O vento arranhava o Complexo inteiro batendo nos mastros nas torres de xilita nas antenas nos trilhos cheios de gelo até fazer cada estrutura tremer como se o próprio ar quisesse arrancar tudo do lugar.
O Complexo de Ofertório de Limiar Norte morria.
As sirenes berravam um aviso único, repetido até a histeria:
— FRIO DE COLAPSO. FRIO DE COLAPSO. ABRIGOS IMEDIATOS. FRIO DE COLAPSO.
Corredores de pedra mineral vibravam com o impacto do som. Portas pesadas batiam. Trabalhadores largavam ferramentas, brinquedos inacabados, estatuetas brilhantes, caixas de presentes que jamais seriam entregues, e corriam sem olhar para trás.
Lá fora, a mina principal estava em carne viva.
O buraco gigantesco, que antes brilhava com paredes de minério exposto, agora era um poço de escuridão rasgado por rajadas de neve horizontal. A xilita das estruturas de apoio, estressada pelo calor excessivo das últimas semanas, rangia como dentes, braços de “madeira” mineral se contorciam, rachavam, cuspindo lascas afiadas.
Um supervisor, pendurado numa passarela que balançava, berrava quase sem voz:
— FECHEM AS CHAMINÉS! DESLIGUEM OS FORNOS! VAI RACHAR TUDO!
Ninguém conseguia chegar aos painéis de controle externos. A nevasca avançava como um animal cego, empurrando massas de gelo pela encosta da cava. Onde o frio encostava, portas emperravam, trilhos se congelavam em segundos, pele rachava sob as máscaras.
E o pior medo não era morrer.
O pior medo era ficar.
Jasmin, uma trabalhadora de linha, escorregou nas escadas metálicas e caiu de joelhos. A luva esquerda rasgou no corrimão e a pele dos dedos encontrou o ar aberto. A dor foi tão aguda que o grito ficou preso na garganta. Em segundos já não sentia nada, nem dedos, nem mão.
O frio estava espesso demais. Não era só temperatura, era substância, camadas invisíveis se acumulando sobre o Complexo, prontas para engolir.
Ao lado dela, um rapaz gaguejava, tentando ajudá-la a levantar:
— Vai, Jas... levanta... se congelar aqui e te deixarem, você...
Ele não terminou. Não precisava. Se o corpo endurecesse inteiro, se o sangue empedrasse na neve viva, não haveria morte, só suspensão. O tempo deixaria de passar, mas a consciência ficaria presa, apertada dentro do gelo, ouvindo o mundo indo embora em milímetros.
Melhor cair num poço. Melhor despencar até virar pó. Qualquer coisa menos isso.
Uma nova rajada veio da mina trazendo estilhaços de xilita e flocos de gelo tão afiados quanto lâminas. A passarela tremeu. Uma das torres de suporte, lá embaixo, partiu em dois com um estalo seco que explodiu a madrugada.
— Vai desabar! — alguém urrou, e a voz se perdeu no vento.
Foi nesse exato momento que um risco de gelo atravessou o tempo.
Não veio de cima nem de baixo, surgiu no meio do vazio, uma linha reta translúcida que atravessou a cortina branca como se alguém tivesse traçado um corte perfeito num vidro embaçado.
A linha cresceu, girou, cortou o vento em duas metades.
O ar, que antes girava caótico, se reorganizou atrás do rastro de gelo em duas correntes opostas, como se tivesse aprendido de repente que podia fluir em lados diferentes. Entre essas massas de furacão abriu-se um corredor estreito, um túnel de calma onde a neve caía em flocos lentos.
A criatura que criara a fenda girou no ar e voltou, um corpo longo, escamado de placas de gelo aerodinâmicas, olhos estreitos e curiosos. Uma lontra esguia de cristal.
Dasca.
Ela mergulhou na nevasca de novo, abriu outro corte e depois outro. A cada passada o vento obedecia, dividido em planos, empurrado para mais alto ou forçado ao chão. Em poucos segundos havia um caminho atravessando a desgraça, ligando as plataformas de acesso à borda da mina.
Jasmin arregalou os olhos dentro da máscara embaçada.
— Ela veio...
Um rugido baixo e pesado respondeu à distância, vibrando pelos trilhos congelados.
