Os gritos demoraram a diminuir. Não porque o perigo tivesse passado, mas porque ninguém sabia direito o que fazer depois de gritar o nome de alguém que parecia controlar o mundo com as mãos.
Perchta baixou o braço devagar. A barba de neve que se formava em seu rosto, assim como todo gelo que a cobria, acompanhou o movimento com um atraso mínimo, como se fosse outra criatura pendurada nela. Aos poucos, alguns pedaços se quebravam, se desprendiam. Rudra ainda marcava pontos azuis no campo de visão dela, pequenas feridas frias espalhadas pelo Complexo.
— Priorizar saídas baixas — murmurou. — Donn, à esquerda. Cupra, mantenha o teto quente!
Donn virou o corpo pesadamente na direção indicada. Cupra desceu mais, quase roçando o dorso na cabeça das pessoas, conduzindo grupos em fileira pelo corredor que Dasca abrira na tempestade. Os trabalhadores menores, mais frágeis, se encolhiam sob o corpo leitoso dela, respirando o vapor morno como se fosse incenso.
Uma escotilha à frente negou-se a obedecer. As dobradiças tinham virado pedra. Vix passou correndo, roçou o flanco na moldura metálica, e as falhas acenderam por dentro, rachaduras redesenhando-se em curvas mais dóceis. O trinco cedeu. Gente começou a se espremer lá para dentro.
O contador de evacuação, em algum painel acima, marcava porcentagens em vermelho, mas Perchta não olhou. A referência dela não eram números. Eram manchas.
As manchas azuis em Rudra iam diminuindo.
Blixen recuou, o enxame desfazendo imagens no ar. Uma parte desceu em direção ao lago; o restante foi tomar posição perto das paredes da mina, sondando por qualquer outro ponto prestes a ceder.
— Pria, fecha! — disse Perchta, sem abrir os olhos.
A ave respondeu com um grito agudo. Lá em cima, o olho calmo da tempestade começou a se apertar. O anel de nuvens girou mais rápido, puxando o vento que antes descia direto sobre o Complexo. A nevasca não cessou, mas recuou em altitude, como se um teto tivesse sido levantado alguns metros.
A visibilidade melhorou o suficiente para que se vissem novamente as torres, as chaminés, os trilhos.
E alguns blocos...
Jasmin, agora em pé, apoiada no colega, os dedos formigando de dor enquanto o sangue voltava, seguiu com o olhar a linha do braço de Perchta. Só então reparou no que o vento tinha desenterrado.
Na encosta oposta à mina, meio engolidos pela neve, havia blocos de gelo mais escuros, quase rochosos. Grandes demais para terem sido formados da noite para o dia. Um deles, partido pela metade, deixava ver um contorno que não era de pedra.
Um rosto.
Olhos fechados, boca relaxada, como se a pessoa tivesse adormecido no meio de um susto.
— Eles estavam aqui o tempo todo? — Jasmin sussurrou, sem saber para quem.
Ninguém respondeu. A maior parte dos trabalhadores desviou o olhar com o reflexo de quem já sabia que não devia olhar muito tempo para certas coisas. Um ou outro fez o sinal automático no peito, o gesto ritual de respeito aos congelados.
Perchta sentiu o cheiro.
Não era cheiro de corpo. Corpos não cheiravam ali. Era outra coisa: uma memória antiga grudada no gelo, como fumaça presa num pano.
Donn diminuiu o passo sem que ela mandasse. Os cascos enormes cavaram sulcos na neve até pararem a alguns metros do bloco rachado.
Rudra fez menção de avançar. Perchta estendeu um dedo, impedindo.
Por um momento, o universo inteiro pareceu reduzir-se àquela superfície translúcida, às feições quietas presas do outro lado. Uma pressão leve tocou a pele dela, não no corpo físico, mas no lugar onde a neve viva encostava em tudo.
A vontade de encostar a mão no gelo veio como um reflexo.
Ela quase obedeceu.
Quase.
Um estalo seco, ao seu lado, lhe pegou, como um tapa no ouvido. A voz do sacerdote-Termo entrou pelos alto-falantes logo depois, cortando a concentração dela com a delicadeza de um machado.
