Treinar era a única maneira de acalmar minha mente.
Meu pai desaprovava esse tipo de comportamento, mas às quatro da manhã eu já estava de pé. Corria pela trilha silenciosa da floresta enquanto a vila ainda dormia. Ao voltar, fazia alguns exercícios, tomava banho e preparava o café da manhã para a família.
Éramos somente nós três: meu pai, meu irmão e eu.
Minha mãe falecera quando eu tinha cinco anos. As lembranças que restaram dela são fragmentos — um cheiro de lavanda, um canto abafado, talvez o som do seu riso em alguma manhã de sol. Mais nada.
Não éramos ricos, mas em comparação aos outros da vila, vivíamos bem. Meu pai era o ferreiro. Forjava armaduras, espadas e ferramentas para os soldados do rei e alguns guerreiros errantes. Isso nos garantia comida e algum conforto, mesmo com os impostos sempre à espreita.
— Vai se atrasar, queria — disse meu pai, beijando minha testa quando passei pela cozinha rumo à sala de jantar.
Havia me atrasado uns dez minutos no banho. Durante a corrida, ouvi vozes vindas da floresta. Estranhas vozes. Línguas que eu não reconhecia.
— Hoje é o grande dia — ele sorriu, empolgado. — Está feliz?
Não estava. Mas menti.
— Claro que sim.
Como poderia dizer o contrário, depois de tudo que ele fizera para conseguir minha vaga nas aulas de preparação para noivas?
Na flor dos meus vinte e cinco anos, não tinha pretendente algum, e assim preferia. Evitava todos. A maioria me olhava como um lobo observa sua presa. E muitos tentavam se enturmar na oficina do meu pai, fingindo interesse em aprender a arte da forja, mas eu sabia que o objetivo era outro: sondar meu valor como esposa. Afinal, meu irmão mais velho jamais poderia assumir os negócios da família.
— Você insiste demais, pai — disse ele, entrando na sala com esforço sobre a cadeira de rodas. — Ela foge dos presentes como o diabo da cruz. Acha mesmo que vai aceitar um pretendente agora?
— E deve aceitar! — respondeu meu pai, cerrando o cenho. — Paguei caro por aquelas aulas. Não vai se casar com qualquer um desta vila. Vai se casar com um dos melhores. Se meus negócios forem enterrados comigo, que seja — ergueu o dedo indicador no ar, dramático. — Desde que minha filha esteja protegida.
— E eu? — perguntou meu irmão, indignado.
— Acha que não sei das suas escapadas com as donzelas?
— E são mesmo donzelas, papai? — murmurei, quase sorrindo. — Meu irmão parece um depravado. Vive contando histórias e, a cada semana, uma jovem diferente aparece por aqui, oferecendo favores… algumas talvez até o sustentem até o fim da vida.
— Tenho que concordar — disse meu irmão, abrindo um sorriso maroto enquanto se aproximava da mesa.
Enquanto meu irmão e meu pai discutiam, fiquei em silêncio, mexendo a colher no mingau que já esfriava na tigela. Aquelas vozes na floresta ainda me preocupava, desde que iniciaram a guerra entre humanos e feéricos tudo começou a ficar estranho, faz cinco anos que essa história nunca acaba e não parece terminar tão cedo, até último homem humano estiver em pé, pelo menos era assim que acreditávamos.
— A convocação virá hoje — disse meu irmão, baixo, como se o admitir desse forma ao destino. — O rei quer homens para lutar contra os feéricos.
Meu coração parou por um segundo.
Não falávamos disso abertamente. A guerra que se alastrava nos territórios ao norte ainda parecia distante da nossa vila. Mas agora… ela vinha até nós.
— Eu vou. — A firmeza em sua voz me partiu por dentro.
— Vai nada! — retrucou meu pai, batendo a mão na mesa. — Não há chance. Nenhuma!
Silêncio.
Meu irmão abaixou o olhar. A mandíbula cerrada. Havia lágrimas não choradas ali. E orgulho ferido.
Como ele poderia lutar em uma cadeira de rodas? Meu pai sempre estava orando para que esse dia nunca chegasse, sabíamos que a guerra estava difícil, e cada vez mais ela lastrava nos territórios humanos.
Não tínhamos como ganhar dos feéricos, eles tem poderes, forças. Nem sabíamos como aquela guerra começou, já fazia tantos anos que meu pai vivia trabalhado cada vez mais nas produções forjando armadura e espadas para os guerreiros.
O rei estava desanimado, seu filho herdeiro já havia falecido na guerra e agora lhe restava o mais jovem. A nossa vila estava em luto sem fim, não consegui nem pensar em bom casamento, só queria ajudar.
Por isso meu pai achava perigoso demais eu sair todos os dias de madrugada para correr, e por esse motivo fazia escondido. Às vezes não dava certo, ele me pegava no ato.
Meu pai saiu antes do sol nascer completamente, levando algumas espadas para os guardas da cidade. Meu irmão fingiu cochilar na cadeira perto da lareira, mas sei que me observava.
— Vai se atrasar para a aula — provocou, ainda com um meio sorriso.
Suspirei. Só de pensar no vestido que teria que usar, meu estômago revirava. Preferia enfrentar uma tropa de guerreiros bêbados do que as moças delicadas do vilarejo, com suas fitas, risinhos falsos e olhares de julgamento.
Troquei de roupa com relutância: vestido claro, cabelo preso, bochechas beliscadas para parecer mais… “apresentável”.
Quando cheguei à Casa das Rosas, onde ocorriam as aulas, a tutora já estava de braços cruzados na entrada.
