O calor da plataforma central não vinha do mundo externo, vinha das paredes.
Era um calor sem cheiro, sem fumaça, sem brasa. Saía de grelhas embutidas no piso, de linhas opacas nas colunas, de painéis metálicos que zumbiam atrás das superfícies lisas. Não derretia nada, não evaporava neve, não marcava a pele. Só empurrava o frio para longe, como se o recusasse.
Perchta sentiu a mudança assim que Donn cruzou o campo de contenção térmica.
Um arco de metal e vidro se abriu diante deles. Ao atravessarem, a neve que ainda caía do lado de fora parou no ar por um instante, desfeita por alguma coisa invisível, e virou vapor antes de alcançar o chão. O manto de neve viva sobre ela reagiu com um arrepio, compactando-se contra seu corpo, como se não quisesse entrar.
— Desligar suporte externo — anunciou uma voz neutra em algum lugar acima. — Zona de recepção estabilizada.
Donn parou. A barba de neve amoleceu um pouco, as pontas escorrendo pelo peito dela como cera fria. Lentamente, o manto começou a se soltar, camada por camada, escorrendo pelas laterais do corpo até formar uma poça espessa ao redor dos cascos do animal.
A plataforma central estava cheia.
Trabalhadores de outros setores, técnicos, auxiliares, aprendizes de sacerdote, todos acomodados em arquibancadas metálicas que subiam em semicirculo. Quase todos vestiam tons apagados, entre cinza e azul. Aqui e ali, manchas vermelhas mais fortes destacavam a presença de autoridades Termo. Acima de tudo, grandes telas ocupavam as paredes, exibindo o emblema dos Essenciais pulsando devagar.
Três linhas onduladas, uma sobre a outra, brilhando em vermelho profundo. Calor ascendente.
Quando Perchta entrou, o símbolo desapareceu e deu lugar a ela.
Não ela ali em cima de Donn naquele instante, mas uma versão dela alguns minutos antes, recortada de dentro da mina. A imagem a mostrava no auge do colapso, braço erguido, corte de gelo abrindo caminho, a Corte espalhada pela tempestade.
O som das sirenes do Complexo de Limiar Norte ecoou pelas caixas, mas misturado agora com uma trilha musical que não existia lá embaixo. Cordas tensas, um coro baixo.
— Operação de Contenção de Frio em Situação de Colapso — entoou um sacerdote-Termo num dos palcos laterais. — Complexo de Ofertório de Limiar Norte. Perda estrutural prevista em setenta por cento das unidades. Falência térmica projetada para menos três ciclos.
A plateia ouvia em silêncio.
Na tela, a cena da avalanche parecia mais limpa. Menos estilhaços, menos gente. O momento em que Donn se colocou à frente do desmoronamento foi mostrado em três ângulos diferentes, nenhum deles reais. Dasca cruzava a tela deixando um rastro de luz que não deixara. Cupra se abria sobre os jovens com um brilho que ela não emitia.
Perchta viu a si mesma daquele jeito pela primeira vez naquele dia.
Lá embaixo, no Complexo, não havia pensado em como parecia. Ali, na tela, o manto vermelho se destacava com um saturado impossível, a barba de neve caía em movimentos mais lentos do que lembrava, e os olhos (seus olhos) tinham um brilho que não era reflexo de neve, era pós-produção.
O sacerdote continuou:
— Perda efetiva registrada em treze por cento das unidades, com previsão de reversão na reabertura do Complexo. Integridade térmica preservada. Produção futura garantida.
A plateia explodiu em aplausos.
Donn resmungou baixinho, uma vibração surda que só ela sentiu. Perchta desceu de seu dorso num salto curto. Os pés tocaram o piso aquecido sem ruído. A barba de neve, ainda pesada, insistia em escorrer pelo queixo e pelo peito, mesmo sem matéria fresca caindo sobre ela.
Ela caminhou até o centro da plataforma, guiada por uma linha discreta luminosa no chão.
