"É só um jantar. Respire fundo. É só um jantar", repito para mim mesma sem parar enquanto crio coragem para bater à porta da casa de Noah.
Nunca jantei com os pais de um garoto antes, e não tenho muita ideia do que está por vir, o que me deixa nervosa. Troquei de roupa por volta de nove vezes, e nada parecia bom ou apropriado o suficiente, até que desisti, me joguei sobre a cama, chorei por três minutos encarando o teto, e então liguei para Sarah em busca de auxÃlio fashion. Ficamos em uma ligação com duração aproximada de duas horas enquanto ela opinava sobre minhas roupas e fazia pausas ocasionais para criticá-las, até que por fim, Sarah disse que eu deveria usar o vestido amarelo pastel de comprimento até o joelho. Olhei para ela como se ela fosse louca. O vestido obviamente era de verão, e estamos no auge do outono. Mas Sarah insistiu, e após uma composição com acessórios e um suéter de lã com flores nas mangas que parece ser de Daisy, pude compreender o que ela tinha em mente esse tempo todo, e não ficou nada mal. Sarah sempre teve talento para juntar peças improváveis e formar um visual incrÃvel. Então, depois de mais algumas olhadas no espelho, apenas para me certificar de que me sentia pronta de fato, me despedi dela e saà de casa em direção à casa de Noah, torcendo para que não começasse a chover no meio do caminho.
Ouço passos caminhando em direção à porta, e ajeito o cabelo atrás da orelha, nervosa.
— Oi.
Levanto os olhos para a figura parada diante de mim, perplexa. Congelo por um segundo. Não sabia que ele estaria em casa nesse fim de semana, e muito menos que participaria desse jantar.
— O que você está fazendo aqui? — Indago, exasperada.
— Bom, essa ainda é minha casa, Elizabeth. — Theodore responde, com um sorrisinho insolente.
— Já pedi para não me chamar assim. — Repito, o que parece deixá-lo ainda mais satisfeito, como se gostasse de me ver irritada.
Agora, parece haver uma certa tensão crescer entre nós. Não nos vimos mais desde aquela manhã desastrosa que nunca deveria ter acontecido.
Ele parece engolir em seco.
— Você está... muito bonita. — Elogia ele, parecendo hesitante em dizê-lo.
Não respondo. Para ser sincera, não sei bem como reagir a isso.
— Ela chegou? — Grita uma voz feminina do lado de dentro da casa, mas não consigo reconhecê-la até ver o rosto de Adélia se aproximando de nós. — Oi, Liz. Que bom que veio. Demorou tanto que achei que tinha mudado de ideia. — Fala, com um sorriso amarelo. Há algo em suas falas direcionadas a mim que nunca parece completamente honesto, ou, no mÃnimo, soam como crueldades mascaradas, o que faz com que sua presença aqui essa noite apenas sirva para me deixar mais nervosa, como se ela estivesse aqui apenas para lançar comentários indiscretos a meu respeito, à espreita, esperando para me colocar em uma saia justa a qualquer momento.
Não achei que essa noite ficaria tão ruim tão rápido.
— Ah, oi, Adélia. Que surpresa te ver aqui. Desculpe pela demora, eu vim andando. — Respondo, sem muita empolgação e sem me importar muito com isso.
Theodore franze o cenho, intrigado.
— Achei que Noah ia te buscar em sua casa. — Estranha ele.
— Ah, me desculpe, acho que acabei segurando ele aqui. Você não se importa, não é? — Interrompe Adélia. Sinto uma onda de irritação começando a surgir dentro de mim, e sinto certo desespero ao pensar que ainda temos a noite inteira pela frente.
Contenho um suspiro que deixaria óbvia demais a minha resposta sincera sobre isso, e forço meus lábios a formarem um sorriso.
— Tudo bem, eu precisava mesmo caminhar um pouco. — Argumento, mas acabo soando muito mais na defensiva do que convincente.
Os olhos de Theodore passeiam do rosto de Adélia para o meu, com certo inconformismo. Ao menos, parece compartilhar da minha opinião, ainda que não tenha sido dita em voz alta. Ele solta um riso que não consigo decifrar, quase como se debochasse da situação, o que com certeza me irritaria se minhas energias não estivessem tão concentradas em apenas causar uma boa impressão e sobreviver a essa noite.
— E então, vocês dois já se conhecem? — Adélia pergunta por fim.
— Só um pouco. — Respondo, olhando de relance para Theodore.
Ele cruza as mãos atrás do corpo.
— É. Um pouco. — Concorda, mas há algo em sua voz que não consigo decifrar ao dizer essas palavras.
