A MOÇA QUE ESCAPOU PELAS PALAVRAS
Prólogo
Sempre me senti um pouco fora do lugar.
Demasiado sensível para um mundo que anda rápido, exige certezas, cobra performance e silencia o sentir.
Enquanto tantos corriam, eu parava —
Para ouvir o barulho do café coando,
para mastigar lembranças como quem mastiga infância,
para conversar com espelhos e me perder nas palavras que, um dia, poderiam me encontrar.
Este livro nasceu assim:
dos silêncios que não couberam mais,
das noites em que o sono falhou,
e eu precisei escapar —
não para fugir, mas para sobreviver.
Aqui, não trago respostas.
Trago vozes. Trago vestígios. Trago uma moça que, entre ofícios, aflições e esperanças miúdas,
tentou bordar poesia onde doía.
Se cada verso parecer um sussurro,
é porque foi escrito como quem conversa consigo —
com cuidado, com medo, com verdade.
Se você me lê, já não estou só.
E talvez, de algum modo, você também se encontre
na moça que tentou ser inteira, escapando pelas palavras.
Brinde ao Nada
Duas da manhã.
O sono me nega.
Dopar-me? Já não basta.
Então escrevo.
Mas… escrever o quê?
Rascunho temas
como quem tateia o escuro:
angústia, amor, cotidiano,
morte, alegria.
Tudo em vão.
Já sangrei meus amores
em versos passados.
Já chorei dores em estrofes gastas.
Hoje, não quero sentido.
Quero o vazio.
A liberdade de não ter o que dizer.
A arte de não escrever.
A folha em branco —
meu cálice.
A madrugada — meu vinho.
Estou bêbada de ausência,
anestesiada de silêncio.
Brindemos, então,
à palavra inútil,
ao poema sem missão,
à beleza de existir
sem precisar explicação.
O Bicho da Consciência
Já é madrugada —
e o sono, esse traidor, não me visita.
A escuridão acende em mim
um incêndio invisível:
meu sistema nervoso desperto
dança sob a ausência de luz.
Por que, ó Deus, temos consciência?
Esse bicho faminto que invade
os frágeis instantes de silêncio
e morde a calma do sono?
Fecho os olhos,
mas mil vozes me assaltam a mente:
memórias distorcidas,
erros mal apagados,
ações que o dia esconde
e a noite escancara.
A escuridão tem o dom de cavar —
remexe passados, culpas,
gestos que não deviam ter sido.
Quero apagar.
Quero cessar.
Vou matar esse bicho,
esse vulto lúcido e cruel
chamado consciência,
que só cresce quando tudo escurece.
Talvez assim,
sem luz, sem culpa, sem lembrança,
eu durma em paz.
Náusea da Alma
Que sufoco, um nó na garganta,
um silêncio que não se espanta —
algo preso, por dentro, contido,
um clamor que não é proferido.
Seria a tristeza encoberta,
uma dor que ninguém mais desperta?
Ou um grito que nunca se lança,
e em mim se transforma em esperança?
Talvez seja só frustração,
um tropeço do meu coração.
Mas chamo de melancolia,
essa dor que me toma todo dia.
É vício, é queda, é feitiço —
quanto mais dói, mais busco o suplício.
Leio as dores, mergulho no fim,
e a tristeza sorri para mim.
Não há razão que justifique,
nem alegria que me amplifique.
Vivo num vão de contradição,
sem prazer, sem consolação.
Sigo a trilha da depressão,
não por desejo, mas obrigação.
Minha mente rejeita o agrado —
anseia o abismo, o lado calado.
E eu, sem rumo, sem solução,
me torno espelho da desilusão.
Fico aqui, em mudo lamento,
refletindo um eterno tormento.
Caminho de Volta
Quis tanto ajudar, doar, cuidar,
abrir os braços, me ofertar.
Mas fui ferida, fui negada
nas mãos de gente enfeitiçada
por um prazer sem direção —
e me esqueci da própria mão.
De tanto dar, perdi a voz,
ficamos eu, o mundo... A sós.
Tiraram tudo o que era meu
pra que eu sorrisse sem ser eu.
E assim segui, nesse desgaste,
num ciclo lento, num contraste
de esperanças e ilusões,
cravando espinhos nas paixões.
Fui eu quem fez tais relações,
sem nunca pôr limitações.
Jamais soube o que é receber,
só me ensinavam a ceder.