Na tela, o momento em que ela chamou Astor foi repetido em close, o lago brilhando com uma luz interna que não existia. Nenhum bloco de gelo mais escuro aparecia na tomada. A câmera cortava antes da encosta onde os congelados dormiam.
Um sacerdote-Termo, mais velho, com o símbolo dos Essenciais bordado no colarinho em vermelho sólido, desceu do palco lateral e foi até ela. Trazia nas mãos uma placa metálica clara, fina como um espelho fosco.
— Perchta — disse, sorrindo com devoção treinada. — O planeta agradece.
Ela curvou a cabeça em respeito automático.
— Fiz o que precisava ser feito — respondeu.
Ele riu baixo, como se aquilo fosse uma modéstia encantadora.
— Você fez mais do que isso. — Levantou a placa para que todos vissem. — Reduziu perdas, impediu o congelamento de toda uma comunidade, salvou uma mina que sustentará o calor de três cinturões por pelo menos outro ciclo. Deu ao povo mais presentes de gelo para aquecer o mundo.
A palavra viajou distante, ali, de um jeito diferente do que ressoava nos túneis.
Presentes.
Na tela, a imagem da mina foi substituída por outra, mais antiga: jovens em algum cinturão central recebendo pequenas esculturas de xilita que brilham por dentro. Adultos sorrindo ao lado de fornalhas cerimoniais. Um casal de renascidos jovens soprando vapor quente de uma caneca e rindo para a câmera.
A legenda embaixo dizia:
“Cada presente é calor compartilhado.”
Perchta reconhecia aquela sequência. Já a tinham mostrado para ela muitas vezes. Era o material que usavam nas Escolas de Ciclo, nas festividades de Sol estabilizado, nas cerimônias de renovação de contrato.
O sacerdote estendeu a placa metálica em sua direção.
— Em nome dos Essenciais e dos habitantes deste mundo, registramos sua atuação na Operação Limiar Norte — proclamou. — E lembramos a todos que, enquanto houver fé, trabalho e presentes, o frio jamais vencerá.
Mais aplausos. Alguns gritos do nome dela. Um coro espontâneo tentando imitar o que ouvira em Limiar Norte, mas sem o desespero na voz.
Perchta aceitou a placa com as duas mãos.
O metal estava morno, mas não como algo aquecido por fogo. Era uma temperatura artificial, sem origem. Na superfície opaca, letras vermelhas apareciam à medida que ela encostava os dedos, leituras classificadas em categorias: percentual de perdas evitadas, índice de estabilização, taxa de consumo térmico, impacto projetado em ciclos futuros.
No fim, uma linha.
Operação bem-sucedida. Nenhuma anomalia relevante identificada.
A lembrança do bloco rachado, do rosto tranquilo preso do outro lado, encostou nela como o cheiro de antes.
Ela ergueu um pouco os olhos, procurando na tela alguma menção às encostas. Talvez tivessem decidido omitir os congelados por respeito, por protocolo, por superstição.
Nada.
Só a cena de Cupra se abrindo sobre os trabalhadores, repetida em câmera lenta. Só ela mesma, em vermelho, erguendo o braço para a tempestade.
O sacerdote mais velho se aproximou meio passo.
— Algo a incomoda? — perguntou, num tom cordial demais para ser só cortesia.
Perchta demorou para responder.
— Os congelados na encosta — disse enfim. — Não constam no registro.
Ele inclinou um pouco a cabeça, como se ouvisse pela primeira vez.
— Congelados?
— Em blocos maiores — explicou. — Acima da mina. Um deles estava rachado. Pareceu ter sido exposto pelo vento.
O sacerdote abriu as mãos num gesto que mistura surpresa e didática.
— Ah. Sim. — O sorriso dele não vacilou. — Corpos em suspensão. Mártires do frio. São antigos. Não pertencem à operação de hoje, por isso constam em outros registros. Iria confundir as pessoas mostrar tudo em uma mesma narrativa, você entende.
Ela não sabia se entendia.