Adélia franze o cenho, parecendo intrigada.
— E então, eu posso entrar? — Pergunto, antes que ela tenha a chance de continuar fazendo perguntas sobre como e o quanto Theodore e eu nos conhecemos.
Theodore arregala os olhos, como se de repente se desse conta do fato de que eu ainda estou do lado de fora.
— Ah, claro. Me desculpe. Fique à vontade. — Diz, abrindo passagem para mim.
Sorrio e cruzo a porta acanhada, sem saber direito como agir em toda essa circunstância. Graças a Theo, não posso dizer que nunca estive na casa de Noah antes, porque já estive. Mas naquela manhã, estava tão focada em dar o fora daqui o mais rápido possÃvel, que mal pude prestar atenção nos cômodos, especialmente no andar debaixo. A sala de jantar e a sala de estar são novidade para mim, porque saÃmos pelos fundos, então olho ao redor meio deslumbrada com todo o ambiente espaçoso e como os móveis parecem fazer parte de um cenário de filme vintage e classudo, conversando perfeitamente entre si.
— Nervosa? — Ele questiona, fechando a porta atrás de si. Agora, não há mais como voltar atrás.
— Um pouco. — Admito.
Theo abaixa os olhos até o chão e balança a cabeça assentindo, como se compreendesse meus sentimentos, e, acima de tudo, como se concordasse com eles, o que não deve ser um bom sinal.
— Não se preocupe. Sei que meus pais vão gostar de você. — Diz, baixinho, para que só eu escute, numa tentativa de me tranquilizar.
Inclino o rosto, encarando-o séria.
— Não tente me consolar. Ainda estou brava com você.
Ele solta um riso tÃmido.
— E acha que pode me perdoar algum dia? — Pergunta, em um sussurro, parando ao meu lado.
Abro a boca para respondê-lo, mas antes que diga qualquer coisa, sou interrompida.
— Ela chegou? Liz? Oi! — Exclama a mulher que imediatamente reconheço como mãe de Noah, como se estivesse esperando ansiosa por mim. Ela tem os mesmos olhos azuis e gentis que ele, e os cabelos dourados me lembram de Sarah, então me convenço de que essa familiaridade é o suficiente para me tranquilizar um pouco. — Que prazer finalmente te conhecer! Noah só fala sobre você desde que te viu pela primeira vez no primário, já estávamos começando a nos preocupar se você era mesmo real. — Brinca, abrindo os braços para me cumprimentar com um abraço acolhedor e com cheiro de baunilha.
— Oi, Sra. Thompson. É um prazer te conhecer também. — Respondo, acanhada, mas sorridente.
Ela balança a cabeça.
— Ah, querida, não se preocupe com as formalidades, pode me chamar de Kate.
Sorrio e assinto, tentando me acostumar com a ideia.
— Oi, Lizzie. Que bom que veio. — Noah falando, aproximando-se para beijar a minha testa. Sinto-me estranhamente constrangida com o gesto, talvez por ter ocorrido em frente a toda sua famÃlia, embora isso não faça muito sentido. Apenas sinto-me tensa.
— Então essa é a famosa Liz? — Pergunta seu pai, se aproximando com um sorriso de polÃtico estampado no rosto. Apesar de mostrar quase todos os dentes em sua boca, sua feição parece rÃgida, o que me apavora um pouco. — Oi, querida. Prazer em conhecê-la. — Fala, estendendo a mão para me cumprimentar, mais frio e distante do que a recepção de Kate. — Sou Richard, pai do Noah.
Olho de relance para Theo, que engole em seco de braços cruzados no canto da sala de jantar enquanto tenta não parecer incomodado com o fato de que apenas o nome de Noah fora citado. Sinto uma pontada no peito. Isso foi cruel.
— Ah, oi. — Respondo, desconcertada. — O prazer é todo meu. — Cumprimento-o. Seu aperto de mão é mais forte do que o necessário.
— Estão com fome? Eu estou faminto. — Ele fala, chamando-nos para a mesa de jantar. Noah puxa a cadeira para que eu me sente, e assenta-se ao meu lado, enquanto Theodore se assenta diante de mim, o que torna seu desconforto com as circunstâncias impossÃvel de não ser notado. Adélia senta-se entre ele e o pai, parecendo estar disposta a se arriscar ficando em uma aparente zona de risco, e Kate se senta diante do marido. — Nos conte um pouco sobre você, Liz. — Pede Richard, mais para preencher o silêncio com cordialidades do que por um interesse genuÃno. — Sempre viveu aqui?
