esse número?
Respiro fundo mais uma vez, me preparando psicologicamente para não surtar.
— É ela — me identifico, um pouco
impaciente.
— Meu nome é Isadora Coelho. Tenho um podcast de assuntos sobrenaturais.
Gostaria de agendar uma reunião para conversarmos sobre o ocorrido em Bonito,
atualizar o caso e talvez desenvolver um document...
— Isadora, é o seguinte... Não tenho interesse nenhum em falar sobre o caso, e já falei isso nas trocentas ligações que recebi. Eu excluí todas as minhas redes sociais para ter paz e, pelo amor de Deus... faz três anos!
— Talvez pudéssemos conversar sobre como está lidando após o ocorrido...
— Isadora, posso te pedir uma coisa? Vai para o inferno! — desligo o telefone, praticamente sem ar.
Ela não parecia uma pessoa ruim, tampouco merecia ouvir desaforo, mas eu estava cansada. Todo dia parecia a mesma coisa, e eu já não aguentava mais.
O telefone toca novamente, e eu atendo, estressada.
— Eu não vou falar com a merda do seu podcast!
— Laura?! — a voz chama meu nome, e eu engulo em seco.
— Oi, Neusa — respondo.
— Imprensa, de novo?
— Sim.
— Vamos ter que trocar o número novamente. Já deve ser a quinta ligação esta semana — me informa com a voz tranquila. — Chegou bem em casa?
— Cheguei agora.
— Consegue vir me buscar no hospital?
Neusa pergunta com cuidado, e meu coração se aperta. Eu não havia atendido as outras ligações, e o fato de ela estar no hospital não poderia ser bom sinal.
— Aconteceu alguma coisa? — pergunto, com um tom preocupado. Eu mal conseguia respirar.
— Nada demais. Senti uma dor no braço e fiquei com medo de ser o coração, mas, aparentemente, é só a idade que chegou. Estou com desgaste nos ligamentos.
Recebo a notícia e um alívio me faz sentir o peso sair dos meus ombros.
— Estou indo agora! — falo, soltando minha respiração.
Pego as chaves do carro de Murilo e sigo agoniada para o hospital. Eu não gostava de dirigir, ainda não tinha me readaptado, mas Neusa não sabia pedir carros de aplicativo, e sempre sobrava para mim quando Murilo estava viajando.
Percorro todo o caminho pensando que poderia ter acontecido algo grave e que eu não teria atendido as ligações. A sensação de remorso começa a me consumir. Tínhamos nossas diferenças, mas ela era minha mãe, minha amiga. Sempre foi minha parceira para tudo e, por mais que eu estivesse chateada, eu precisava melhorar nossa convivência.
Neusa era praticamente a única pessoa que eu tinha na vida, mas a sensação de traição que eu sentia depois que ela destruiu minhas coisas me dava a impressão de que eu nunca mais conseguiria me recuperar.
A senhora me aguardava na rampa e não demora até que entre no carro. Ela, incrivelmente, não me cobra as ligações perdidas e apenas ficamos ali, em silêncio, enquanto voltávamos para casa.
— Como foi com o psiquiatra? — a voz ansiosa rompe a tensão entre nós, me questionando com cuidado.
— Foi bem — respondo como se estivesse com uma bolha na garganta.
— Rafael esteve lá em casa hoje de manhã. Queria conversar com você. Ele é um bom rapaz, você deveria...
— Já me resolvi com ele — interrompo, de forma ríspida, e ela olha para mim imediatamente.
— O que vocês resolveram?
— Que vamos ser vizinhos — aviso, sem muitos detalhes, e consigo observar seu rosto se contorcer pela visão periférica.
— Tudo por causa do namorado imaginário... — ela resmunga, e eu mordo o lábio inferior antes de respondê-la.
— Não. Na verdade, é pelo marido imaginário — respondo ironicamente, o que acaba com a paz dentro do carro.
— Eu desisto. Não consigo mais — esbraveja, alterada.