Das sombras da tempestade surgiu uma massa compacta de gelo e pedra avançando passo a passo contra o vento. Cada estilhaço que batia nela se desfazia em pó. Chifres de gelo embotado apontavam à frente como aríetes. Sob as patas grossas, a neve compactava sem escorregar.
Donn, o touro/mamute surdo, abria caminho recebendo na carcaça tudo o que o mundo arremessava.
Sobre seu dorso, equilibrando-se como se qualquer superfície fosse chão, vinha uma figura envolta em vermelho e branco.
À primeira vista parecia volumosa, um corpo largo coberto de camadas. Mas, conforme Donn se aproximava, dava para ver que o volume não era carne. Era neve viva.
Flocos finíssimos giravam em torno da mulher, grudavam-se em ombros, braços, cintura, acumulavam-se num manto espesso que escorria até os joelhos. Ao redor do rosto, a neve se condensava como uma barba branca que caía pelo peito, ora lisa, ora desgrenhada conforme a rajada.
Por baixo da neve, as vestes vermelhas ardiam como um sinal. Não era só cor, o tecido parecia sugar o pouco calor do ar e devolvê-lo em um brilho opaco que destacava o contorno da mulher contra o fundo branco.
Os olhos dela eram de um azul quase que cinza, líquido, cheios de reflexos espalhados. Por um instante, Jasmin sentiu uma coisa que não sentia desde outra vida.
Segurança.
Perchta tinha chegado.
O vento mudou de ritmo.
No alto, um grito agudo cortou o ar. Não parecia voz, parecia metal fino vibrando. Uma sombra grande cruzou o céu, apagando por um segundo as luzes das torres.
Pria, a ave de penas de aço, mergulhou em espiral, asas abrindo-se em segmentos múltiplos. Cada pluma era uma lâmina translúcida. Ela entrou direto no coração da tempestade acima da mina e ali girou e girou e girou.
A nevasca, como se tivesse ficado tonta, foi sendo puxada para o movimento dela. Nuvens densas que avançavam sem direção começaram a se organizar em uma espiral imensa, girando ao redor de um centro.
No meio daquilo tudo, abriu-se um olho calmo de céu cinza.
Debaixo desse olho, Perchta ergueu o braço.
— Dasca, mais fundo.
A voz não precisou de força. O vento parecia habituado a obedecer.
A lontra de cristal riscou o ar pela enésima vez, abrindo uma fenda direta até a borda da mina. Atrás dela, uma nuvem de luz se acendeu, como um enxame de fagulhas saindo de um braseiro.
Não eram fagulhas. Eram corpos minúsculos, carapaças minerais desenhadas em hexágonos, asas translúcidas.
Blixen.
O enxame se espalhou pela mina em segundos, enfiou-se por frestas, buracos, rachaduras. Cada inseto emitia um pulso de luz azulada que as superfícies devolviam. Onde a luz batia e voltava surgiam no ar hologramas efêmeros, contornos de túneis, paredes, bolsões de água, câmaras submersas, colunas de xilita prestes a romper.
Perchta olhou para cima, para o céu que agora girava obediente em torno de Pria.
O mundo estava em camadas, neve, vento, pedra, minério, água. Ela sentia tudo ao mesmo tempo, como se a própria pele tivesse sido estendida pelo Complexo inteiro.
— Komet.
Um estrondo seco respondeu da encosta. Uma forma rochosa rolou pela lateral da mina, corpo arredondado coberto de vidro, patas que se recolhiam e esticavam enquanto girava. Komet desceu como uma roda viva, batendo nas paredes internas da cava com impactos calculados.
A cada toque, microtremores corriam pelo solo. Em vez de piorar o desmoronamento, eles o reorganizavam. Blocos soltos se encaixavam, pilares de gelo se espessavam, o caminho da avalanche desviava para longe das plataformas onde trabalhadores corriam.
Perto da borda, um guindaste de xilita rangeu feio, rachaduras se abrindo como teias pelo braço principal.
Antes que despencasse, algo saltou das sombras das estruturas.
Um felino translúcido, veios minerais riscando o corpo, olhos incandescentes, avançou pela viga como se ela estivesse parada.
Vix.
Ela fincou as garras no ponto em que a rachadura começava. As falhas se iluminaram por dentro, linhas de luz correndo pelas fissuras. O osso da xilita se rearranjou, soldando-se num novo desenho. O estalo cessou.