— Redgrove? Sim. Mas minha mãe era da Espanha, então estamos sempre visitando minha famÃlia por lá. — Respondo, sentindo as palmas das minhas mãos suarem com o nervosismo.
— Que interessante! — Exclama Kate, gentilmente, adentrando a conversa. — E seus pais ainda são casados?
Não consigo esconder a surpresa em meu rosto ao ser pega de supetão pela pergunta direta.
— É... s-são, sim. — Gaguejo, o que me faz soar meio incerta.
— Mãe! — Noah exclama com reprovação.
— O quê? Não é uma pergunta normal hoje em dia? — Indaga ela.
Theodore, diante de mim, bebe um copo de água em silêncio, encarando fixamente a superfÃcie da mesa de mogno como se não conseguisse assistir à cena de tanto constrangimento.
Balanço a cabeça.
— Tudo bem, é... sim, eles ainda são casados. — Reforço, sorrindo.
— Que ótimo. E você tem irmãos? — Pergunta Kate.
— Não, sou só eu.
O pai de Noah arqueia as sobrancelhas, parecendo surpreso.
— É mesmo? Você deve ter se sentido sozinha enquanto crescia. — Fala.
Dou de ombros.
— Não muito. — Respondo. Acho que não me preparei o suficiente para a possibilidade de todas as perguntas essa noite girarem em torno de mim, o que é um pouco estranho. — Noah me contou que você é médico. Isso parece interessante. — Comento, tentando mudar um pouco o foco da conversa.
— Ah, sim. — Ele confirma, orgulhoso.
Sorrio.
— Que legal. Deve ter muito orgulho de Theodore. — Comento.
Theodore levanta os olhos para mim intrigado, como se estivesse tentando entender se isso foi um elogio espontâneo ou se estou tentando incluÃ-lo na conversa de alguma forma.
— Ah, claro. Mas acho que nós somos interessados em áreas diferentes dentro da medicina. — Responde, soando um pouco como uma alfinetada. Theo revira os olhos discretamente.
Franzo o cenho, confusa.
— Como assim?
Ele cruza as mãos sobre a mesa, como se estivesse prestes a fazer um discurso em um palanque. Passa um ar de superioridade detestável em seu olhar, e não sei como me sinto sobre tudo isso.
— Bom, eu sou um cirurgião renomado, enquanto Theodore prefere cuidar de... áreas mais simples da medicina. — Fala, cheio de si.
Isso é... inacreditável.
Theo permanece inexpressivo, como se não esperasse uma resposta diferente dessa, mas tenho a impressão de vê-lo murchar em seu lugar. Engulo a resposta mal-criada que me sobe pela garganta e coloco algumas mechas atrás da orelha, nervosa.
— Eu não acho que exista qualquer área simples dentro da medicina. — Rebato, tentando não parecer irritada.
Olho para Noah, esperando que ele intervenha na conversa e chame a atenção do pai como fez com a mãe há pouco, mas ele não parece se dar conta do quanto isso é ofensivo, ou então, não se importa, o que também é ruim.
— Tem interesse em medicina? — Richard pergunta, após me lançar um sorriso engessado.
— Não muito. Com certeza não é a minha área. — Respondo.
Ele assente, como se não esperasse algo diferente sobre mim. Acho que a sensação desagradável que temos um sobre o outro é mútua. Deve me achar uma garotinha medÃocre, e eu o acho um homem arrogante.
— E o que planeja estudar depois da escola?
Dou de ombros.
— Para ser sincera, ainda não me decidi. — Respondo, não me esforçando mais para melhorar a impressão que ele deve ter de mim. Não vou perder o meu tempo tentando impressionar um homem como ele. Ao meu ver, sua aprovação só poderia significar que estou indo para o caminho errado.
Ele arqueia as sobrancelhas.
— Nossa. É melhor correr, o tempo está passando. Noah já está planejando seu futuro brilhante em...
— Pai. — Noah finalmente o interrompe, talvez pelo desconforto generalizado que começou a se alastrar pelo cômodo, ou porque sinta que essa conversa tem o potencial de acabar o prejudicando, já que ainda não tivemos essa conversa sobre para onde cada um irá na faculdade, talvez por não termos certeza se eu chegarei a ir para a uma, de fato. Pelo que sei, meus últimos dias de liberdade podem se encerrar a qualquer momento.
— O quê? Ainda não falaram sobre isso? — Pergunta ele, meio dissimulado.
Noah esfrega a testa, parecendo tenso de repente.
— Pai, por favor... podemos mudar de assunto? — Pede. O pai assente.
— Desculpe.
