Quando Nossa Música se Afogou no Rio
ANTES QUE MARINA PUDESSE perceber a aproximação dele, Jorge permaneceu um instante escondido apenas para admirá-la de longe — de costas, sentada à beira do rio sobre a vegetação ainda úmida, as escamas cor-de-rosa de sua cauda cintilavam alaranjadas sob a luz do pôr do sol. Conforme balançava para a frente e para trás, ondas suaves se formavam na superfÃcie da água. Seus longos cabelos turquesa se emaranhavam, espalhados ao redor, e os dedos azulados envolviam uma caixinha de música.
Toda vez que a via era como se adentrasse em um sonho — um mundo que até então ele não conhecia, e que agora tinha medo de perder sempre que precisava acordar.
Entretanto, naquela tarde, algo na postura dela o perturbou. Em vez de se distrair com os pássaros ou os coelhos que corriam por aquela parte da floresta em busca de água, como de costume, Marina tinha a cabeça baixa e olhava fixamente para a caixinha de música — a mesma que ele tinha lhe dado na última vez que se encontraram.
Torcendo para estar errado, o rapaz vestiu seu melhor sorriso e apressou-se para percorrer a distância que restava até ela.
— Desculpe te deixar esperando — disse ele, a animação por vê-la impressa em cada parte de sua voz. — Faz muito tempo que chegou?
Ela balançou a cabeça em negativa, mas manteve os olhos fixos na caixinha de música, como que hipnotizados.Observou em silêncio quando ela tentou dar corda no mecanismo da caixa, mas nenhuma música tocou e a bailarina apenas escorregou para o lado, quase caindo de seu palco.
Sentou-se ao lado dela e deu-lhe um beijo na testa.
— Qual o problema, não gostou do presente?
Ela suspirou.
— Eu adorei — disse, embora seu tom fosse o mais melancólico possÃvel. — É o melhor presente que já recebi.
Jorge piscou, confuso. Só podia ter entendido mal as palavras dela, pois todo seu corpo dizia o contrário.
— Por que parece tão triste, então?
Foi quando ela se virou para ele pela primeira vez, encarando-o com seus grandes olhos de quartzo rosa.
— Não consegui fazê-la funcionar debaixo d'água, a música se perdia por completo. Sequer está funcionando aqui na superfÃcie agora. E… — fez uma pausa, engolindo em seco — isso me fez perceber que, talvez, essa não seja a única coisa que não está funcionando aqui.
O sangue dele congelou no mesmo instante, seu rosto pálido.
— O que quer dizer? — sua voz tremeu. Sabia que não gostaria daquela conversa, mas conhecer o problema era a única maneira de resolvê-lo.
— Não era um problema no inÃcio, mas quanto mais o tempo passa, mais eu vejo como o que temos não vai funcionar — Marina conseguiu manter a voz firme, mas seus olhos marejados revelavam o que havia abaixo da superfÃcie.
— Está dizendo isso só por causa do que aconteceu com a caixinha de música? — perguntou ele, olhando para a peça esculpida em madeira, cujo mecanismo parecia estar arruinado agora. — Eu poderia pensar em outros presentes.
Ela o encarou, nem um pouco convencida.
— Eu poderia aceitar outros presentes. Mas você poderia?
Ele apertou os lábios a contragosto.
A música que compunha e as caixinhas que esculpia eram o ápice de sua arte — a materialização das partes mais puras e autênticas de sua alma. Nenhum outro presente que ele desse a ela poderia superar o significado daquilo. E seria uma ofensa oferecer-lhe algo menos que o seu melhor.
Era insuportável sequer imaginar que ela não poderia receber aquela parte dele e guardá-la consigo, pois o mundo dela a arruinaria em instantes. Por quanto tempo seria capaz de suportar aquela situação? Incapaz de oferecer o melhor que suas mãos poderiam criar, proibido de entregar os sentimentos mais profundos de seu ser para aquela que deveria possuir seu coração e conhecê-lo por inteiro.
Nunca tinha pensado naquilo desde o momento em que se conheceram, meses atrás.
Caminhava pela floresta em busca das melhores matérias-primas para suas próximas criações quando ouviu — o som mais lindo da natureza, nenhuma de suas composições jamais conseguiria superar — Marina cantarolando distraidamente enquanto brincava com os pássaros e outros animais que só existiam na superfÃcie.
Era ainda uma das primeiras vezes em que ela tinha se aventurado no mundo dele, tudo muito novo, curioso e instigante aos seus olhos.
