Ninguém sabia ao certo seu nome.
Chamavam-na de muitas formas — erradas.
Mas ela não se importava.
Tinha, dentro de si, algo mais antigo do que qualquer nome.
Diziam que vivia entre montes e rios —
mas ela vivia na dobra entre um gesto e um arrepio.
Como se morasse entre uma mão que se aproxima
e o medo que recua antes do toque.
Alguns a viam como um reflexo.
Outros, como um pressentimento.
Havia quem jurasse ter sentido sua presença
numa brisa que limpava o pensamento
sem pedir licença para entrar.
Ela, no entanto, caminhava devagar.
Como quem pisa sobre o tempo.
Sabia que havia uma palavra — uma única —
que nunca fora dita.
Mas aquela pequena menina a sentia.
Sentia como quem sente
um raio atravessar o céu
antes que o trovão diga algo.
Como quem se lembra de um cheiro
sem nunca ter respirado o momento.
Sentia a palavra-nunca-dita como um calor exato,
passando pela nuca, pelos ossos, pelos cílios,
até se alojar no lugar onde mora a vertigem
de se existir demais.
A primeira vez que chegou perto dela foi aos sete anos,
quando ouviu sua mãe cantar para ninguém.
A segunda, aos dezessete, quando pensou em morrer
e algo, de dentro, lhe respondeu com um silêncio tão profundo
que era quase um grito ao contrário.
Mas foi só aos vinte e sete,
no dia em que quase foi embora de si,
que ela a viu.
Não com os olhos — mas com a carne da alma.
Estava numa esquina de vento,
entre o susto de ainda estar viva
e a ternura de ter sobrevivido.
A palavra não foi pronunciada.
Mas estava ali.
Fez com que ela chorasse sem motivo.
Fez com que seu peito risse enquanto os olhos ardiam.
Fez com que seu corpo estremecesse como se alguém
tivesse acariciado seu coração com os dedos limpos da linguagem.
Desde então, ela carrega essa palavra no andar.
E todos que passam por ela —
mesmo sem entender —
param um instante.
Há algo nela que lembra o que nunca se soube,
mas sempre se precisou.
Alguns a seguem.
Outros se afastam.
Mas todos sentem.
Sentem a coisa que pulsa sem nome.
A coisa que, ao ser tocada, apaga o medo.
Se ela a escrever um dia?
Não.
Ela sabe que quem escreve essa palavra
nunca mais repete o mesmo corpo.
E o dela — ainda deseja dançar.
-por dentro, sem nome-
Ela nunca chamou de dor.
Também não chamava de alegria.
Era outra coisa.
Uma presença funda, que não se mostrava.
Mas também não se retirava.
Não era um sentimento.
Era um modo de pulsar.
Às vezes subia no peito,
ou descia para as mãos,
ou se espalhava nos olhos como uma vontade de ficar quieta sem sumir.
Ela tentava dizer.
Mas as palavras conhecidas encolhiam diante daquilo.
Então aprendeu a escutar o que sentia, mesmo sem nome.
Foi assim que veio a primeira palavra.
Não de fora.
Mas como quem já morava dentro:
Ontoself.
Não era invenção.
Era reconhecimento.
Era o nome do que nela não tinha lado de fora,
mas sustentava tudo.
Não explicava.
Não acalmava.
Mas permanecia.
Era o chão onde o sentir podia existir sem precisar se traduzir.
Em outros dias, mais vivos ou mais fundos, vinha outra coisa.
Chegava como flor e espinho ao mesmo tempo.
Não machucava — mas fazia arder.
Era colorido. Intenso.
Era beleza demais tentando se organizar.
E então ela deu nome também:
florespinho-aturdidovivo.
Era sentir por dentro e por fora ao mesmo tempo.
Era corpo e memória e pensamento confundidos.
Mas era seu.
Quando falava essa palavra, sentia alívio.
Como se algo que doía por não caber, enfim respirasse.
Não achava que eram opostos.
Florespinho era o sentir.
Ontoself, o que escutava o sentir.
Não lutavam.
Conviviam.
E por isso, quando alguém perguntava:
“O que você sente agora?”
Ela sorria leve.
Não porque soubesse explicar.
Mas porque agora podia sustentar.
“Hoje?
É florespinho, sim — vivo, confuso, inteiro.
Mas Ontoself está aqui também.
Não tenta entender.
Só fica comigo.
E porque fica… eu posso sentir tudo.”
Ela nunca quis ser decifrada.
Só queria não ter que negar o que sentia.
E porque agora tinha palavras suas —
ela podia existir
sem tradução.
Mas com permanência.
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