Olho para Theodore, incrédula com essa estranha e desbalanceada dinâmica familiar, e ele me olha como quem diz "bem-vinda à famÃlia".
— Vou servir o jantar. — Kate fala, notando um silêncio de constrangimento surgindo no ambiente. — Liz, espero que goste de almôndegas.
— Ah... claro. Gosto, sim.
Do outro lado da mesa, vejo uma ruguinha se formar entre as sobrancelhas de Theodore ao me ouvir mentir descaradamente sobre gostar de almôndegas quando sabe que sou vegetariana. Mas ninguém mais parece notar que estou mentindo.
A mãe de Noah comemora.
— Que bom, porque são a minha especialidade!
Sorrio, sem jeito. Aparentemente, vou ter que comer isso.
— Liz, você cozinha? — Pergunta Richard, de repente. — Acho importante que as mulheres saibam cozinhar, não é?
Adélia quase se engasga com a pergunta. Pode não ser minha maior fã, mas acredito que compartilha da minha indignação nesse momento.
— É, eu sei me virar. — Respondo, com o sorriso mais gentil que consigo. — Acho importante que todas as pessoas saibam cozinhar.
Ele inclina a cabeça para trás, mordendo a parte interna da boca e me olhando como se estivesse me avaliando por completo, e eu estivesse reprovando em todos os seus critérios de namorada ideal para o Noah. Parte de mim se pergunta por quê ele se manteve quieto esse tempo todo. Será que ele concorda com o modo terrÃvel como o pai sobre as coisas? Será que não se importa? Será que, no fundo, gosta de ser o filho favorito? Sinto meu estômago embrulhar só de pensar nessa possibilidade. Por outro lado, nada disso se parece muito com ele, e me pergunto se esse tempo todo ele se manteve calado de constrangimento ou para evitar que a coisa toda piorasse de vez.
Depois que Kate retorna com a comida, a tensão retida na sala de jantar começa a se esvair aos poucos. Ela conta sobre como aprendeu a receita com sua tia-avó italiana, e ela e Noah relembram a viagem de famÃlia que fizeram para a Europa há alguns anos, quando ele e Theo ainda eram pequenos. Enquanto todos se mantém entretidos, encaro meu prato com certo receio. Não como carne há anos, e honestamente, sinto-me dividida entre comer apenas para agradar a mãe de Noah — que parece animada sobre a receita e foi gentil e receptiva desde que cheguei — ou evitar o transtorno que isso vai causar ao meu estômago mais tarde.
Enquanto lido com esse dilema, ocasionalmente rindo de alguma parte da história que estão contando, apesar de não estar acompanhando a linearidade dos acontecimentos, noto os olhos de Theo fixos sobre mim, quase como se pudesse ler a minha mente, onde estou gritando por socorro. Ele sorri de lado antes de, com um movimento sutil, derrubar o copo de água sobre a mesa, fazendo com que o lÃquido se espalhe na minha direção, gerando certa agitação ao redor.
— Ai, droga. Me desculpe! — Exclama, levantando-se e curvando-se sobre a mesa, tentando enxugar o excesso da água com um guardanapo de linho antes que chegue até mim.
— Tudo bem. — Respondo sorrindo, mas olho para ele confusa. O que ele está fazendo?
Depois de passar alguns segundos tirando o excesso da água, ele torna a se sentar à minha frente, e depois de perguntarem se estou bem ou se me molhei, todos tornam a conversar.
Levo algum tempo para notar o que ele fez.
Quando estou prestes a retornar para o meu dilema interno sobre o jantar, olho para o prato diante de mim e noto que está completamente vazio — como o dele estava. O prato diante de Theo, por outro lado, está cheio — como o meu estava.
Levanto os olhos para ele, agora ouvindo a conversa da mesa, mas ainda sem participar dela. Como se pudesse sentir que o observo, ele olha para mim e sorri. Damos uma risada discreta da situação — pela estranheza dela, pelo modo como ele executou o plano e pela quantidade de tempo que levei para entender o que aconteceu. Sem dizer uma só palavra, sinto que estamos tendo uma conversa só nossa, sem que ninguém perceba ou entenda coisa alguma. É estranho como mesmo não querendo me manter tão próxima dele, isso apenas acontece. Estar perto dele é fácil, e mesmo quando nos desentendemos, as coisas voltam ao normal com naturalidade, de modo que me esforçar para não ser tão próxima dele é mais difÃcil do que simplesmente ser.
Sussurro um agradecimento ao qual ele assente, e voltamos a atenção para a história de infância que agora Adélia e Noah relembram. E assim, sobrevivo ao jantar.