Maurício adentrou o salão com dificuldades, o cooler azul era pesado. Havia cerca de doze pessoas trabalhando na arrumação. Carregando cadeiras, varrendo e fazendo os ajustes na decoração. Já da porta foi possível ver Karen, que estava na cozinha, como sempre, organizando os detalhes para que tudo fosse perfeito. Ela era uma mulher naturalmente elegante, todos os seus movimentos eram graciosos e determinados, porém ele conhecia muito bem todas as inseguranças escondidas por baixo dessa aura de perfeição. Essa seria a primeira vez que se encontrariam em público depois do divórcio.
Ele respirou pesadamente, porém antes que conseguisse dar mais qualquer passo foi abordado por um senhor que lhe ofereceu ajuda. Depois de fazerem algumas viagens do carro, que estava abarrotado de engradados, até a área das bebidas, Maurício agradeceu ao senhor que voltou à varrição depois de lhe dar dois tapinhas nas costas enquanto esboçava um sorriso acolhedor. Desde a sua chegada escutava gritos e risadas de crianças, mas não viu nenhuma, pensou que provavelmente estariam na sala de jogos e foi até lá à procura de seu filho, Lúcio.
O menino de seis anos corria em círculos gritando em um timbre agudo, suas mãos balançavam no ar. As outras crianças, mais velhas e mais novas, o seguiam de perto repetindo os movimentos frenéticos. Sem dúvidas estavam se divertindo. Lucio era um garoto saudável e amoroso. Maurício não quis interromper a brincadeira, por isso fechou a porta sem que nenhuma das crianças o visse e voltou ao salão principal. No instante que terminou seu movimento de 180° seus olhos se cruzaram com os de Karen. Eles trocaram um aceno tímido de longe.
Duas senhoras que passavam foram abraçá-lo. Uma delas parecia ter lágrimas nos olhos. Os abraços foram apertados, como de condolências. Porém, elas não disseram nenhuma palavra. Maurício e Karen foram casados por onze anos, haviam sido convidados para fazer parte desse grupo a nove, trabalhando arduamente em prol da causa e por isso se tornando rostos conhecidos entre os membros. Assim que se desvencilhou dos abraços, ele pensou em ir até Karen, para acabar logo com essa situação constrangedora. Por mais difícil que fosse para as pessoas acreditarem, o término havia sido amigável.
Obviamente, toda ruptura é dolorosa. Porém, os dois perceberam que já não eram felizes juntos e tentativas de reverter a situação não faltaram. Viagens, conversas, terapia de casal. As coisas melhoravam por alguns dias, mas logo o distanciamento se instalava de forma gradual e antes que percebessem, estavam a semanas sem se tocar ou trocar qualquer palavra que não fosse sobre Lucio ou sobre a organização da casa. Por fim, sentiam que não faria sentido estarem casados apenas para serem colegas de quarto.
Na verdade, Karen chegou a sugerir algo do tipo, mas Maurício foi firme. Na ocasião do casamento havia prometido fazê-la feliz e se ele já não era capaz de cumprir a promessa, não ficaria vagando pela casa como uma alma penada em busca de algo que já foi um dia e que jamais voltaria a ser. Em parte, ele se sentia culpado. Os dois haviam se conhecido na juventude. Foi o primeiro namorado dela. De modo que, ela não tinha referência ou vivência. Muitas vezes achou que ela sentia frustração por isso. Ele havia namorado várias antes de finalmente encontrá-la. E que encontro. Quando a viu, sabia que não poderia deixá-la escapar.
Uma jovem inteligente, cheia de vida, planos, com uma família bem estruturada e um sorriso resplandecente. Porém, ela era jogo duro. Tinha prioridades e nenhum garoto a faria se desviar delas. Ele ficou ainda mais apaixonado. Mostrou que também era determinado e onde todos falharam, ele triunfou. Depois de tudo isso poderia deixar de amá-la? Jamais! Mesmo agora, ele sentia um amor por ela que certamente jamais acabaria. Um amor de admiração, de devoção por alguém que lhe concedeu uma das maiores honras que ele jamais poderia sonhar em merecer. Ser pai de Lúcio. A criança mais especial da face da Terra ou de qualquer outro lugar no universo ou fora dele.
Nos últimos três meses, tempo que Maurício havia se mudado para um pequeno apartamento a três quarteirões da casa da família, ele havia se esforçado ao máximo para criar memórias afetivas com Lúcio. Tinha essa preocupação por ser filho de um casal divorciado e notar que via seu conforto e segurança 100% na mãe, enquanto o pai era uma figura esporádica e inconstante. Não queria que Lúcio se sentisse assim sobre ele, por isso levava o garoto pra escola diariamente e se mostrava interessado por tudo que o garoto julgava importante.
Maurício tinha saído de casa apenas com suas roupas, algumas roupas de cama do tempo de solteiro e alguns papéis. Disse que se tudo mais na casa dava conforto à Lúcio, ele não tiraria nada de lá. Era uma situação um tanto quanto precária. Ele comia mal por não ter geladeira ou fogão, dormia mal por não ter cama, mas sempre repetia consigo mesmo: é temporário. Por outro lado, esses três meses tinham sido leves e revigorantes. Sentiu que finalmente vivia, fora do piloto automático.