Do outro lado da mina, uma massa densa e leitosa deslizava a um palmo do chão, como se flutuasse num mar invisível.
Cupra.
Ela se abriu sobre um grupo de trabalhadores que não tinham alcançado as escotilhas internas. O corpo parecia frio ao toque, mas o ar sob sua extensão se encheu de um vapor suave. O termômetro da parede, congelado em menos trinta e oito, começou a subir devagar, menos trinta, menos vinte e cinco, menos vinte.
Jasmin, ainda ajoelhada na passarela, viu o vapor saindo pela própria máscara. O queixo parou de doer. As pontas dos dedos começaram a queimar, sinal de que o sangue tentava voltar.
— Levanta — murmurou o colega ao lado, olhos fixos na criatura voadora. — Ela abriu um corredor. A gente consegue chegar lá.
No centro de tudo, Perchta fechou os olhos.
Era como estar no meio de um tabuleiro impossível. Cada gesto seu pegava em dezenas de pontos, vento, temperatura, neve, estrutura, pânico.
Ela inspirou fundo, a barba de neve ao redor do rosto vibrou levemente, como se respirasse junto. Ao expirar, soltou um fio de vapor que não se dissipou, subiu, tomou forma de espiral e desapareceu dentro da corrente que Pria comandava lá em cima.
Perchta estendeu as duas mãos para a mina. A neve ao redor de Donn respondeu imediatamente, desprendeu-se em filamentos que giraram em torno dos pulsos dela.
— Astor.
No lago de contenção abaixo da mina, a superfície escura tremeu. Algo empurrou a água de baixo para cima, formando um domo. Em seguida o domo se rompeu e uma cabeça arredondada emergiu, respingando gotas geladas.
Astor, a foca de pedra, ergueu os olhos minerais na direção dela.
— Preciso que ela não congele de vez — Perchta sussurrou, falando com a água, com o gelo, com o intervalo entre as duas coisas. — E preciso que você me diga onde o calor ainda está guardado.
Astor mergulhou outra vez. Blixen, lá dentro, iluminou o fundo do lago em flashes. Imagens térmicas, que só Perchta conseguia ver, se espalharam pela mente dela, camadas de sedimento frio, bolsas de minério já exaurido, poucas veias termominerais ainda na posição certa.
Um arrepio percorreu a coluna, pesado demais para ser só frio.
Eles já tinham arrancado quase tudo dali. O pensamento surgiu rápido demais para ser formulado como frase. Afundou sob a urgência.
À direita, um corredor lateral desabou. Neve, pedra e ferro despencaram em direção a um grupo que tentava evacuar. Blixen marcou o desmoronamento em linhas de luz. Komet já rolava naquele sentido, mas estava longe.
— Donn!
O touro avançou, um passo depois do outro, mina adentro. A cada passada o chão tremia sem ceder. Ele se plantou entre o desmoronamento e a saída. A muralha de gelo, pedra e sucata bateu no peito dele como uma onda. Por fora, só o impacto. Por dentro, milhões de microcacos escorregando e perdendo força. A avalanche se espalhou pelos flancos de Donn e passou, em vez de atravessar.
Atrás dele, gente começou a correr de novo.
Uma garota tropeçou, caiu de quatro na neve viva. Quando tentou levantar, o joelho já endurecia. Os olhos se arregalaram no começo do pânico absoluto.
Antes que o medo se cristalizasse, um pequeno vulto vermelho entrou no campo de visão dela.
Um animal menor, corpo de gelo quase transparente, patas rápidas, rabo longo. Na testa, um núcleo rubro pulsava como um coração exposto.
Rudra.
Ele encostou a testa no peito dela. O núcleo brilhou mais forte, espalhando um calor preciso pelo corpo dela, não o suficiente para aquecer o ar, mas bastante para reativar os músculos. Ela arfou e puxou o ar como se emergisse de uma água muito funda.
Rudra virou o focinho na direção de Perchta.
Ela viu o que ele via, manchas de azul escuro, frio mortal, espalhadas pelo Complexo, pontos de calor concentrado nos fornos ainda ligados, uma trilha tênue de morno ligando a mina ao lago de Astor.
