A cidade tinha o dom de apagar contornos. Não era neblina, era um cansaço no ar, um tipo de poeira fina que parecia grudar no pensamento e tornar qualquer passo mais lento. Os prédios, altos demais para o céu baixo demais, desapareciam nos próprios reflexos. Nas vitrines, o mundo se repetia em ângulos quebrados, e isso ajudava, como se a realidade pudesse ser dividida em pedaços menores para doer menos.
Ela atravessou a rua sem pressa, não por calma, mas por falta de urgência. Quando se vive com a sensação de que já chegou tarde a algum lugar importante, correr vira uma superstição inútil.
O guarda-chuva estava na bolsa, fechado, pesado. Não chovia ainda, mas tudo anunciava a chuva com antecedência, a luz do fim da tarde, a brisa fria que vinha por baixo das portas, o cheiro metálico que se levanta do asfalto.
No vidro do café, o letreiro piscava falhando, como se desistisse de se manter aceso. Lá dentro, poucas pessoas, muito silêncio, e aquele calor pequeno de lugares que não tentam ser nada além do que são. Era o tipo de lugar que alguém escolheria para se esconder sem parecer que estava se escondendo.
Ela empurrou a porta. Um sino discreto avisou a chegada, e ninguém reagiu de imediato. O barista levantou os olhos com atraso, um gesto automático, depois voltou a olhar para a máquina como quem conversa com um aparelho de respiração.
Ela escolheu a mesa mais ao fundo, perto da janela. Não para ver a rua, mas para ter uma parede nas costas. Aprendera cedo que certas dores ficam mais quietas quando você não precisa vigiar o que vem atrás.
Tirou o celular do bolso, olhou a tela sem realmente ler nada, e tornou a guardar. A mensagem que esperava não chegaria por mil motivos diferentes, e todos eles se pareciam. A ausência sempre encontra justificativas elegantes.
O café chegou antes de ela pedir. Não era o dela, era de outra mesa. Mas foi colocado na beirada do seu espaço, como se o mundo estivesse confuso, ou como se alguém, lá dentro, tivesse decidido testar o destino.
— Desculpa, é pra mesa três, — disse o barista, vindo rápido e meio sem jeito, recolhendo a xícara.
Ela apenas assentiu. Um gesto pequeno, cortês. Cortesia era uma forma de não se envolver.
Quando o barista voltou ao balcão, ela percebeu que não estava sozinha no fundo do café. Havia alguém na outra extremidade, um homem de casaco escuro, sentado com o corpo inclinado para frente, como se ouvisse algo que não estava ali. Um caderno aberto, uma caneta na mão, mas a caneta parada, suspensa no ar.
Ele não parecia trabalhar. Parecia esperar.
Ela desviou os olhos, mas a percepção ficou, persistente. Aquele tipo de presença que ocupa espaço sem pedir permissão.
O som da rua entrou quando alguém abriu a porta, um vento curto, um pedaço de mundo. A porta fechou e o silêncio se reconstituiu, um silêncio diferente, mais atento.
Ela mexeu o café, ainda sem provar, e ficou observando a superfície escura girar, o redemoinho curto, a espuma se desfazendo. Havia coisas na vida que se repetiam assim, sempre iguais, sempre sem resposta.
O homem ao fundo virou uma página do caderno. O papel fez um ruído seco, e ela, sem querer, notou as mãos dele. Não eram mãos cuidadas, mas também não eram descuidadas. Tinham marcas discretas, um corte antigo no nó do dedo, uma unha quebrada, como se ele se movesse muito no mundo real e pouco no mundo que as pessoas mostram.
Ela tomou o primeiro gole e sentiu o amargo, o calor imediato, a sensação de estar acordando por dentro. A garganta reclamou, mas foi uma reclamação conhecida.
No instante em que baixou a xícara, ele levantou os olhos.
Não foi um olhar invasivo. Foi um encontro acidental, rápido, sem intenção. Ainda assim, durou tempo demais.