Maurício chegou diante da cozinha do salão e pegava ar para chamar Karen do balcão quando um homem adentrou o espaço causando um estardalhaço. Era o presidente, que cruzou o salão cumprimentando cada pessoa, chamando-a pelo nome e agradecendo pelo auxílio, até finalmente chegar em Maurício e dizer:
— Maurício Machado! Você por aqui. Estou tão surpreso quanto contente em vê-lo. Não vou perder essa oportunidade. Me espere no escritório por favor! Precisamos conversar.
— Sim senhor, mas precisa ser agora? Acredito que tenham muitos preparativos que precisem da sua atenção.
— Maurício, o depois é consequência das decisões que tomamos no agora e essa é a que estou tomando no agora. Suba e me espere!
Maurício subiu até o refinado escritório. O prédio, no geral, tinha cerca de duzentos anos, com seu pé direito alto permeado de colunas salomónicas e chão de madeira envernizada, lustres gigantes de vidro e entalhes de estilo barroco em cada portal. Além das pinturas no teto com temas religiosos. No escritório a imagem remetia às três tentações no deserto, enquanto o salão principal mostrava o jardim do Éden. Depois de alguns minutos esperando de pé, junto à uma prateleira na qual avaliava os livros, viu o presidente entrar com seu terno que parecia menor que o necessário e um lenço nas mãos, que ele usava para secar o suor na testa. Maurício apertou sua pesada mão com firmeza.
— Fiquei triste pela notícia que recebi, mas principalmente pela forma como recebi. Não por meio dos envolvidos, mas por terceiros. Sabe, isso é frustrante, porque sinto que poderia ter ajudado se tivesse sido procurado para ajudar a resolver o conflito e não apenas sido avisado sobre as consequências.
— Bem senhor, acredite quando eu digo que tudo que poderia ter sido feito, foi.
— Significa que essa é uma decisão definitiva? Não podemos reverter essa situação?
— Não, senhor.
— Me lembro do antigo presidente falando sobre vocês. Sobre como foram convidados para o nosso grupo apesar de terem um perfil, destoante em relação aos associados habituais. Karen era babá e você um mero estagiário, mas ele viu potencial em vocês e estava certo. Hoje ela é o braço direito do Governador e você Coordenador de Comércio Exterior. Foi uma bela evolução. E juntos vocês poderiam ir bem mais longe. Sei que, dê lá pra cá, vocês fizeram alguns sacrifícios.
— Sem dúvidas senhor. Aquele convite mudou nossas vidas.
— As posições que vocês ocupam hoje se deve ao seu engajamento e devoção à nossa causa. Seria uma pena ver tudo isso acabar.
— Nosso legado será eterno.
— Veja, se você tiver pulado a cerca, nós conseguimos reverter isso. Não vai ser o primeiro nessa situação. Se ela tiver te pego no flagra é mais difícil, mas não é impossível e…
— Não foi o caso senhor. Nós nos respeitamos até o último momento. Na verdade, até hoje eu não me relacionei com mais ninguém. Não tenho certeza sobre ela, mas acredito que também não.
— Veja bem, sua família é inestimável para nós. Já recebemos doações de celebridades, de banqueiros e de autoridades de todos os tipos, mas era apenas dinheiro. Nenhuma dessas doações chegou aos pés do que vocês nos doaram. Isso não tem preço. Mas, vejo que você está irredutível. Só posso ficar feliz por tê-lo conosco hoje. Espero que desfrute da festividade.
— Obrigado, senhor presidente. Por tudo.
Saindo do escritório, Maurício fica cara a cara com Karen, que o esperava encostada na parede do corredor. Agora, olhando de perto, percebia que ela finalmente havia feito o corte de cabelo do qual falava a cinco anos. Estava usando um vestido longo, florido, que ele havia dado de presente a muitos aniversários e que ela nunca havia usado. Ele sabia que o vestido corria o risco de ser exilado no profundo vale do esquecimento do armário de uma mulher que comprava roupas toda semana e mesmo assim nunca encontrava algo que quisesse vestir, optando sempre pelos mesmos conjuntos formais e de cores neutras, porém, sua convicção que o vestido cairia perfeitamente falou mais alto. No fim, ele estava certo.
— Gostei do vestido. É novo?
— Recentemente ganhei um espaço extra no armário e quando fui arrumar encontrei essa belezinha. Não faço ideia de quem me deu, mas a pessoa tem bom gosto.
— O gosto só não era melhor que o do Drink.
— Que drink? — perguntou ela, confusa.
— O drink batizado com sonífero que usaram pra te apagar enquanto cortavam seu cabelo. Duvido que você estivesse acordada na hora.
— Você não gostou? — questionou com a mão nos cabelos.
— Isso faz diferença? O que eu gosto ou não.
— Não! — Respondeu convicta.
— O que faz diferença? — perguntou com um sorrisinho no rosto.