Mas hoje vejo com mais calma
os traços trêmulos da alma:
pra ser inteira e ter perdão,
às vezes é preciso um não.
Reencontro, enfim, o meu espelho —
sem maquiagem, sem conselho.
Olhar-me dói, mas me liberta:
sou eu quem fecho — e quem desperta.
O reflexo
O reflexo sorri —
eu, não.
Permaneço séria,
um pouco triste, talvez
demais.
Ele dá bom dia ao mundo,
enquanto meus olhos
abraçam o chão.
Ele conversa com leveza,
eu tropeço
nas palavras.
O reflexo desaparece
quando estou sozinha.
É espelho portátil,
máscara moldada
para um baile
sem fim.
No escuro do quarto
não há reflexo,
apenas eu —
e as lágrimas que caem
sem licença.
Ninguém me conhece.
Nem família,
nem amigos.
Sou silêncio,
sou sombra,
sou desânimo
com batimentos fracos.
Mas preciso ser ele —
o reflexo.
Para sorrir nas fotos,
vencer entrevistas,
agradar plateias.
Uma vez,
deixei o reflexo cair.
Fui parar no hospital.
Feri os outros
com minha dor.
Agora,
não há alternativa.
Muito prazer,
sou o reflexo.
E sigo existindo
pela metade.
Miojo
A sensação é nostálgica —
não como miojo,
corrijo-me:
mastigo infância.
Macarrão simples,
mas sagrado,
sacia as saudades
dos dias em que o tempo
não doía.
Volto a ser pequena,
joelhos ralados,
dentes faltando,
um riso solto
de quem se lambuza
e não se importa.
Era besteira, diziam.
Hoje vejo:
era banquete
de liberdade e leveza.
Antes, era só um lanche.
Agora, é rito,
é reencontro.
Em cada garfada,
minha criança interior
me visita —
sem hora marcada,
sem pedir licença,
mas sempre bem-vinda.
A Menina e o Canto das Rosas
Luiza era menina de olhos abertos,
grandes como janelas pro mundo.
Sonhava com o além-muro,
mas vivia cercada —
entre paredes, regras
e o relógio que mandava no tempo.
Na manhã quieta,
um som bailou no ar:
não era ave, nem vento,
mas o sussurro das rosas —
em orquestra de pétalas e segredos.
O coração fez batuque de festa.
Luiza, leve como brisa,
escapou pela porta
e seus pés tocaram a terra molhada
como se fosse altar.
Seguiu o som.
Entrou na floresta.
Cigarras soavam como violinos,
borboletas dançavam valsas,
e os passarinhos sopravam
notas nas frestas do silêncio.
Luiza sorria:
a natureza a reconhecia.
Mas o medo veio,
como sombra de dúvida:
seria armadilha? um monstro?
Hesitou.
Depois respirou.
E foi.
Porque dentro dela
vivia uma centelha —
mais forte que o medo.
Chegou a um lago-espelho.
E nele:
não viu ameaça.
Viu-se.
Mas outra.
Mais moça.
Mais leve.
Com olhos que sabiam —
e a boca aberta num canto
de liberdade e alegria.
Então entendeu:
aquela mulher na água
era ela,
se a deixassem florescer.
Voltou serena,
mas com a alma acesa,
e um juramento bordado no peito:
“Não deixarei aquela imagem morrer.
Serei a moça dos cantos —
feliz, livre e inteira.”
Máscara de Privilégio
Sou o retrato do que deu certo —
médica, formada, inteira por fora.
Mas dentro… há um grito quieto,
que nenhum diploma melhora.
Tenho tudo — dizem.
Mas não tenho o que arde,
o que vibra, o que voa:
um amor sem medida,
o voo solto das aves,
o ócio que cria e abençoa.
Troquei canetas por estetoscópios,
palavras por prontuários,
e ganhei amores a prazo,
vazios, cifrados, temporários.
Quis ler e escrever,
dançar com a arte e ser poesia.
Mas disseram:
isso não é vida, é fantasia.
E assim sigo o traço previsto,
caminho traçado em voz alheia,
com privilégios que me sufocam
como seda que asfixia a veia.
A máscara colou.
A arranco com a escrita,
mesmo que sangre a face inteira.
Farei o que é "certo",
para enfim conquistar o errado —
aquele sonho platônico
que me é sagrado.
Serei livre, mas depois.
Primeiro, finjo.
Depois, respiro.
Depois, recomeço.
