As oferendas aos Deuses sempre traziam sorte para Niffred, mas naquele ano, as crianças sussurravam que algo estava diferente no céu.
Yara balançava as pernas no parapeito da janela da casa paroquial, observando as fogueiras dançarem na praça central. O som das flautas e alaúdes se misturava aos risos, criando uma sinfonia que fazia seu coração bater no mesmo ritmo da festa. Aos nove anos, ela já havia decorado o sermão que o pai repetiria: os Deuses protegiam quem oferecia o melhor de suas colheitas.
“Yara, venha ajudar com os cestos,” chamou seu pai, Sacerdote Korde, ajeitando os símbolos sagrados no peito da túnica cerimonial.
Ela saltou da janela, correndo até a mesa onde grãos dourados transbordavam de cestos de vime. Suas mãos pequenas separavam os melhores frutos enquanto observava o pai polir algo que brilhava como uma estrela — uma relíquia antiga que ele guardava apenas para cerimônias especiais.
“Pai, por que o céu está tão vermelho hoje?” perguntou, apontando para o horizonte através da janela aberta.
Korde parou de polir a relíquia e seguiu seu olhar. Por um momento, suas sobrancelhas se franziram. Então sorriu, bagunçando os cabelos castanhos da filha.
“É apenas a luz das fogueiras, pequena. Os Deuses estão felizes com nossa celebração.”
Mas quando Yara se virou para pegar mais grãos, não viu o pai esconder rapidamente a relíquia dentro das vestes, nem percebeu como seus dedos tremiam ao fazer o sinal sagrado.
Lá fora, a música continuava, e ninguém notou que as estrelas piscavam de forma estranha. A praça fervilhava quando Korde emergiu da casa paroquial, Yara saltitando ao seu lado. Cestos de oferendas se empilhavam ao redor da fogueira central, enquanto famílias inteiras se reuniam em círculos concêntricos.
“Meus filhos,” a voz de Korde ecoou pela praça, “hoje agradecemos aos Deuses por mais uma colheita abundante.”
Yara sorriu, orgulhosa. Seu pai era respeitado por todos, suas palavras capazes de acalmar até os mais preocupados. Ela nem percebeu que ele evitava olhar para o céu.
“Para você, pequena caçadora,” Korde sussurrou, entregando-lhe um arco perfeitamente esculpido em carvalho. “Para que um dia proteja o que ama.”
Os olhos de Yara brilharam. O arco era leve, equilibrado, como se tivesse sido feito especialmente para suas mãos. Ela o segurou com reverência, imitando a postura que via os caçadores adotarem.
“Obrigada, pai!” sussurrou, abraçando suas pernas.
A cerimônia continuou, vozes se elevando em cânticos antigos. Mas no horizonte, um estrondo distante cortou o ar. Os adultos pausaram, inquietos.
“Apenas uma tempestade,” Korde disse, sua voz soou forçada. “Continuemos.”
O primeiro clarão rasgou o céu como uma estrela cadente, mas subindo ao invés de descer.
Yara apontou, fascinada. “Pai, olhe! Os Deuses estão dançando com a terra!”
Korde empalideceu. A morada dos Deuses aparecia ao longe, um detalhe que despertou algo ancestral em sua memória. Algo que os manuscritos antigos mencionavam como mau presságio. Quando o raio azul da proteção divina for invocado da caverna é porque o perigo estava próximo.
“Yara,” sua voz saiu rouca, “venha aqui. Agora.”
Mas era tarde demais. Luz divina desceu em fúria, queimando tudo ao redor do templo, explodindo em chamas que não se comportavam como fogo comum. O metal dos sinos derreteu instantaneamente, a pedra se desintegrou como areia. Pessoas corriam, gritando, enquanto mais clarões rasgavam o céu.
“Não é fogo comum,” Korde murmurou, puxando Yara contra o peito.
O pânico tomou conta da praça. Famílias inteiras corriam em direções opostas, mas Korde se movia com propósito, carregando Yara em direção às colinas.