— Graças a Deus. Um pouco de paz! — provoco.
— Eu estou tentando melhorar, tentando ter paciência, mas eu não consigo ver você se destruindo e não fazer nada.
— Isso tudo porque eu não quis nada com o vizinho? — falo, rindo, e ela parece se irritar.
— Porque você não tem vida! — Neusa grita comigo, e minha mandíbula se aperta. — Têm três anos, Laura. Três anos. Nem luto dura tanto tempo, e você ainda não conseguiu tocar sua vida. Você não dorme, não trabalha, só sai de casa pra fazer aquela porcaria de aula de espada, se dopa de remédio e fica zanzando pela casa de madrugada, igual a um zumbi. Eu não consigo te ver assim, me faz mal...
— Eu volto para o meu apartamento, se for o caso...
— Não é o caso! Você não tem condição mental nenhuma de morar sozinha.
— Eu não estou inválida! — volto minha atenção para ela e grito, irritada.
— Então, por favor, REAGE!.
Uma buzina demorada me faz olhar para frente em um sobressalto. O semáforo havia se fechado, e preciso frear o carro de uma vez.
Ele desliza pelo asfalto molhado, e o pneu canta até parar em cima da faixa de pedestre.
O susto faz com que nos calássemos, e eu sinto minhas mãos tremerem no volante. Minha respiração ofegava, e uma pressão no meu rosto tenta arrancar lágrimas dos meus olhos.
— Eu não consigo — falo baixo, e Neusa começa a chorar do meu lado. — Eu só queria apoio. Eu queria uma amiga. Queria alguém com quem eu pudesse contar, que eu pudesse desabafar, mas não tenho. Sinto que estou pisando em ovos com você — desabafo com a voz trêmula, e ela coloca as mãos no rosto.
— Quando foi que ficamos assim?
A pergunta era honesta, mas eu apenas encosto a cabeça no volante.
Eu não sabia responder. Poderia dizer que o estopim foi quando ela destruiu minha única forma de voltar para Andenia, mas, quando chegou naquele ponto, nosso relacionamento já estava desgastado.
***
Entramos no apartamento em silêncio e, aparentemente, Murilo havia chegado de viagem. O telefone estava desconectado e enrolado em cima do armário, o que significava que havíamos recebido mais ligações indesejadas.
— Pensei em sairmos para jantar e reservei um restaurante. Tem bastante tempo que não saio com as minhas meninas e...
Murilo aparece pelo corredor e para de falar quando nos encontra com a expressão totalmente apática.
— Japonês, o que acham?
— Parece bom — Neusa olha para mim com os olhos atenciosos.
Ela não era a maior fã da culinária japonesa, mas faria um esforço pelo marido e até mesmo por mim.
— É... Parece bom — respondo com um sorriso sem graça, e Murilo mostra os dentes, satisfeito.
— Ótimo! Se arrumem, vamos sair às sete. Hoje vamos comer sushi...
Ele vira as costas, fazendo a dancinha da vitória, me impossibilitando de ficar séria.
Me visto com um vestido florido e faço um coque, a fim de deixar meus cabelos definidos. Olho para meu reflexo e observo meu pescoço nu. Um sentimento de tristeza faz com que meu corpo comece a tremer, minha respiração volta a ficar ofegante, e respiro fundo novamente, contando até quatro.
Se eu tomasse meus remédios, estragaria a noite, e eu não queria atrapalhar nosso passeio.
Expiro, soltando o gás carbônico, e começo a sentir náuseas.
Um filme do tempo que passei em Andenia roda na minha cabeça, e não consigo impedir que a imagem de Cássio invada meus pensamentos. O rosto, o calor, o cheiro...
Eu já estava me esquecendo de como era, e aquela sensação faz meu estômago se contorcer ainda mais em desespero.
Me abaixo no sanitário, e as contrações do meu abdômen me castigavam. Meu estômago estava vazio, e essa condição só tornava a ânsia de vômito pior.

Continua...