E, quem sabe, enfim —
vivo.
Silêncio
Vi um escrito um tanto correto,
uma espada afiada para quem deseja estar sempre certo.
Prefiro permanecer em silêncio,
Sem causar confusão.
Abomino disputas e complicações.
Minha resposta? talvez o nada, que às vezes fala mais que um sermão.
E se insistirem em contramão, sigo Millôr Fernandes com precisão: "vocês tem toda razão."
E deixo que o mundo
Gire sozinho,
Enquanto, em serenidade,
Me recolho.
Com tal afirmação, não há mais discussão, e a paz desejada será alcançada.
Infância Azul
Minha perna inquieta dança sozinha,
Sinal de inquietação invasiva.
O sono, esse traidor gentil,
foge de mim como vento sutil.
A ansiedade já virou morada,
enche meu peito, noite calada.
E a adultez, com seus problemas mil,
me prende a um mundo febril.
O amanhã pesa antes de chegar —
tanta tarefa, tanto esperar.
E o corpo, exausto de existir,
só queria, enfim, dormir.
Fecho os olhos, vou contar ovelhas,
feito criança sob estrelas.
Talvez seja esse o remédio esquecido:
um pouco de infância
no tempo perdido.
Um pouco de azul,
leve e sereno,
nesse mundo cinza
tão hostil.
Contemplação
Acordo descansada, com a alma repousada.
Enfim uma noite que trouxe calmaria, nesse dia-a-dia sem alegria.
Coarei meu café, com devoção, apreciarei o amargor como benção.
O cheiro me trará paz e sossego – um instante simples, mas tão perfeito.
Enfim um dia a se apreciar com calma, com a lentidão de quem vaga sem meta nem promessa.
Se todos os dias fossem assim, com ternura morna, início sem fim, talvez minha vida fosse mais feliz.
Mas enquanto preciso lutar em meus ofícios, guardo no peito, feito oração,
A doçura breve da contemplação.
02:02
02:02 — faço um pedido,
não conto ao mundo,
é sonho contido.
Na madrugada,
meu corpo exausto
encontra na escrita
o seu descanso.
Se um dia o sonho se fizer real,
viverei do ócio mais natural:
o dos que escrevem sem temer o relógio,
livres da pressa, do peso e do aço.
Mas por agora,
vou-me calada,
tentando o sono,
alma dobrada.
Amanhã a batalha me chama,
com suas planilhas, horários e dramas.
Um dia, lutarei por outro final —
e quando chegar, será triunfal.
Por ora, sou só trabalhadora,
com um desejo preso na hora:
02:02 —
e a esperança que demora.
O bordado de Sísifo
Quero escrever como quem costura um bordado:
focar no trabalho,
Ser um mundo calado.
Quero escrever
a alma serena –
Como um sábio–
que sabe que a pressa desgasta o vocábulo.
Quero existir como Sísifo a sorrir,
em jornada que sabe esperar o porvir.
Não é preciso colher proveitos de uma vez,
não corro no papel, um item por vez.
Quero o ócio inteligente do aprendiz,
que sobe um degrau e é feliz.
Que essa jornada dê frutos futuros
e, assim, quando eu tardar – o último triz–
você me ler–
e eu ser flor-de-lis.
Espelho de Sentir
Será que é arte o que escrevo?
Ou apenas meus devaneios?
Queria ter o dom –
Mas nasci para o silêncio da contemplação.
Se escrevo algo,
Não é para outro ler.
É para desabafar o que tenho preso a dizer.
É o alívio: a palavra como válvula,
A frase como escapatória.
Se tu me lês e te vês,
Que doce coincidência:
Meu abismo tocou o teu.
A melancolia —
minha sina mais fiel —
tece cada verso,
sussurra a trama.
E se minha obra existe,
é porque há um espelho:
não de vaidade,
mas de humanidade.
Calmaria em Rima
É cômico, quase absurdo,
esses amores de um segundo.
Brigas surgem num estalo,
e o carinho cai no fundo.
Tudo vira controvérsia,
um rastrear tão imaturo —
ninguém quer paz no enlace,
só vencer num tom escuro.
Conversas viram batalha,
cada frase é armadilha.
O silêncio que consola
dá lugar à gritaria.
Nesse mundo de discórdia,
flores murcham na estação.
O afeto perde o rumo,
o toque vira tensão.
E eu, que busco a leveza,
a ternura, a poesia —
não me lanço nessa bruma,
sigo só, mas sou alforria.