“Pai, para onde estamos indo?” ela gritou por sobre o estrondo das explosões.
“Para um lugar seguro, pequena. Onde os Deuses não conseguem ver.”
Ele correu pela trilha íngreme que levava à caverna onde costumava levar a filha para ensinar sobre ervas medicinais e passar tudo o que havia aprendido com a sacerdotisa de Beladium. O refúgio estava escondido entre rochas antigas, invisível para quem olhava do céu.
Dentro da caverna, Yara se agarrou às vestes do pai, tremendo. “Por que eles estão fazendo isso? Nós fizemos as oferendas!”
Korde ajoelhou-se na altura dela, tirando rapidamente a aljava de couro de seus ombros e pressionando o arco nas pequenas mãos trêmulas. A relíquia sagrada veio em seguida, ainda quente contra a palma da mão.
“Escute com atenção,” sua voz era firme apesar do desespero. “Fique aqui. Não saia por nada. Há água limpa no fundo da caverna e frutas secas no nicho ali.” Apontou para uma fenda na parede. “Esta relíquia pertencia aos antigos,” Korde sussurrou, pressionando o metal morno nas mãos da filha. “Ela desperta perto dos artefatos perigosos. Se você sentir ela esquentar e vibrar, corra. Significa que as coisas amaldiçoadas estão por perto. Eu volto assim que conseguir tirar os outros de lá.”
“Não!” Yara se agarrou à túnica dele. “Não me deixe sozinha!”
Korde beijou sua testa, lágrimas rolando por seu rosto. “Você é corajosa, minha pequena. Mais corajosa que qualquer caçador. Eu prometo que volto.”
Lá fora, um grito cortou o ar — a voz de Marta, a anciã que cuidava dos órfãos do templo.
“Eles estão presos,” Korde disse, reconhecendo o desespero. “Preciso ir. Mas você está segura aqui, entende? Os Deuses antigos protegeram esta caverna por séculos.” Ele pausou na entrada. “Se eu não voltar até o amanhecer… vá para a floresta profunda. Siga o riacho. E Yara,” Ela o encarou com olhos arregalados. “nunca se esqueça de quem você é.”
E então, ele desapareceu na fumaça e nas chamas.
Yara esperou. Ouviu os gritos diminuírem. Ouviu o silêncio chegar. Quando o primeiro raio de sol entrou na caverna, ela sabia que estava sozinha.
Na primeira manhã em que ousou sair, as cinzas ainda estavam quentes. Nos dias seguintes, o vento levou os últimos restos da vila — e junto deles, qualquer esperança de vê-lo voltar caminhando entre os destroços. Yara começou a contar os dias pelas sementes que brotavam na terra fendida. Quando a terceira flor nasceu no mesmo caule, ela soube: ele não viria.
No início, sobreviveu de frutas silvestres que reconheceu das caminhadas com o pai. Amoras azedas, nozes duras que precisava quebrar com pedras, raízes que mastigava até virarem papa amarga. Bebia água do riacho que corria perto da caverna, sempre tomando cuidado para não se aproximar demais da margem escorregadia. Mas as frutas ficavam cada vez mais raras, e seu estômago gemia constantemente. Foi quando viu o coelho.
Um animal gordo e lento, alimentando-se de ervas a poucos metros dela. Yara segurou o arco com mãos trêmulas, recordando as lições na vila dos caçadores. Respirar fundo. Mirar. Soltar.
A flecha voou em linha reta mas errou o alvo, que correu assustado. Precisaria treinar para conseguir caçar com aquele arco. Por enquanto, ia ter que se contentar com o que podia fazer. Com as mãos, arrancava os peixes do riacho, escorregadios e pequenos demais para saciar por muito tempo, enquanto praticava a pontaria em nós nos troncos e galhos secos.