Jorge se lembrava de como ficara maravilhado pelo canto dela — embora Marina sempre insistisse que não havia nada demais em sua voz, inclusive achava que soava estranha e desafinada ali, navegando pelo ar e não pela água.
De qualquer forma, foi naquele instante que ele soube que precisava conhecê-la.
Os dois se deram bem logo de inÃcio. As almas de ambos transbordando de curiosidade de tal maneira que não havia espaço para qualquer medo ou hesitação. Nadaram juntos naquele mesmo rio, competindo em velocidade e no tempo que passavam embaixo d’água (embora claramente não fosse uma competição justa). Depois ficaram estirados na grama, sentindo o calor do sol sobre sua pele e escamas, cercados pelos sons da floresta e a vagarosa caminhada das nuvens muito acima de suas cabeças.
Jorge contou sobre seu trabalho como compositor e escultor de caixinhas de música, sobre a terra distante da qual tinha vindo em viagem e de como precisaria partir em pouco tempo — mas poderia voltar no próximo verão. E ela contou sobre seu jardim submerso e todo tipo de animal e criatura marinha única que a visitava por lá. Disse que queria apresentá-los a ele, da mesma forma que ele disse que queria mostrá-la sua coleção completa de esculturas.
Os dois apenas sorriram diante das propostas e convites, encantados demais para se preocupar com os detalhes de como aquilo poderia acontecer de fato.
Nenhuma de suas diferenças parecia um problema naquela época. Nem o fato de Jorge suportar apenas pouco mais de um minuto submerso, nem o fato de Marina precisar ser carregada para se locomover sobre a terra. Os dois eram de mundos completamente diferentes, mas nada daquilo importava — a descoberta e a surpresa eram justamente as partes mais interessantes de seus encontros.
Mas agora a situação era outra.
— Além disso — continuou Marina, sua voz trazendo-o de volta ao presente —, estive pensando cada vez mais sobre a questão da distância…
— Sabe que não me incomodo de caminhar até aqui para te ver — retrucou ele, subitamente defensivo.
— Eu sei — disse ela. — Também não me importo de nadar desde o oceano até este rio. Isso não é um problema agora. Mas não é dessa forma que quero continuar para sempre, nos vendo só por algumas horas a cada vários dias.
Ele passou as mãos pelos cabelos castanho-claros. O calor do sol começando a deixá-lo desconfortável enquanto o fazia suar. Aproximou-se um pouco mais e segurou uma das mãos dela.
— Pode ser difÃcil, mas sei que podemos fazer funcionar. Estamos fazendo há meses e podemos continuar, mesmo que precisemos mudar algumas coisas.
Ela o encarou com um sorriso triste e ele soube que suas palavras não seriam o que gostaria de ouvir.
— Pode estar funcionando para você. Mas percebi que não estamos caminhando na direção do futuro que eu quero. Não acho que continuar, mesmo como as coisas estão agora, seria o bastante para mim.
— E qual o futuro que você quer?
— Um em que vivêssemos juntos, pudéssemos nos ver todos os dias sem que fosse necessário combinar horários e viajar sozinhos durante horas. Um futuro em que pudéssemos compartilhar todos os momentos de nossas vidas e não só os instantes em que ficamos à beira desse mesmo rio, no limite entre nossos mundos.
— Você poderia viver no meu mundo — ele tentou argumentar.
— Mas que tipo de vida seria essa? Depender de você para ir a qualquer lugar, ficar sempre escondida dos outros humanos, ter um aquário apenas para me lembrar de tudo que teria perdido?
— Nós poderÃamos encontrar formas de consertar isso também — ele ainda não sabia como. Mas sabia que poderiam encontrar se procurassem por mais tempo.
Marina fez uma careta para sua escolha de palavras. O desespero dele estava fazendo com que apenas piorasse as coisas.
— É isso que quero que você entenda — disse ela em um murmúrio, seu rosto se aproximando enquanto os olhos brilhavam, prestes a transbordar. — Não há como sua caixinha de música tocar no oceano, não importa o quanto tente consertar. É simplesmente incompatÃvel com essa realidade. — Antes que ele pudesse dizer qualquer coisa, ela continuou, seu olhar fixo no dele e suas palavras mais sinceras do que nunca. — Eu amei viver esse sonho com você, mas devÃamos ter previsto que alguma hora a realidade nos obrigaria a deixar a fantasia de lado.
