Aron já não conseguia acompanhar as palavras dos pais. As vozes se misturavam num ruído distante, abafado pela tensão que pesava no ar. Para ele, nada daquilo fazia sentido. Seu irmão, Antony (mais conhecido como Phantom), tivera Fact como parceiro por praticamente toda a vida. Não apenas parceiro, mas também irmão, na essência. Juntos, eram inseparáveis no palco, nas gravações, nos bastidores. Dividir o espólio igualmente, depois da tragédia que os levou, parecia o mais justo e respeitoso.
Mas não era assim para as famílias. Naquela sala ampla, de teto alto e iluminação fria, pais e mães transformavam pequenas rusgas em disputas sem sentido. O que antes era lembrança de música e parceria, agora era briga de posse e vaidade. Cada um defendia seu filho como mais merecedor. O cheiro de papel recém-impresso dos documentos sobre a mesa se misturava a um leve aroma metálico vindo do ar-condicionado, tornando o ambiente ainda mais impessoal.
Aron, exausto, afastou-se mentalmente do que ouvia. Pegou um lápis, prendeu um clipe de papel na ponta e começou a girar sobre a madeira polida da mesa, observando o reflexo distorcido de seus próprios dedos. O mundo à sua volta foi se apagando, até que não percebeu a porta se abrir.
Liberty entrou de modo quase tímido, o oposto do que imaginava para a irmã de Fact. Em vez de dominar o espaço, deslizou discretamente para dentro, inclinada, pedindo desculpas num tom quase inaudível. Sentou-se à sua frente, ajeitando a barra do vestido sobre as pernas.
— Eu não aceito, não aceito e pronto! — a voz do pai de Aron rompeu o ar, encerrando a discussão. O susto fez Aron pressionar o lápis contra a mesa, quebrando a ponta. O clipe voou, enroscando-se no cabelo de Liberty.
Ele só então a notou de fato. Não apenas viu o rosto dela, mas sentiu como se tivesse sido puxado para dentro daquele olhar.
Liberty sorriu, como quem percebe um cúmplice no cansaço. Para Aron, o sorriso foi um movimento lento e preciso, como se seus músculos do rosto seguissem um perfeito rastro invisível. O calor subiu pelo seu pescoço e tingiu suas orelhas.
— Você está bem? — ela perguntou, inclinando levemente a cabeça.
— Tudo certo, estou… bem — respondeu, hesitando.
Os pais dele deixaram a sala, indiferentes. Aron levou alguns segundos para se levantar, empurrando a cadeira com mais força do que pretendia. Antes de sair, olhou de novo. Liberty ajeitava o cabelo para trás da orelha, o brilho das luzes refletindo nos fios e formando pequenas mechas douradas. Ele desviou antes que entregasse o que sentia.
O resto do dia foi dominado pela imagem dela. O sorriso, a voz, o perfume que ficara em sua memória.
A imagem dela era de uma sensualidade. Ele lembrava do sorriso e não conseguia deixar de imaginar aquela boca beijando seu corpo, as suas pequenas e delicadas mãos abaixando suas calças. E o perfume? Não era só o perfume, mas o cheiro de seu corpo misturado à fragrância. Ele podia imaginar como seria se estivesse no meio das pernas dela, o delicioso cheiro. Chegava a salivar imaginando o sabor, com ela excitada. Ele definitivamente não era alguém que olhava para uma mulher e imaginava essas coisas. Mas não conseguia parar de imaginar como seria fazer amor com ela. Queria muito tê-la em seus braços.
Aron era empresário no ramo musical, com vida confortável e agenda irregular. Naquele dia, depois da reunião com os advogados, passou pela gravadora para ouvir faixas novas e responder e-mails. Ao final da tarde, observou o céu pela janela e, sem pensar muito, decidiu caminhar no parque próximo.
O ar estava fresco e carregava o aroma úmido das folhas. O entardecer deixava o lago tingido de tons dourados e alaranjados. Os galhos mais finos balançavam lentamente e a superfície da água refletia o movimento das aves que sobrevoavam baixo.
Sobre a ponte de madeira, parada como se fizesse parte da cena, estava Liberty. Aron desacelerou. Não sabia se deveria ir até ela ou seguir, esperando ser notado. Escolheu a primeira opção, mas recuou no último instante. Não foi rápido o suficiente.
— Aron? Você por aqui? Ia falar comigo e desistiu? — ela perguntou, virando o rosto. O vento moveu seus cabelos e a luz filtrada pelas árvores destacou o contorno de seus braços. A camiseta moldava-se ao corpo, revelando mais do que escondia.
— Liberty… vou ser sincero. Eu só te conhecia de ouvir falar e por gravações em que tocou com nossos irmãos. Mas hoje, quando nossos olhares se cruzaram, senti como se minha alma tivesse saído do meu corpo e voltado… diferente. Acho que você percebeu.
Ela riu, balançando a cabeça.
— Percebi, mas não tinha ligado ao olhar.
— Vim ao parque por achar bonito, mas acho que o verdadeiro motivo foi ficar perto de onde te vi. Quando te encontrei aqui, quis falar. Depois temi parecer um perseguidor. Mas agora que você me viu, não tenho mais nada a perder.
— Minha nossa, quanta coisa… — disse, surpresa.
— Me desculpe, podemos esquecer… — ele começou a se afastar.
— Espere! Não disse que queria esquecer.
O sorriso dele se abriu de imediato.
— Você sentiu isso mesmo?
— ela deu um sorriso entre malicioso e afetuoso.
— Com toda a intensidade — Aron respondeu com um ar decidido, porém, desviou o olhar e começou a admirar o céu.
Liberty então ficou séria. Sentiu que algo mais passava por sua cabeça.
— E sobre toda essa confusão em torno da morte de nossos irmãos?
— Acho um desrespeito com eles, com a história que construíram — respondeu, mantendo o tom baixo.
Ela o abraçou forte. Aron sentiu a respiração dela mudar, até que as lágrimas molharam sua camisa.
— Não acredito que consiga ficar com alguém agora. Mas aceitaria alguém ao meu lado.
— Depois desse abraço, não quero outra coisa além disso.
A lua já despontava no céu, sua luz branca atravessando as copas das árvores e tocando os dois. O momento tinha a calma de um encontro genuíno, mas a tensão implícita nos gestos e nos olhares denunciava que o desejo, ainda contido, não tardaria a se mostrar.