— Se eu gostei.
— Você gostou?
— Ainda estou me acostumando. Se eu pensasse muito a respeito desistiria novamente. Eu nem tive coragem de olhar enquanto cortavam.
— Bem, eu não gostei. Apesar da minha opinião não importar.
O tom irônico na conversa fez ambos caírem na gargalhada. Essas eram suas verdadeiras personalidades. Era assim que eles se comunicavam no começo, antes de todo o peso das responsabilidades consumir suas forças. Eles estavam se entendendo. Bem diferente de como seria a quatro meses atrás. Não teriam passado da primeira frase sem alguém se irritar, fechar a cara e passar uma semana sem falar com o outro. Tudo era motivo, qualquer assunto era problemático. Estar juntos gerava um eterno caminhar sobre ovos e assim, deixou de fazer sentido. Abrir mão de si mesmo para não irritar o outro, que no fim, acabará ficando irritado por outro motivo.
Havia dias em que Maurício lembrava dos dois juntos, em um tempo em que eles não tinham nada além de um ao outro e muitas contas para pagar. E ainda assim, eles eram mais felizes. Mas, esse tempo tinha passado. Eles já não eram as mesmas pessoas. E nada do que fizessem traria aquilo de volta. O que lhes restava agora era encontrar uma nova forma de se amar e essa forma residiria nos frutos de tudo aquilo que eles fizeram juntos. Cada risada, cada beijo, cada palavra de consolo e cada sacrifício.
— Maurício, você ainda anda com aquela muda de roupa no carro?
— Tem uma calça jeans e uma blusa branca lá. Porque a pergunta?
— Porque você está fedendo! Se estava nos seus planos carregar peso, você não deveria ter chegado aqui de roupa social. Vá até o vestiário, tome um banho e troque de roupa. Você não pode passar a noite toda desse jeito.
— Karen, essa festa tem um dress code, não posso vestir aquilo, vou chamar muita atenção.
— Acredite em mim, você vai ser o centro das atenções hoje, independente de como estiver vestido. Pelo menos esteja limpo.
Maurício foi até o vestiário e se banhou, tentou colocar de volta a roupa social achando que apenas o banho resolveria, mas de fato o cheiro de suor estava forte, então respirou fundo e se preparou para passar vergonha vestido como se fosse ao shopping em meio ao evento esporte fino. Quando voltou ao salão, muitos associados já tinham chegado. Comiam canapés e bebiam champanhe enquanto a versão instrumental de Garota de Ipanema tocava ao fundo. Foi recepcionado por Lúcio que lhe deu um abraço apertado e um beijo no rosto antes de voltar para o meio das outras crianças. Todos que viram esse gesto foram até ele para cumprimentá-lo com abraços e beijos, sendo imitados por todos que chegaram depois, de forma que ele não conseguiu comer ou beber nada até falar com pelo menos duzentas pessoas.
Quando o grande relógio ao lado da entrada badalou a meia-noite, o presidente subiu ao palco secando o suor da testa, pediu que interrompessem a música, pegou o microfone e anunciou que havia chegado o momento. Todos deveriam seguir para seus postos e se prepararem. Os associados formaram uma fila em frente a parede falsa, escondida atrás da estátua de um querubim, que levava até o subsolo do salão. Maurício respirou fundo, bebeu o último gole de espumante e se espreguiçou. Então, se posicionou no fim da fila. Quando passou pelo portal todos já estavam paramentados. Hoje não haveriam vestes cerimoniais para ele.
Enquanto descia as escadas, passava pelas figuras encapuzadas com mantos de seda vermelha que guiavam o caminho com as luzes de suas velas entoando um hino antigo em latim. Apesar de conhecê-lo, resistiu ao impulso de cantar. Chegando ao fundo da cripta viu o altar cerimonial de pedra entalhada, pensou em como deveria estar gelado, mas não hesitou em ir até ele e deitar-se. Havia chegado sua hora. Faria o último sacrifício por sua família. Seu próprio, após anos atuando como carrasco para a instituição, cujo objetivo era trazer o grande líder à Terra. Essa era uma missão que exigia discrição e cumplicidade, logo não permitia divorciados. Talvez por isso, alguns membros ficavam viúvos a cada três anos e sempre voltavam meses depois com uma esposa ainda mais jovem, de quem todos já imaginavam o fim.
Nos raros casos de divórcio, caso ambos não se apresentassem e indicassem um deles para ser sacrificado, ambos poderiam ter o mesmo destino. Isso já havia provocado perseguições internacionais, mas ninguém escapava. O presidente se aproximou portando uma adaga, ele tremia e suava. Maurício estendeu a mão e pediu o objeto, que lhe foi entregue com alguma relutância. Ao receber, o encaixou entre as coxas e com um movimento rápido cortou os dois pulsos ao mesmo tempo, com um puxão. O sangue que escorria do altar seguia pelas canaletas ao seu redor e se depositava aos pés do trono de onde Lucio, sentado, assistia tudo. Naquele momento a criança aprendia uma valorosa lição, que as regras eram para todos, até mesmo para o pai do anticristo.