Ritual de Quem Permanece
Espero a água ferver,
como quem espera sentido.
Coa-se o café, nasce o dia —
mas tudo ainda está perdido.
O cheiro preenche a casa
como se fosse abrigo.
Mas é apenas uma lembrança
De alguns dias perdidos.
Levo à mesa minha espera:
café, refrigerante e solidão.
O tempo traz lembranças
Que agora são em vão.
Bebo o amargo devagar,
prolongando o que me resta.
Depois, o frescor do refrigerante — um luar que não responde à minha festa.
Chiclete de blueberry, cigarro aceso,
tudo pulsa, mas não diz.
É um ritual, talvez ileso,
de um corpo que já não quis.
Café, refrigerante zero, chiclete e um cigarro à mão
Fazer isso todo dia
é meu modo de existir.
Entre fumaça e poesia,
vou ficando — sem partir.
Quando o Ofício For Palavra
Um dia farei Letras,
e cantarei as mais lindas borboletas.
Nas insignificâncias do quintal,
farei do mundo um recital.
Enquanto o ofício não vem,
trabalho com o que me convém —
médica entre crianças miúdas,
onde tudo é um pouco mais belo:
sorrisos genuínos,
vida em desvelo.
Um dia não será mais Medicina,
mas escrita —
que também cura,
também salva,
com outro tipo de ternura.
Quero ajudar com um lápis na mão,
como quem oferece abrigo,
como quem recita oração.
E quando esse dia enfim nascer,
todos verão:
meu sorriso,
que antes era máscara,
será apenas
satisfação.
Dos Amores que Amei
Dos amores que amei,
todos foram vãos.
Oferecia o mundo inteiro,
de peito aberto, em minhas mãos.
Comida, presentes, ternura,
cifras, cuidado e calor —
dava demais, sem medida,
sobretudo, o meu amor.
Minha alma, minhas moedas,
minha pressa em agradar.
Hoje vejo, sem rodeios,
como era fácil me entregar.
Sempre soube oferecer,
mas nunca aprendi a receber.
E os que chamei de amores
não me ensinaram a merecer.
E havia sempre o temor:
“Será amor… ou interesse?”
Ser desejada era uma dor
que no fundo, nunca esquecesse.
Hoje, não quero mais drama,
romance que deixa ferida.
Fico com os poucos que amam —
meus amigos,
meus portos,
minha vida.
Será?
Será que um dia vou encontrar
Alguém que ainda, de fato, vá me amar?
Não pelo que tenho
Mas pelo que transpareço - meus valores, meu caráter, meus desejos e anseios.
Que veja em mim mais que aparência,
valorize minha alma, minha essência – transparência.
Que seja afeto sem exigir permissão,
e me acolha com sincera intenção.
Que seja alguém de coração bonito,
não falo de rosto, falo de rito:
a bondade que mora no gesto calado,
a verdade que habita o ser delicado.
Se algum dia esse indivíduo aparecer, não estarei procurando
Mas irei reconhecer
Que meu desejo selado –um amor real
Não seja apenas histórias de princesas– ficcional.
Quero alguém que veja meu interior e queira comigo ser verdadeiro amor, apenas flor.
Talvez, ampliando meu visor – veja: não preciso de ninguém – que seja eu, meu amor.
Minha Irmã, Flor de Nós
Minha irmã, uma baixinha invocada,
é o ser que mais amo neste mundo torto.
Flor miúda, escondida sob o espinho do olhar
às vezes ranzinza — mas sempre porto.
Ela é tão bela — falo de alma, não de espelho —
e não vê o sol que acende no que toca.
Pudesse ser só o que é, sem moldes nem cerimônia,
apenas seu coração de vela, aceso em ternura e rota.
Somos fio entrelaçado desde o berço,
metade da minha saudade,
metade do meu começo.
Se um dia ela ler este poema
— simples, sujo, de alma amarela —
que saiba: somos laço, raiz, estrela.
E sua presença é minha parte mais bela.
Transcender
Me disseram
para escrever o que me escapa:
transcendência —
esse sopro sutil
que não se deixa agarrar.
Como nomear o indizível?
Seria quando a mente
cruza os limites do mundo visível?
Ou quando o corpo sonha
em pertencer a outro plano,
mais leve, mais etéreo,
mais alma?
Pensei: talvez seja isso —
a travessia silenciosa
de quem sente demais.