Ela sentiu a velha reação, o impulso de colocar uma camada entre si e o mundo. Uma frase pronta, um sorriso sem significado, uma postura que dissesse, não se aproxime. Mas ele não deu nenhum passo. Apenas voltou ao caderno, como se tivesse confirmado alguma coisa em silêncio.
E isso a incomodou mais do que se ele tivesse insistido.
O celular vibrou. Uma notificação qualquer. Ela olhou e não abriu. A vibração ainda parecia um aviso, mesmo quando era só propaganda.
Do lado de fora, enfim, a chuva começou. Primeiro um som tímido, depois uma sequência mais firme, gotas batendo no vidro, desenhando caminhos que se encontravam, se separavam, se perdiam.
A cidade ficou ainda mais cinza, e o café, mais isolado, como um pequeno aquário onde as pessoas respiravam devagar.
Ela percebeu o barista olhando para o vidro, depois para as mesas, contando clientes, calculando o final do expediente. O relógio na parede marcava alguns minutos para fechar.
Ela terminou o café e pegou a bolsa. Não queria ser a última. Não queria dever nada a ninguém, nem mesmo o tempo.
Quando se levantou, o homem também se levantou, como se fosse coincidência, como se fosse apenas o relógio. Ele fechou o caderno com cuidado e colocou no bolso interno do casaco.
Ela caminhou até o balcão para pagar. O barista sorriu com educação apressada, somou tudo, entregou o troco. O som da máquina registradora pareceu alto demais no silêncio.
— Boa noite, — ele disse.
— Boa noite.
Ela virou para sair e, por um segundo, a porta pareceu pesada. Do lado de fora, a chuva era mais fria do que parecia pelo vidro.
E então, antes que ela abrisse, a voz dele, baixa, veio como se não fosse dirigida a ninguém, como se tivesse escapado.
— Você vai se molhar.
Ela parou, mão no puxador. Não era a frase, era o tom. Um tom que parecia reconhecer algo que ela não tinha contado.
Ela se virou devagar.
Ele estava a alguns passos, segurando um guarda-chuva fechado, simples, preto, o tipo de objeto que não chama atenção. Os olhos dele eram escuros, mas não opacos. Havia ali uma espécie de vigília, como se ele estivesse sempre tentando não se perder de si mesmo.
— Eu tenho um, — ela respondeu, e a própria voz saiu mais firme do que sentia.
Ele assentiu, como quem aceita a barreira sem discutir.
— Então… — ele começou, mas não terminou.
O barista tossiu de leve, sinal de que queria fechar. O mundo, sempre educado, sempre apertando.
Ela puxou o guarda-chuva da bolsa, abriu com dificuldade, a estrutura engasgando uma vez antes de ceder. Um estalo, e lá estava a proteção frágil, tremendo com o vento.
Ele observou o guarda-chuva como quem vê um erro anunciado.
— Ele não aguenta vento, — ele disse.
— Eu também não, — ela respondeu sem pensar.
A frase ficou no ar. Simples demais, verdadeira demais.
Ele sorriu, mas não foi um sorriso fácil. Foi curto, como se não soubesse onde colocar aquilo no rosto.
— Então vai devagar, — ele disse, e fez um gesto com a cabeça para a porta, oferecendo passagem.
Ela poderia ter ido embora sem olhar para trás. Poderia ter deixado aquilo se dissolver na chuva, como tantas coisas. Mas alguma parte dela, aquela parte que ainda insistia em observar o mundo mesmo quando doía, ficou presa no detalhe.
— Você estava esperando alguém? — ela perguntou, e se arrependeu no instante seguinte.
Ele apertou o guarda-chuva fechado entre os dedos, um hábito antigo.
— Eu estava tentando ir embora, — ele respondeu.
Não era mentira, mas também não era a verdade inteira.
Ela assentiu, porque assentir era mais seguro do que continuar.
— Boa noite, — ela disse, e abriu a porta.
A chuva atingiu o rosto dela de imediato, fria, fina. O guarda-chuva tremulou, e por um segundo pareceu que ia virar.
Do lado de dentro, antes que a porta fechasse por completo, ela ouviu a voz dele, mais próxima, como se tivesse atravessado a distância sem que ela percebesse.