Jorge inclinou-se para pegar a outra mão dela, afastando-a da caixinha de música arruinada que tinha desencadeado todo aquele desastre.
— Eu só queria… — disse, ainda mal sabendo o que queria dizer, quais palavras estava buscando. — Só queria que soubesse que eu faria qualquer coisa para te manter na minha vida.
Ela sorriu, embora lágrimas escorressem pelo seu rosto agora.
— Eu sei disso — sua voz soava frágil e diminuta, embargada como se viesse das profundezas de um poço. — Você está sempre tentando consertar as coisas, encontrar as notas destoantes como faz com a melodia de suas músicas. É adorável. Mas não se trata do que você estaria ou não disposto a fazer. É sobre nós dois, e talvez eu não esteja tão disposta assim.
— Eu não entendo…
— Eu amo você e também adoraria que houvesse uma forma de mantê-lo na minha vida. Mas para isso, precisaria abrir mão de todas as outras coisas importantes que também gostaria de ter no meu futuro.
— Então escolheu abrir mão de mim?
— Escolhi abrir mão do amor.
Por um momento, Jorge ficou sem palavras.
— Como pode dizer isso? O amor seria minha maior prioridade ao considerar um futuro, nunca conseguiria abrir mão dele.
— Eu sei — disse ela. — E esse é o problema.
Naquele momento, a rachadura que Jorge tentava restaurar em seu coração tornou-se irreparável — ela o atravessou por inteiro e o estilhaçou em pedaços demais para serem remendados.
Mas, finalmente, ele entendeu.
Não dependia apenas dele. Não poderia insistir sobre o quanto amava Marina e faria qualquer coisa por ela e seu relacionamento — não importava o quanto estivesse disposto a sacrificar e se empenhar para fazer dar certo.
Nunca daria certo enquanto os dois não fossem sinceros sobre o que realmente queriam. E mais do que isso, enquanto não ouvissem de verdade o significado do que estavam dizendo. Jorge estava sempre atento às notas desafinadas, pronto para colocá-las no lugar e fazer a música tocar direito. Mas ele não estava ouvindo a composição inteira — não estava prestando atenção a qual música tocava.
Não estava ouvindo de verdade o que Marina tentava lhe dizer.
Mas ouvia agora. E não era o que ele gostaria. Estava errado, fora do tom e da melodia — mas não havia nada que pudesse fazer a respeito além de continuar ouvindo.
— Você está correndo atrás da felicidade — disse ela —, e eu também. Mas se continuássemos seguindo pelo mesmo caminho, só um de nós a encontraria. Talvez nem isso…
Não sabia o que pensar. Mal conseguia acreditar que aquilo estava realmente acontecendo.
Mas estendeu sua mão para secar as lágrimas que encharcavam o rosto de Marina.
— Isso é uma despedida, então? — perguntou ele, por fim.
As lágrimas no rosto dela aumentaram, mas um lampejo de alÃvio também podia ser visto ali. O alÃvio por ter sido ouvida e compreendida.
— Eu nunca vou te esquecer — disse ela. — Espero que encontre o amor que procura.
— Espero que encontre o caminho certo para o futuro que procura.
Ela se aproximou, um tanto hesitante, mas ele se inclinou e a envolveu em um abraço antes que a incerteza se prolongasse demais. Envolveu o corpo trêmulo e soluçante dela sabendo que aquela seria a última vez.
— Obrigada por me apresentar à sua música — sussurrou ela, próximo ao seu ouvido como estava. — Ela sempre vai ser meu som favorito do seu mundo.
— Sua voz sempre vai ser meu som favorito do meu e do seu mundo.
Levou longos instantes até que os dois conseguissem se desgrudar e voltar a se encarar nos olhos, forçados a tirar a cabeça das nuvens e afundar seus pés sobre terra firme.
Antes que a dor se prolongasse por muito mais tempo, despediram-se pela última vez e Marina mergulhou no rio, formando ondas na água. Mas pouco depois a superfÃcie já tinha voltado a ser tranquila e serena como um espelho. Como se ela nunca tivesse estado ali.
Jorge esperou sozinho por mais um instante, apenas encarando a caixinha de música que tinha ficado sobre a grama.
Sozinha.
Arruinada.
Abandonada.
A única prova do sonho que ele estava vivendo antes que precisasse acordar pela última vez.
Era uma ironia cruel do destino que sua música — responsável por aproximá-lo tanto de Marina no inÃcio — tinha sido também o estopim para que os dois, agora, se afastassem para sempre.
Â
FIM