Errava. E muito. As primeiras flechas batiam nos troncos e despencavam sem força. Começou a repetir os gestos que vira nas mãos do pai — o cotovelo firme, a respiração antes do disparo, o silêncio antes do soltar. Com o passar dos dias, sua postura se tornou mais robusta, as mãos mais estáveis, o olhar mais afiado. Eventualmente, encontrou um coelho semelhante. E desta vez, o tiro foi certeiro.
Quando se aproximou da presa, a relíquia do pai, guardada cuidadosamente no bolso de sua túnica esfarrapada, vibrou suavemente contra seu peito. Ela ignorou a sensação estranha, concentrando-se em uma realidade mais urgente: precisava aprender a limpar e cozinhar aquela carne, ou morreria de fome.
O frio chegou, cortando através dos trapos que restavam de suas roupas de festa. Yara escavou um buraco raso contra uma pedra grande, cobrindo a entrada com galhos entrelaçados. Suas mãos, antes macias de uma vida tranquila, agora sangravam pelas rachaduras causadas pelo gelo. O estômago havia parado de doer.
A neve caía pesada quando ela ouviu o gemido. Entre as árvores, um cervo jovem jazia de lado, a pata traseira presa sob um galho caído. Os olhos grandes e escuros a fitavam sem medo, apenas resignação. O animal ofegava, vapor escapando de seu focinho. Yara segurou o arco com dedos trêmulos. Tinha apenas duas flechas restantes.
“Pai dizia que devemos proteger os fracos,” sussurrou para o vento. “Como eu posso fazer isso aqui?”
O cervo tentou se levantar e caiu novamente. Estava machucado, sangrando e fraco, um som baixo e desesperado escapando de sua garganta. Yara fechou os olhos, ouvindo as palavras do pai ecoarem em sua mente: “Para que um dia proteja o que ama.”
E sua flecha foi lançada para tirar o sofrimento daquele animal.
O vazio afundou no seu peito. Estava indo de contra todas as lições de seu pai. Entregou a morte para que ele não tivesse que sofrer mais esperando por ela. A floresta havia lhe ensinado sua primeira lição: a sobrevivência prevalecia à bondade. Yara caiu de joelhos na neve, soluçando até não ter mais lágrimas. Então, com mãos que já não tremiam tanto, começou o trabalho que a manteria viva.
A carne durou semanas. Ela lembrava-se de como sua mãe defumava tiras finas sobre pequenas fogueiras. Tentou enterrar pedaços na neve para conservar. Fez agulhas com os ossos, linha com os tendões. A pele tornou-se um manto grosseiro que a protegia do vento frio. Naquele inverno, a menina da festa havia morrido completamente. O que restava era algo mais afiado que uma criança de Niffred.
No primeiro verão, ela correu da fome. Dormia mal, assustada com os próprios ossos aparecendo sob a pele. Cada fruto arrancado do mato era uma vitória breve; cada dia sem febre, um alívio silencioso. No segundo, aprendeu a montar armadilhas e a dormir em galhos altos. Copiava os ninhos dos pássaros e observava as pegadas no barro até conseguir prever o caminho dos pequenos animais. Aprendeu que silêncio era mais valioso que força. No terceiro, andava como sombra entre as árvores. Os olhos já não buscavam socorro; caçavam. As mãos, antes trêmulas, conheciam o peso certo da flecha e o cheiro da terra molhada que denunciava tempestade.
Quando a neve derreteu no inverno seguinte ela encontrou fragmentos de metal estranho perto dos ossos descartados, a relíquia em seu peito vibrou. Mas Yara não entendeu o aviso.
Quando a fumaça voltou a riscar o céu, não hesitou, seguiu o cheiro. Um dia depois, encontrou Valdris. Àquela altura, já conhecia cada som da floresta, cada pegada na lama, cada sinal de perigo no vento. Seus pés descalços mal faziam ruído sobre as folhas secas enquanto seguia o rastro de fumaça que manchava o horizonte.