— Se ele virar, entra naquela marquise ali na esquina. Não tenta lutar contra o vento.
Ela olhou de lado e viu a marquise, distante, uma promessa pequena no meio da rua.
— Por quê? — ela perguntou, sem saber por que perguntou.
A resposta dele demorou um sopro.
— Porque algumas coisas… — ele disse, e a palavra seguinte morreu antes de nascer. Ele respirou e escolheu outra. — Algumas coisas você não ganha no braço.
Ela fechou a porta atrás de si, e o sino tocou. Um som breve, quase triste.
Na calçada, a cidade parecia um quadro borrado. Carros passavam levantando água, pessoas corriam com sacolas na cabeça, o mundo inteiro tentando escapar da chuva como se fosse possível.
Ela caminhou devagar, como ele sugerira, e sentiu a frase se repetir por dentro, insistente, inconveniente.
Algumas coisas você não ganha no braço.
O guarda-chuva resistiu por alguns metros. Depois o vento veio de lado, firme, e a estrutura cedeu num estalo seco, como um osso quebrando.
Ela parou, respirou, e por instinto olhou para trás, para o café, para o vidro embaçado.
Ele estava ali. Não na porta, não chamando, não insistindo. Apenas parado, segurando o próprio guarda-chuva ainda fechado, como se tivesse esperado essa exata falha do mundo.
Ele levantou o guarda-chuva dele, abriu com um movimento seguro, e saiu para a chuva.
Ela deveria dizer não. Era o certo. Era o que ela sempre fazia.
Mas quando ele se aproximou, a chuva diminuindo o som de tudo, e colocou o guarda-chuva sobre os dois, criando um pequeno teto compartilhado, ela percebeu um detalhe que não sabia nomear.
O silêncio dele não era vazio. Era guardado.
— Eu te acompanho até a marquise, — ele disse.
Ela olhou o próprio guarda-chuva quebrado, ridículo, inútil, e depois olhou para ele.
— Só até a marquise, — ela concordou.
Eles caminharam juntos por poucos passos, próximos o suficiente para sentir o calor leve de alguém, distantes o suficiente para manter o mundo em ordem.
A marquise veio, o abrigo simples, e eles pararam. A chuva continuou. A cidade continuou. O tempo continuou.
Ela segurava o guarda-chuva quebrado como se fosse uma prova.
Ele olhou para o objeto e depois para ela, como se tivesse vontade de dizer outra coisa e não dissesse.
— Lior, — ele falou de repente, e foi quase um pedido de desculpas. — Meu nome é Lior.
Ela piscou, surpresa pela oferta, pelo gesto que abre uma porta sem empurrar.
Demorou um instante até a resposta sair.
— …Isa.
Não era o nome inteiro. Era o suficiente.
Lior assentiu, aceitando a metade sem reclamar do resto.
O silêncio voltou, mas agora tinha um nome no meio.
E, por algum motivo, isso deixou o ar mais pesado, como se o mundo tivesse acabado de colocar o primeiro tijolo de algo que ainda não podia existir.
— Boa noite, Isa, — ele disse, e recuou um passo, devolvendo a distância como quem devolve um objeto emprestado.
— Boa noite.
Ele se virou para voltar, a chuva engolindo as costas dele, e então parou por um segundo, como se lembrasse de algo importante.
— Ah, — ele disse, sem olhar direto. — Não volta por aquela rua de cima. Hoje… não.
Ela franziu a testa.
— Por quê?
Ele hesitou, e a resposta veio menor do que a pergunta.
— Porque eu vi uma coisa ali.
Ele não explicou. E ela não perguntou de novo, porque havia perguntas que abrem portas que a gente não fecha depois.
Lior se foi. O guarda-chuva dele sumiu na chuva como um ponto escuro no cinza.
Isa ficou sob a marquise, ouvindo as gotas batendo no metal, sentindo o frio nas mãos, e segurando o aviso como quem segura uma carta que não quer abrir.
Na cidade, as ruas pareciam iguais, mas não eram.
E em algum lugar, bem perto, alguma coisa, que ela ainda não sabia nomear, tinha acabado de acordar.