EPÃLOGO
Voltando
àqueles momentos narrados nas primeiras páginas deste livro, quando o coveiro
deixava a cova de Maria e descia para continuar o seu trabalho de cavar o chão
para guardar mais um corpo, e que depois de o corpo guardado partia para o seu
descanso junto à sua famÃlia, vamos acompanhá-lo no dia seguinte.
Naquela
manhã ao passar pela cova de Maria, o coveiro percebeu que havia uma coroa de
flores colocada sobre a cruz que ele colocara na véspera. Deu pouca importância
a esse detalhe e passou direto.
Só
que ao entardecer, já saindo do cemitério e dirigindo-se para casa, passou de
novo pela cova de Maria e, para sua surpresa, deparou-se com várias flores
ainda frescas sobre a cova. Também muitas fitinhas personalizadas com mensagens
apócrifas e vários santinhos jogados sobre a terra. Abaixando-se, apanhou uma
daquelas fitinhas e lendo-a, apavorou-se: — "Meu Deusâ€!
Ainda
incrédulo com a frase escrita na fitinha, jogou-a de volta sobre a cova e saiu
caminhando apressado em direção ao portão.
Depois
desse susto, o cemitério voltou aos seus dias normais e nenhuma surpresa na
cova de Maria. Nem sequer uma visita fora vista ali nesses dias. O vento
derrubara a coroa de flores que já se desmanchava sobre a terra e as fitinhas
encontravam-se espalhadas sobre as outras covas. Agora o cemitério voltava
àquela tranquilidade que os seus moradores mereciam.
Vários
dias nasceram e morreram sem que nada de anormal fosse vivenciado, mas numa segunda-feira,
duas semanas depois do sepultamento de Maria, o coveiro tomou um novo susto ao
chegar para trabalhar.
Defronte
ao cemitério, na área do estacionamento, vários vendedores ambulantes aglomeravam-se
junto a várias barracas. No meio do pátio, rodeado de admiradores, uma dupla de
repentista cantava versos exaltando os poderes mÃsticos da prostituta, enquanto
várias mulheres da vida circulavam com as fitinhas de pulso. Toda aquela gente
acreditava que Maria, a prostituta que fora sepultada semanas antes, tinha
algum poder para obrar milagres.
Aquele
cemitério se transformara num lugar de peregrinações.
Até
o coveiro, que só sabia enterrar os mortos e tomar cachaça em um boteco
defronte ao cemitério, sentiu naquele momento uma credulidade momentânea, mas
em seguida o seu ceticismo pelo caso voltou. Estava apenas abismado com tamanha
manifestação repentina no portão do cemitério por toda aquela gente fanática.
Sem
ter a mÃnima ideia do que estava acontecendo ali, chegou a uma barraca e pediu
um cafezinho. Enquanto tomava o seu café, ouvira o barraqueiro comentar que
toda aquela agitação se devia ao fato de a falecida ter feito algumas façanhas
que as quengas achavam que fosse milagre, mas que na verdade não era nenhum
acontecimento inexplicável pelas leis da natureza. Coincidências, apenas.
— Comenta-se—
continuava o vendedor — entre
as mais empolgadas, que a falecida, depois de sua passagem desastrosa por
Recife e lutando contra uma doença que a levaria ao céu, morreu desamparada no
chão frio de um bar ao lado de uma garrafa vazia e um copo quebrado. Isso lhe
dava um aspecto de um fim por demais sofrido. Apesar de que essa menina, que eu
saiba, nunca fez uma caridade a ninguém. Sempre cobrava de seus parceiros. — E
com um sorrisinho sarcástico, o barraqueiro sentou-se no seu tamborete.
O
coveiro não se convenceu de que aquela história pudesse fazer de uma criatura mortal
uma santa, principalmente uma santa de Ãguas Belas. A igreja jamais canonizaria
uma pecadora que não houvesse se redimido de seus pecados. Seria o fim dos
tempos!