A vila era menor que Niffred, mas a devastação fora idêntica. Casas reduzidas a esqueletos enegrecidos, o cheiro acre de pedra derretida misturado ao odor azedo da morte. Yara caminhou entre os destroços com o arco pronto, examinando os padrões que agora reconhecia: o centro da vila destruído primeiro, as bordas chamuscadas como se o fogo tivesse se espalhado em círculos perfeitos.
Começou a se perguntar por que os Deuses estavam fazendo aquilo com mais um lugar. Fragmentos metálicos brilhavam entre as cinzas. A relíquia do pai vibrou contra seu peito quando ela se aproximou.
“Menina…”, a voz era um sussurro áspero.
Yara girou, flecha engatilhada, até encontrar um homem escorado contra uma parede meio desmoronada. Suas roupas estavam carbonizadas, e um ferimento profundo atravessava seu peito.
“Você… sobreviveu?,” ele murmurou, tentando focar os olhos em seu rosto.
“Não sou daqui.” Yara respondeu, aproximando-se cautelosamente.
O homem riu, mas o som terminou em tosse sangrenta. “Três… três vilas já. Sempre a mesma… a mesma maldição.”
“Que maldição?”
“Demônios dos céus,” ele sussurrou, apontando para cima com dedos trêmulos. “Voltaram… como nos tempos antigos. Buscam… buscam os segredos dos primeiros.”
“O que quer dizer? Não foram os Deuses?”
O homem balançou a cabeça fazendo esforço. “Os Deuses não fariam isso conosco. Eles são demônios.”
A relíquia vibrou mais forte. Yara a segurou, sentindo o metal esquentar contra sua pele.
“O que eles querem?”
Mas os olhos do homem já haviam se fechado. Yara permaneceu ali por um longo tempo, observando o cadáver e os fragmentos metálicos espalhados ao redor. Recolheu alguns. Não mais uma criança perdida fugindo da morte, mas uma caçadora seguindo rastros. Onde quer que os “demônios dos céus” fossem atacar em seguida, ela estaria esperando. Agora estava certa: seu pai se enganara. Não eram Deuses. Eram demônios. E ela ia vingar Niffred e Valdris. O vento carregou cinzas frias enquanto a floresta a engoliu novamente.
Aos doze anos, seus olhos captavam movimento onde outros viam apenas sombras. O arco do pai havia se tornado extensão de seus braços, e a aljava em suas costas nunca ficava vazia por muito tempo.
Foi o cheiro de fumaça que a alertou primeiro. Yara se aproximou pela copa das árvores, movendo-se entre galhos como um fantasma.
Na clareira abaixo, três homens cercavam uma carroça tombada. Uma mulher segurava duas crianças pequenas contra o peito, enquanto um homem ferido tentava se arrastar para protegê-las. Os homens das vestes negras riam, chutando os pertences espalhados pelo chão.
“Por favor,” a mulher soluçou, “levem tudo, mas poupem meus filhos.”
Um dos homens cuspiu. “Diga mulher! Onde está a chave?”
“Que chave?”, ela questionou.
“A chave do destruidor de mundos”, ele respondeu, lançando a mão no rosto da mulher.
Yara sentiu um arrepio gelado subir pela espinha. Pela primeira vez em anos, ouviu a voz do pai ecoando em sua mente: “Proteja o que ama.”
Ela não os conhecia. Mas, aquela mãe amava os seus filhos. Em sua mente havia outra voz também, mais nova, mais fria: “E se eles te virem? E se forem muitos?”
Suas mãos já haviam preparado a primeira flecha antes mesmo de tomar a decisão conscientemente. O homem começara a ameaçar a criança puxando-a pelos cabelos, mas em pouco tempo ele já tinha caído com uma seta atravessando a garganta, sem nem conseguir gritar.
O caos que se seguiu durou menos de um minuto. Yara havia aprendido que hesitação significava morte. A segunda flecha atravessou o peito do homem à esquerda. O terceiro tentou fugir, mas uma flecha nas costas o derrubou antes que fosse longe.