— COMPLEXO DE OFERTÓRIO DE LIMIAR NORTE ESTABILIZADO — anunciava, solene. — PERCHTA CONCLUIU A OPERAÇÃO DE CONTENÇÃO. CONTINUAR A EVACUAÇÃO ORDENADA. A PRODUÇÃO SERÁ RETOMADA APÓS REVISÃO ESTRUTURAL.
Os blocos de neve em seu corpo vibravam com cada palavra amplificada. Perchta piscou, quebrando o contato com o bloco.
O cheiro sumiu. Ela respirou fundo, reorganizando a Corte com um único pensamento.
— Komet, marca os pontos de risco e desce. Blixen, fica com ele. Astor, segura o lago até os Essenciais mandarem os organizadores. Cupra, acompanha o fluxo de pessoas até o abrigo principal.
Cada nome era uma ordem e uma despedida.
Dasca foi a primeira a desaparecer, mergulhando na nevasca como se voltasse para casa. Pria subiu mais, dissolvendo-se na espiral alta até virar só uma mancha escura no céu. Vix se enfiou de novo pela estrutura da mina, cuidando dos últimos estalos. Komet rolou para dentro da cava, seguido pelo enxame de luzes. Astor, relutante, afundou no lago até sumir na superfície que voltava a se endurecer. Cupra pairou sobre a multidão em retirada como um teto vivo.
Rudra foi o último a se afastar. Ele se virou na direção do bloco rachado, o núcleo vermelho na testa pulsando num ritmo estranho, quase irritado. Depois, olhou de novo para Perchta.
Ela balançou a cabeça, um gesto curto. Não agora.
Rudra apagou o brilho e correu atrás do fluxo de gente, deixando apenas pequenas marcas no chão.
Quando o grosso da evacuação terminou, restavam na borda da mina apenas equipes técnicas, alguns poucos supervisores, meia dúzia de sacerdotes-Termo e ela, montada em Donn, com o manto vermelho agora pesado de neve derretida.
Jasmin e o colega tinham sido empurrados pelo fluxo até a plataforma inferior. De lá, ela olhava para cima, tentando guardar a imagem na memória, como se um dia fosse precisar contar aquilo para alguém e não quisesse perder nenhum detalhe.
Perchta voltou o olhar para as antenas que coroavam o Complexo. Havia bandeiras presas a elas, tecidos rígidos pelo gelo, com o símbolo dos Essenciais estampado em vermelho: três linhas onduladas, uma sobre a outra, representando o calor ascendente das minas.
Naquele momento, todas pareciam bandeiras de rendição.
— Perchta — chamou um dos sacerdotes, aproximando-se com cuidado. — Temos transporte preparado para levá-la de volta à plataforma central. O relatório inicial já está encaminhado. Os Essenciais agradecerão pessoalmente em breve.
Ela assentiu, sem olhar para ele.
Seu trabalho ali tinha acabado. A mina não desabara, a maioria tinha saído sem ferimentos e os que foram feridos, não eram casos graves, os fornos poderiam ser recalibrados. As telas de algum salão no cinturão mostrariam, em poucos ciclos, a reencenação daquele dia com luz melhor e menos neve, e todo mundo bateria palmas para a mulher de vermelho que enfrentava o frio de colapso.
Perchta fez Donn virar o corpo, afastando-se da borda. No movimento, o que sobrou da barba de neve balançou, espalhando alguns flocos que caíram perto do bloco rachado.
Por um segundo, os flocos pareceram se recusar a grudar no gelo antigo, escorrendo pela superfície como se tivessem encostado em algo quente demais.
Ela sentiu o arrepio de novo.
Depois, fez o que sempre fazia.
Virou as costas, deixou o Complexo nas mãos dos Essenciais e seguiu com a Corte em direção ao próximo ponto do mapa, levando com ela a certeza tranquila de que, por hoje, tinha salvado o mundo do frio.
E uma dúvida muito pequena, fina como um risco de gelo, começando a atravessar-lhe a alma.