Quando ele entrou no cemitério
e passou diante da cova de Maria, ficou estarrecido e assustado com o que viu.
Ao redor da cova, algumas mulheres da vida estavam ajoelhadas, mãos juntas
erguidas para o céu, suplicando por algum milagre.
Ele passou por elas bem
devagar, olhou de soslaio e desceu para pegar sua pá, sua picareta e começar a
trabalhar, ainda sem entender o que estava se passando naquele cemitério.
Naquele dia, o funeral de
Maria foi acanhado, sem ostentação: apenas algumas garrafas de cachaça
esvaziadas, uma discussão com o padre na igreja, e só. Algumas semanas depois
de seu sepultamento, fez-se uma festa no túmulo. Até romarias de prostitutas visitavam
a cova dela. Depositavam flores e faziam as mais estranhas promessas. Muitas
deixavam bilhetes e até cartazes com seus pedidos, alguns até engraçados: “Maria,
ajude-me a sair nesta noite com muitos homens e encher a minha bolsa de
dinheiro.â€
Outras não faziam pedidos
extravagantes, mas chegavam ao ridÃculo de urinar na cova de Maria para serem
curadas de gonorreia. Ao fim da tarde, aquela sepultura achava-se toda
encharcada de urina.
Por conta desse frenesi, a
cidade de Ãguas Belas foi invadida por um monte de raparigas, crentes de que,
após uma visita ao lugar onde Maria estava enterrada, sairiam do cemitério e
ganhariam muito dinheiro. Haja vista que, ali mesmo, no portão, formou-se um
grupo de homens que passava o dia à espera das meninas, que vinham contentes e
saltitantes na esperança de que ali, na saÃda, estaria o milagre.
Se depois de sua morte Maria
obrou milagres, como as prostitutas acreditavam, para muitos o milagre veio de
outra forma — como aconteceu com os vendedores ambulantes de folhetos de
cordel, além daquela dupla de repentistas e dos barraqueiros que faziam ponto
no pátio defronte ao cemitério. Nas feiras das cidades próximas, os cantadores
populares aumentavam sua renda cantando e vendendo folhetos sobre a prostituta
milagrosa.
Naquela época, o comércio
fervilhava de lembrancinhas de Maria. Pulseiras coloridas cintilavam nas
bancas; santinhos acompanhados de seu retrato disputavam espaço com folhetos de
cordel; e pequenos bonecos de barro — não idênticos, mas lembrando o estilo do
mestre Vitalino, de Caruaru — pareciam ganhar vida entre as mãos dos
compradores. Até bonecas de pano e de plástico desfilavam bocas pintadas de
batom vermelho, como se sorrissem de volta à multidão que as levava para casa.
O coveiro já havia comentado
com a mulher o que estava acontecendo no cemitério. Seu medo não era dos
mortos, mas do fanatismo que invadia o seu local de trabalho. Os vivos é que o
preocupavam. Ele não se conformava ao chegar pela manhã e ver aqueles desvairados
ajoelhados diante de uma cova que guardava apenas carne apodrecendo. Nada
naquele túmulo poderia mudar a vida de alguém.
Com certeza, anos depois, ele
iria fazer o que sempre fez a vida inteira: recolher ossos e juntá-los a outros
que já se encontravam amontoados numa galeria. Sempre foi assim o final de toda
aquela gente que ele enterrou. Mas ainda havia quem cruzasse o seu caminho
acreditando que os mortos desprendiam energia para abafar todos os males.
Num certo dia, porém, seu
ceticismo foi perdendo forças. Depois de enterrar um defunto, quando voltava a
passos curtos para o alojamento — um pequeno quarto nos fundos do cemitério —
passou pela cova de Maria e, olhando para aquele monte de terra, arrepiou-se.
Aproximou-se da cova,
ajoelhou-se, juntou as mãos espalmadas diante do peito e rezou em silêncio.
FIM