A família agradeceu chorando, falando sobre “anjos da floresta”. As mãos de Yara estavam firmes, mas os olhos ardiam. A criança a olhou como se tivesse visto um milagre. Yara se ajoelhou e recolheu as flechas dos corpos, uma por uma, agora sujas de sangue seco.
“Salvar alguém custa menos quando já se perdeu tudo”, disse pra ninguém em especial, até que sentiu o vento. O cheiro da fumaça persistia. Haviam outros ataques acontecendo.
Seguiu os rastros, mas antes de avistar outra vila percebeu uma área familiar. Uma caverna rochosa no coração da montanha, parcialmente oculta por trepadeiras que pareciam crescer de forma não natural. Parecida com aquela onde seu pai a escondeu no dia em que Niffred caiu.
O arco do pai descansava levemente em suas mãos, as flechas organizadas na aljava de couro gasto. Cada fibra de seu corpo estava alerta. A relíquia vibrava contra seu peito com uma intensidade que nunca havia sentido antes. O metal parecia queimar através do tecido, pulsando no mesmo ritmo de seu coração acelerado. Algo naquele lugar a chamava.
Yara deslizou pela encosta rochosa, os pés descalços encontrando apoios que outros não veriam. À medida que se aproximava da caverna, um brilho azulado vazava pelas fissuras da rocha. Espiou através de uma abertura estreita e sentiu o ar escapar de seus pulmões.
O interior da caverna havia sido escavado e modificado. Superfícies metálicas refletiam luzes que não vinham de tochas. Símbolos estranhos brilhavam em paredes que pulsavam suavemente. A relíquia de repente ardeu contra sua pele. Yara a retirou rapidamente do pescoço e quase a deixou cair quando o objeto começou a flutuar, girando lentamente no ar. Luzes se acenderam ao redor da caverna, e imagens translúcidas começaram a se formar no espaço vazio.
Yara engoliu em seco. As figuras nas imagens pareciam com gente. Mas havia mais ordem, mais estrutura, como se cada parte tivesse sido construída para ser eterna. A caverna se estendia muito mais fundo do que imaginara. Corredores metálicos ecoavam seus passos descalços enquanto ela seguia o caminho que a relíquia fazia ao flutuar do seu lado.
A câmara central se abriu diante dela. Superfícies polidas brilhavam nas paredes, como espelhos d’água, exibindo desenhos estranhos com formas que ela reconhecia: o contorno do rio perto de Niffred, a curva da estrada que levava a Valdris. Algumas marcadas com riscos vermelhos. Outras com símbolos que pareciam ameaças.
“Pensei que demoraria mais para nos encontrar. Todos os meus homens estão lá fora atrás de você.”
Yara girou, arco já armado. Um homem de meia-idade emergiu das sombras, sem pressa, sem armas visíveis. Seus olhos eram azuis como os dela, sua pele marcada pelo tempo, mas inequivocamente humana.
“Você não é um demônio,” sussurrou ela, a flecha tremulando na corda.
“Nem você é apenas uma criança selvagem.” Ele se aproximou devagar, mãos abertas. “Meu nome é Comandante Thane. E você deve ser a filha do sacerdote de Niffred.”
“Você… você os matou. Meu pai, minha gente…”
“Matei herdeiros dos traidores.” A voz dele endureceu. “Vocês continuam escondendo a chave é porque são tão criminosos quanto os seus antepassados”
“Que chave? Nós não estamos escondendo nada!”
O homem apontou para relíquia que flutuava ao lado de Yara.
“A chave do destruidor de mundo. Essa que está ao seu lado.”
Yara desviou o olhar para a relíquia por um momento. Seu pai disse que se aquilo vibrasee ou esquentasse, coisas amaldiçoadas estariam por perto.
“Vocês estavam atrás disso? É por isso que eu sinto ela esquentar?”
