Meu pai era pintor. Pintor de paredes. Ele tinha uma filosofia sobre a importância do seu trabalho, como ele tornava as casas lugares melhores para se viver, mais cheios de vida e sobre como cada pintura deixava um pouco dele nessas casas e nessas famílias. Dizia que todo artista deixa um pouco de si no trabalho.
Sim, meu pai, pintor de paredes, se dizia um artista. Ele levava a profissão a sério. Era respeitado entre os outros profissionais do ramo da construção civil na cidade, pela sua eficiência e capricho. Pediu um empréstimo ao banco com a intenção de expandir os negócios. Queria que fossemos referência em todo o Estado. Digo nós, pois acabei entrando para e equipe por livre e espontânea pressão.
Porém, em um dia de trabalho meu pai viu algo que o mudou para sempre. Estava pintando a fachada de um prédio preso por uma corda, já tinha descido cinco andares, faltavam sete. Olhando para dentro de um dos apartamentos viu um homem vestido com o que parecia ser um uniforme de pedreiro. O homem parecia triste. Meu pai chamou sua atenção, lhe deu algumas palavras de animo. O homem se aproximou da janela, abriu e se atirou lá de cima, diante dos olhos do meu pai.
Ele me contou que viu o corpo se aproximando do solo em alta velocidade, porém fechou os olhos antes do impacto, para não ter que ver o estrago, porém, ao contrário do que imaginou, não houve som de impacto. Eu, que estava no topo do prédio controlando as cordas, notei que meu pai estava parado a muito tempo e lhe chamei. Ele estava atônito. Acionei o protocolo de segurança e o tirei de lá.
Durante os exames ele recobrou a consciência e perguntou se já tinham resgatado o homem, se ele tinha sobrevivido, mas não sabíamos do que ele estava falando, ninguém viu nada daquilo que ele relatou e não encontraram qualquer corpo. Na verdade, no andar onde ele estava não tinha ninguém trabalhando. Apenas algum tempo depois ele confessou que o que o fez travar nas alturas não foi ver o homem saltar, mas sim abrir os olhos olhando pra frente na esperança de não ver o efeito da queda e encontrar em sua frente, lhe encarando, o homem de crânio esmagado e entranhas a mostra.
Nessa altura, meu pai já não trabalhava mais. Tínhamos dificuldades até de fazê-lo sair da cama. Dia após dia seu corpo definhava, e junto dele a empresa que eu tentei manter funcionando, porém sem ele, não tínhamos a mesma desenvoltura e os contratos diminuíram. Quando começamos a atrasar as parcelas do empréstimo, o banco começou a aparecer ameaçando tomar nossa casa, dada como garantia.
Foram tempos difíceis, meu pai piorou muito. Finalmente chegou a ordem de despejo. A casa seria leiloada em um mês. Nesse tempo peguei todos os trabalhos que pude. Acreditava que conseguiria comprar de volta a casa que meus pais construíram. Um dia antes do leilão, meu pai fez seu último serviço, foi até a casa no meio da noite e tingiu a sala de vermelho sangue. Seu sangue. A notícia estampou as principais manchetes do país. O Leilão foi cancelado e quando remarcaram não havia compradores interessados na propriedade. Exceto eu.
Comprei a casa de volta, por um preço até baixo e voltamos a morar nela, minha mãe e eu. A filosofia do meu pai sobre deixar um pouco de si em cada trabalho se concretizou. Toda noite escuto ele na sala, assoviando a mesma música que tantas vezes lhe ouvi assoviar enquanto trabalhava. De fato, ele está aqui.