— Elira, atrasada outra vez — disse, com aquele tom doce que disfarçava a impaciência. — Isso não ajuda sua reputação, minha querida.
— Eu estava cuidando da minha família — respondi, educada o suficiente para não parecer insolente.
— Mas logo terá uma família sua para cuidar. Por isso está aqui.
Ela sorriu.
— Vamos começar com os passos de reverência e depois falaremos sobre os elogios adequados para um pretendente. Nada de sarcasmo, entendeu?
Engoli em seco.
Durante a aula, eu tropecei no tapete, deixei uma taça cair, e recitei os elogios com o tom de quem descrevia uma vaca doente. As outras moças riam baixinho. Sabiam que eu não pertencia àquele lugar.
Mas meu pai pagara por aquela humilhação. E eu suportaria. Pelo menos todos os dias de manhã e amanhã seria a cerimônia para conhecer os pretendentes.
Um casamento arranjado, não esperava que minha vida fosse diferente que tenho com minha família ao me casar com qualquer outro homem da vila. Ser dona de casa: lavar roupa, cozinhar, costurar, esperar o marido se um dia ele vai voltar da guerra, cuidar dos filhos — isso era primordial no momento, o rei determinou que os jovens casais deveriam se casar quanto antes para ter seu herdeiro e logo ir para a guerra.
Isso me deixava nervosa, não só pelo meu irmão que não poderia fazer tantas coisas que ele desejava. Ir à guerra era uma delas. Mas como eu poderia me casar com alguém que nem conheço, criar os filhos e quem sabe nunca mais ver essa pessoa?
Preferia cuidar da minha família, a família de sangue, da qual eu nasci. Não tinha escolha, meu destino como qualquer de outra moça foi selado pelo rei.
— Garotas, não se esqueçam! Amanhã vocês serão apresentas para os pretendentes, não se atrasem — Ela olhou diretamente para mim — tomem um banho — disse com seu nariz enrugando — E estejam impecáveis. Não vou aceitar menos que isso.
Todas responderem um som sonoro que concordavam. Voltei para casa após a aula, no caminho o céu escureceu
O caminho de volta para casa foi mais longo do que o habitual. O céu começava a escurecer mesmo sem sinal de chuva. Nuvens pesadas formavam redemoinhos lentos acima da floresta. O vento mudou de direção. Gelado. Cortante. Como se algo invisível me observasse.
Eu já havia sentido isso antes.
Meus passos se apressaram quando ouvi novamente.
As vozes.
Vozes que não eram humanas. Línguas ondulantes, cheias de sons que pareciam notas de música… ou feitiço. Um cântico. Grave, sussurrado, ecoando entre as árvores como se o próprio vento estivesse entoando.
“A luz cai, o véu se abre,
Os olhos veem além do sangue.
Chama perdida, alma marcada,
A tempestade sempre volta para casa…”
Meu corpo congelou. A pele arrepiada.
O canto… estava dentro de mim agora. Como se as palavras tivessem sido escritas na minha alma antes mesmo de nascer.
— Não — sussurrei, dando um passo para trás.
O som das folhas se mexendo. Galhos partindo. Um brilho dourado por entre os troncos e, por um instante, vi olhos. Olhos que não eram humanos. Olhos antigos.
Corri.
Corri sem olhar para trás, com os dedos apertando a barra do vestido, o vento foi soltando os fios dos meus cabelos, os galhos arranhando meus braços.
O cântico ainda me seguia.
A tempestade sempre volta para casa…
“Você está imaginando coisas”, repeti para mim mesma. Mas não estava. Sentia. Cada fio do meu corpo estava arrepiado, como se tivesse sido tocado por eletricidade.
Virei-me para correr. Meus pés tropeçaram nas pedras do caminho de terra e folhas, meus cabelos soltos dançavam como se também estivessem fugindo daquilo. Então, de repente, esbarrei em algo, alguém.
Caí no chão, atordoada.
— Ei! — disse a voz masculina, grave, surpreendida. — Está tudo bem?
Assustada, olhei para cima.
Era um homem alto, de ombros largos, olhos escuros como tempestade e um arco preso às costas. O capuz cobrindo parte do rosto, mas seus traços eram nítidos — e desconhecidos. Nunca o vira na vila.
— Me desculpa! — falei rapidamente, o coração ainda disparado. — Eu… eu não vi…
Ele estendeu a mão, hesitante. Aceitei, meio sem jeito, tentando parecer menos desorientada.
— Você está ferida? — ele perguntou, a voz mais suave.
— Não… não. Só… só tropecei.
Engoli seco. Não podia perguntar se ele também ouvira as vozes. O medo de parecer louca me agarrou. Lembrei do aviso do meu pai, anos atrás:
“Nunca fale disso com ninguém, Elira. Nunca.”
E eu obedeci. Mesmo sem entender.
O homem me observava com olhos atentos. Havia algo em seu olhar, não julgamento, mas uma curiosidade calma, quase como se ele me visse de verdade.
— Sou Daren — ele disse, quebrando o silêncio.
— Elira... — respondi baixinho. — Eu… preciso ir.
Dei um passo para trás, ajeitando o vestido, o rosto em brasa. Evitei o olhar dele e comecei a correr.
Não me virei até chegar mais perto da estrada de casa. Mas, por instinto, olhei por cima do ombro.
Daren ainda estava ali. Parado entre as árvores, me observando.
O vento soprou com força, e uma última linha do cântico ecoou na minha mente:
A tempestade sempre volta para casa…
Senti o rosto corar ainda mais. Apertei o passo e desapareci pela trilha, sem olhar para trás.