O homem mostrou um outro artefato em suas mãos.
“Nunca estivemos perto o suficiente para que ela enviasse o sinal de localização, mas você a trouxe para mim. Seu povo vai finalmente pagar pelos crimes que cometeu.”
“Que crimes?”
“Vocês abandonaram a Terra quando ela mais precisava. Roubaram recursos e tecnologia para construir seu paraíso egoísta enquanto nossa casa morria.”
“Mentira!” Yara esticou mais a corda. “Nós não sabíamos de nenhuma terra! Éramos fazendeiros!”
“Ignorância não é inocência.” Thane parou a três metros dela. “Vocês viviam sobre minas de titânio, usavam tecnologia de defesa sem compreender. Desperdiçavam o que poderia salvar bilhões.”
O som da voz dele ricocheteava nas paredes metálicas. Talvez ele tivesse razão sobre os que vieram antes. Mas ela não estava ali por causa deles. Não tinha como saber. Estava ali por causa dos que queimaram Niffred. Ele falava em punição como se fosse um Deus. Mas, era só um homem.
“Meu pai protegia a vida,” Yara gritou, apertando os dedos no arco.
Se tudo aquilo que ele dizia fosse verdade, então por que o mundo que ele queria salvar precisava passar por cima de aldeias inteiras? Que tipo de salvação começa com crianças queimadas no chão de uma praça?
“Vocês não estão salvando ninguém”, ela disse. “Só escolheram outro jeito de destruir.”
O homem ergueu os olhos, surpreso. A pele queimada pelo sol de outro mundo, cicatrizes de batalhas antigas, mas nos olhos havia a mesma dor que ela conhecia.
“Criança! Eu não me importo com o que você acha”, um raio saiu do objeto que ele segurava e atravessou a perna de Yara, mas antes dela cair no chão a flecha havia deixado suas mãos e acertado um dos olhos do homem. Um grito saiu de sua garganta, mas o homem já estava morto.
Yara rasgou um pedaço de suas vestes e tentou conter o ferimento. Lançou seu manto sobre a relíquia e a arrastou consigo para fora da caverna, o mais longe que pôde até que ela voltasse ao seu estado normal. Não adentrou muito pela floresta até que ela perdesse os sentidos completamente.
A escuridão a abraçou pelo que poderia ser um minuto ou muitos dias. Quando abriu os olhos, ainda com a visão turva, reconheceu que estava deitada em uma cama de palha, dentro de um casebre que continha uma lareira acesa . No canto da cama, Yara viu ervas e materiais de curativo.
“Acordou?”, uma mulher perguntou.
Yara piscou devagar. O teto era de madeira, as paredes manchadas de fumaça. Tentou se mover, e uma dor na perna enfaixada a impediu.
“Onde eu estou?”
“Na minha casa. Eu te achei morrendo na floresta. O que aconteceu com você, menina?”
O cheiro da lareira, as ervas secando no canto, tudo parecia real demais para ser um sonho.
“Onde está?”, moveu a cabeça, tensa, até ver suas coisas empilhadas sobre uma cadeira. “Quem é você?”
“Frena, sacerdotisa de Beladium. Eu vi que você está com a relíquia. De onde você é?”
“Niffred”, ela piscou, tentando organizar os seus pensamentos. “Você também está atrás disso?”
“Não, menina. Eu estou atrás deles. Mas pelo que eu entendi, eles estão atrás de você.”
“Por que você está atrás deles?”
“Por que eles destruíram o meu mundo. Você quer me ajudar a destruir todos eles?”
Yara apertou os dentes. Parte dela queria entender quem eram esses homens, e aquilo que tanto queriam. O destruidor de mundos.
Mas a parte que importava lembrava do cheiro de carne queimada e da voz do pai dizendo que ela precisava sobreviver. Um nome desses não ia trazer coisas boas, e seu pai havia lhe dito: “Proteja o que ama”. E ela amava esse mundo como amara Niffred.
“Quero”