Alguém me sussurrou:
é quando a alma encontra a beleza.
E então compreendi:
Transcendemos no gesto que cuida,
no sorriso que se oferece inteiro,
no abraço que é abrigo.
Na arte que nos desmonta
e nos recompõe em silêncio.
Transcender não é fugir —
é mergulhar fundo no instante
até tocar o invisível com as mãos.
É estar aqui
e, ainda assim,
ser mais do que presença.
É ser brisa no meio do caos,
luz nas frestas do cotidiano,
eco de algo que não morre.
E talvez — só talvez —
eu tenha mesmo nascido
para escrever sobre isso.
Mãe
Mãe,
te escrevo com o peito aberto, sem moldura,
porque amor assim não se mede — é ternura dura.
Você nunca foi do molde,
mas foi colo no escuro,
mão estendida no susto,
vigília em febres de madrugada.
Mãe,
com seu olhar severo, me ensinou a florir no concreto.
Hoje, adulta, entendo:
não era dureza — era cuidado que não cochila.
Seu padrão, tão alto, é ponte,
e ainda assim, você é porto.
Você quis o melhor — e ainda quer.
Sua luta é silenciosa, mas grita em afeto.
Obrigada por não desistir,
por ser farol quando o mundo apaga.
E como você diz, com sabedoria antiga:
"Todo dia é dia das mães" —
e todo dia, é dia de te agradecer.
Pai
Calmaria, paz e reflexão — eu o vejo, admiro e aprendo lições.
Hoje consigo me ver semelhante ao seu ser —
pois um dia quis ser serena, tal qual você.
Entre livros e discos, te encontro sorrindo,
o riso mais lindo, mais genuíno.
Grande médico, grande leitor — sobretudo, grande pai:
é todo orgulho, nosso grande mentor.
Agradeço a presença até no silêncio —
sei que, em plenitude, posso me apoiar
nessa sua terna quietude.
Tenho Meu Tempo
Num mundo que esquece o momento,
faço questão: paro, e me sento.
Olho pro nada — ouço o vento,
mas é dentro que mora o pensamento.
Será que ainda há tempo pra pensar?
Ou viramos robôs sem notar?
Autômatos presos na engrenagem,
que andam sem alma, sem paisagem?
Eu, não.
Guardo abraços como se fossem relíquias,
coleciono sorrisos em tardes antigas.
Não cedo meu tempo à pressa que cobra,
meu tempo é meu — não se vende, nem dobra.
Cifras acenam, querem iludir,
mas não me fazem desistir.
Sei o valor de um instante que voa:
um pássaro livre vale mais que coroa.
Silêncio de Quem Já Amou
Hoje, sou moça calada,
feito sombra de quem já foi chama.
Aprendi — não com livros,
mas com a dor que não se reclama.
Amei uma, duas, talvez cem,
nem sei mais quantos nomes guardei.
Só sei do eco que ficou,
do afeto entregue e nunca retribuído.
Vive-se para amar?
Talvez —
mas que cruel sentença
para quem só conheceu ausência.
Cansei de esperar
a reciprocidade prometida.
Fiquei velha na alma,
a cada adeus sem despedida.
Agora, habito a inércia
dos que amaram em vão.
Só me moveria, talvez,
por um amor que me tocasse a mão.
Mas até isso me soa piada —
crer em amor verdadeiro,
em finais de conto encantado,
quando só vivi o exagero do passageiro.
Então fico —
na paz agridoce da desistência,
na quietude dos amores que perdi,
com a serenidade fria
de quem sobreviveu ao que senti.
Aquela que Mora no Espelho
Sem sono, às três, no ventre da madrugada,
encaro o espelho —
há um rosto que me olha
e não me reconhece.
Olhos fundos, de quem viveu demais,
mas a pele ainda é de moça,
como se o tempo tivesse errado o corpo
e acertado apenas a alma.
Como me tornei
essa sombra refletida?
Seria sonho —
ou sou visita na imagem de outra?
Toco o vidro, e ela toca também.
Mãos mornas encontram as minhas,
os pés descalços, pequenos,
copiam os meus passos silentes.
Cabelos lisos, tão iguais,
mas o olhar...
ah, o olhar não é meu.
Não há traço de mim naquela pupila.
Cesso a busca.
Não quero saber quem habita
o espelho que me nega.
Deito.
Durmo.
E desde então,
passo reto pelos espelhos.
Não por medo do que mostram —
mas por já não suportar
o que me ocultam.