— Temos que desligar os fornos — murmurou, mais para si do que para qualquer outro. — Ou o contraste vai rachar a mina inteira.
Outra sirene respondeu, mais grave e arrastada.
— ORDEM DOS ESSENCIAIS: PRODUÇÃO EM NÍVEL MÁXIMO ATÉ NOVO AVISO. PRESENTES EM ROTA DE ENTREGA. NÃO INTERROMPER.
Perchta cerrou os dentes.
Sabia o que esse comando significava. As fábricas internas, em vez de desacelerar, aumentariam o ritmo. Mais calor concentrado nos fornos, mais frio sugado do resto da estrutura para compensar. Como tentar aquecer um doente queimando-lhe as extremidades.
O olhar dela subiu, atravessou o olho da tempestade moldado por Pria, alcançou as antenas que emitiam o comando vindo de alguma torre distante dos Essenciais.
Por um segundo, o rosto de Perchta endureceu. A neve ao redor da boca pareceu engrossar, barba ficando pesada.
Jasmin a viu assim, em pé sobre Donn, o manto vermelho recortado contra o branco, cercada pela Corte dos Nove em plena ação, e um pensamento atravessou a mente dela, irracional e quase infantil.
Se ela está aqui, ninguém fica.
Ninguém congela. Ninguém fica preso na neve. Não hoje.
Lá em cima, Pria dava voltas e mais voltas, mantinha o olho calmo da tempestade aberto. Blixen traçava rotas luminosas por túneis e corredores. Dasca continuava cortando o vento em fendas, desenhando caminhos no ar. Vix estabilizava cada viga de xilita prestes a se partir. Komet reorganizava o coração da mina a cada impacto. Cupra estendia sua sombra aquecida sobre os desabrigados. Astor segurava o lago no ponto exato entre gelo e água. Rudra faiscava na neve, marcando para Perchta onde a vida ainda balançava no fio.
Ela respirou fundo outra vez.
— Cortem o excesso de fogo. — A voz saiu baixa, mas o ar à volta dela pareceu soprar nessa direção.
O vento entrou pelos dutos de ventilação com força repentina, empurrou o calor dos fornos para canais secundários, fez o fluxo circular por caminhos que não tinham sido planejados pelos Essenciais. Tubos estalaram. Válvulas chiaram. Mas o choque térmico direto com as paredes da mina diminuiu.
A temperatura geral do Complexo continuava fatal, mas já não era o tipo de tragédia que engolia tudo de uma vez.
Perchta começou a descer pela encosta, guiada por Rudra. Donn abria passo à frente. Cada vez que ela encostava a mão numa superfície, uma pele de gelo se formava, redesenhando a realidade imediata, aqui um degrau, ali um muro, mais adiante um escorregador improvisado que permitia a um grupo deslizar até uma plataforma segura.
Não era bonito. Não era gentil. Era eficaz.
No alto das torres internas, olhos curiosos espiavam pelas janelas cobertas de gelo.
— Ela está salvando a mina — murmurou um sacerdote-Termo, com um meio sorriso satisfeito, observando os marcadores de produção ainda ativos. — E nós vamos ainda poderemos ter calor suficiente para os Essenciais do cinturão por mais um ciclo inteiro.
Lá embaixo, na passarela tremendo, Jasmin não ouvia nada disso. Sentia só o que importava naquele momento, a mão latejando de volta à vida, o ar um pouco menos cortante, a visão de vermelho e branco se aproximando.
Quando Perchta passou por ela, montada em Donn, cercada por Dasca, Vix, Pria girando no alto, Cupra ondulando, Blixen luzindo, Komet rolando, Astor emergindo e Rudra faiscando na neve, o mundo pareceu se reorganizar em torno daquela figura.
Jasmin levantou o punho bom, num gesto quase reflexo, e gritou:
— PERCHTA!
Outros gritos responderam, de túneis, plataformas, abrigos.
— PERCHTA! — PERCHTA! — PERCHTA!
No meio do caos, no meio da estrutura que arrancava a alma térmica do planeta, a mulher envolta em neve viva acreditava, com todo o coração, que era isso que tinha nascido para fazer.
Impedir que o frio virasse prisão. Dar mais um ciclo de calor àquelas pessoas.
Por enquanto, era verdade o suficiente para que ninguém ousasse perguntar qual era o preço.