O sacerdote-Termo, o mais jovem, parado um pouco atrás, desviou o olhar exatamente nesse ponto, fixando a atenção nos próprios sapatos.
— O importante — continuou o mais velho — é que, graças a você, não teremos novos sacrificados de Limiar Norte. Esse é o foco.
Ele tocou de leve o braço dela, um toque rápido, seco.
— Deixe os registros antigos para nós. — A voz baixou meio tom. — Seu papel é garantir que não haja novos blocos na encosta. E nisso, Perchta, você é perfeita.
Perfeita.
A barba de neve ao redor da boca estava quase desfeita completamente, próximo da ultima palavra, mas ainda resistia.
Por um instante, ela teve vontade de mencionar o cheiro, a sensação de quase ter ouvido alguma coisa através do gelo antigo. Quase perguntou quem eram aquelas pessoas, quanto tempo estavam ali, por que ninguém as tirava.
Quase.
Um novo impacto sonoro cortou a hesitação.
As telas mudaram de novo, agora exibindo um mosaico de rostos de trabalhadores, jovens renascidos de todas as idades aparentes, todos em locais distantes, repetindo a mesma frase diante das câmeras:
— Obrigado, Perchta.
Em alguns lugares, seguravam presentes de xilita que brilhavam por dentro. Em outros, apenas canecas fumegantes, mantas, ferramentas. O símbolo dos Essenciais sempre presente em algum canto.
A plateia da plataforma central virou na direção dela, como se esperasse uma reação.
Perchta fez o que tinham lhe ensinado a fazer.
Sustentou o olhar nas telas, curvou levemente a cabeça em reverência e ergueu a placa metálica na altura do peito.
— O calor é de vocês — disse. — Eu só movo o gelo.
Os alto-falantes reproduziram a frase com um efeito suave, como se quisessem transformá-la em lema. Algumas pessoas começaram a repetir em coro: "Pelo calor!". O sacerdote mais velho sorriu como quem acabara de ver uma cena sair exatamente como planejado.
Rudra, encolhido aos pés de Donn, acendeu o núcleo vermelho por um segundo, muito rápido, como um piscar de nervosismo. Só ela percebeu.
A cerimônia continuou mais alguns minutos, com números, gráficos, promessas de avaliação estrutural, instruções de retorno ao trabalho após o período de segurança. Perchta disse o mínimo que esperavam, acenou quando devia, devolveu gestos de respeito.
Quando finalmente a libertaram do centro da plataforma, a maioria da plateia já se dispersava pelos corredores aquecidos.
Um corredor lateral se abriu só para ela e para a Corte.
As paredes ali eram lisas, brancas, interrompidas apenas por linhas horizontais de luz. Não havia janelas. O calor era firme, constante, sem a oscilação natural de qualquer fonte real.
Donn caminhava lento, cascos pesados batendo num ritmo que lembrava o barulho distante dos fornos. As patas deixavam marcas úmidas no piso, rastros da neve que ainda escorria dele.
— Operação bem-sucedida — repetiu uma voz neutra, em algum alto-falante escondido. — Nenhuma anomalia relevante identificada.
Perchta apertou a placa metálica entre os dedos.
Por um instante, o corredor pareceu encurtar. Ela teve a impressão de que, se esticasse a mão na direção certa, esbarraria de novo na superfície fria daquele bloco partido na encosta.
Mas ali não havia gelo. Não havia cheiro. Só paredes quentes, lisas, limpas.
Ela inspirou devagar, deixou o ar seco entrar pelos pulmões, segurou um pouco e soltou.
Ainda era cedo para desobedecer à frase gravada no relatório.
Ainda era cedo para chamar de anomalia aquilo que só ela sentira.
Por enquanto, tudo continuaria sendo apresentado como sucesso.
E o risco de gelo que atravessara o tempo ficaria onde estava, escondido em algum lugar entre a lembrança da encosta, o cheiro preso no ar e a barba de neve que insistia em não derreter completamente, mesmo dentro do calor da plataforma central.