Vestígios no Armário
Vou à casa dos meus pais.
No antigo quarto, tudo jaz.
O armário, em silêncio, me espera
com roupas que o tempo já não venera.
Vestígios de um tempo que se esvai,
de um riso solto que não volta mais.
Queria caber naquele vestido pequeno —
não pelo corpo, mas por ser mais ameno.
Queria o riso que não se calava,
antes que a vida exigisse palavra.
Hoje, a adultez pesa como sentença,
e põe vírgula na minha esperança imensa.
O riso vem lento, como quem cansa,
pisando os cacos da antiga dança.
E mesmo que o pano me abrace em sossego,
não basta vestir o passado em apego.
Fico só, entre tramas e lembranças,
costurando no peito antigas esperanças.
Abraço o que resta da infância encantada —
memória dobrada na alma cansada.
Entre Ontem e Depois
Entre o ontem e o depois,
há um agora trêmulo —
feito corda bamba
onde dançam o remorso e a ansiedade.
Temo o que ainda não veio,
revivo o que já doeu.
E nesse presente preso,
nem falo, nem ajo —
só repito o compasso do silêncio.
Preciso soltar o peso antigo,
deixar que o futuro venha nu.
Agir sem roteiro,
caminhar sem mapa,
feito Sísifo —
que carrega a pedra e a dor no mesmo bolso,
como quem não esquece,
mas segue.
Que eu ande, então,
sem sofrer o que passou,
sem temer o que virá.
E acima de tudo:
que eu possa
imaginar Sísifo feliz.
Carlos Drummond de Andrade
Drummond, meu maior mentor,
se tu estivesses vivo,
e eu, a sorte de ter te conhecido,
ofereceria o silêncio que tu mereces
e pediria, com doçura,
a chave da máquina do mundo.
Como se faz para ser um poeta
como esse, sem igual?
Maior dos maiores,
és, para mim, um deus
de palavras tortas e pedras geniais.
Teus poemas ardem no meu peito,
como um infarto que não cessa.
Vejo-me em teus escritos,
como quem encontra espelho
nas frestas da própria pressa.
Observo o mundo nauseante
e reconheço a flor no asfalto.
E a pedra no meio do caminho
torna minhas retinas, antes jovens, tão fatigadas.
José ainda está aqui,
com as mesmas dúvidas a referir.
Mas a festa, apesar de tudo,
suplica persistir!
O primeiro amor passou,
o segundo amor passou,
o terceiro amor passou.
Mas o coração continua.
Então dorme, meu filho,
sabendo que és imortal.
Solidão
Me sinto tão só, presa no meu quarto
Em um consultório cinza.
Meus amigos foram exercer a Medicina, pelo mundo à fora.
Fiquei eu, isolada em minha cidade, em uma pequena casa.
Moro com minha irmã, rainha do silêncio, não gosta de conversar.
Não que eu goste também, mas sinto falta de ser uma escuta ativa ou uma falante escutada.
A solidão corrói meus dias, corrói minha alegria, corrói meus prazeres, agora anedonias.
Me sinto só, não por carência,
Por realidade. Minha companhia virou a escrita, o desabafo no lápis, o poema que grita.
Se tú me lês, me sinto um pouco menos sozinha. E, enquanto a solidão for minha única companheira, escreverei.
Preciso dar voz aos meus pensamentos, senão morrerei sufocada por eles.
Epílogo
Para quem chegou até aqui comigo.
Se você me leu até o fim, saiba: não caminhou só.
Essas palavras, escritas nas madrugadas sem sono, nos dias cinzas do consultório, no silêncio partilhado com uma irmã quieta e uma alma inquieta — não são apenas minhas.
São nossas.
A moça que escapou pelas palavras ainda mora em mim.
Mas já não foge: agora dança.
Ela encontrou no verso um corpo possível, um abrigo sem grades, uma saída que é também entrada.
Escrever foi meu modo de respirar quando o ar parecia pouco.
Foi a forma que encontrei de existir pela metade sem morrer inteira.
Se tu me leste, tu me resgataste.
E que cada palavra que aqui te tocou, te lembre que a poesia — mesmo nascida da dor — pode ser cura, encontro, caminho de volta.
Ou ida, para um lugar onde sermos é leveza, não fardo.
Fico aqui. Mas sigo em ti.
— Luiza
Que escreve, sim, para escapar. Mas também, enfim, para ficar.