— Nephi, querida, saia daí, por favor. Pela enésima vez, naqueles seis meses desde a morte de Arthur, John batia na grande pedra que fechava a cripta de Tintagel. Imaginava que a Nephilim podia ouvi-lo, mas não se manifestava. Lembrava-se da noite fria em que estava na fortificação de Launceston, aguardando notícias de Arthur. Os servos já haviam ido dormir quando escutou barulhos na porta da cozinha. O bom senso lhe dizia para não a abrir, mas algo mais, uma intuição, o fez tirar a tranca e ele se deparou com a cena que ficara gravada em sua mente. Nephi estava lá, coberta de sangue coagulado, roupas rasgadas. Os olhos azuis eram lagos coruscantes de dor, desespero, raiva, e de onde dois filetes congelados de lágrimas desciam e vincavam seu belo rosto. Trazia nos braços o corpo de Arthur. A face do xerife estava impassível, congelado pelo frio e pela morte. Passado o choque inicial, John acordou os servos. Foi uma enorme consternação, com todos querendo saber o que havia acontecido. Mas John, usando de toda sua autoridade, fez todos entenderem que a senhora Nephi estava em choque, que não havia como saber o que acontecera, mas ordenou que o corpo fosse preparado para o sepultamento. E enquanto o cadáver do xerife era lavado e envolto em um sudário, John, com paciência e firmeza, tentou conseguir da garota o que havia acontecido. Com trejeitos, resmungos e palavras entrecortadas entre crises de choro, entendeu que eles haviam enfrentado “algo” e que isso fora derrotado, mas à custa da vida de Arthur. Na manhã seguinte, durante o sepultamento do corpo em uma cova escavada no chão de terra batida da pequena igreja do povoado, John fez circular que o xerife enfrentara piratas vikings, que atacaram o povoado de Porthcaswydh. Alguém falou que havia sido avistada muita fumaça para o sul, provavelmente do ataque. John colocou um homem proeminente no papel de responsável por Launceston até que nomeasse um novo xerife e voltou para Tintagel, levando consigo a viúva do xerife. O que ninguém sabia, era que também levava o corpo de Arthur com eles. Durante a madrugada, enquanto todos voltaram a dormir, ele levou, com ajuda de Nephi o cadáver para sua carruagem e no lugar da sepultura enrolou em um novo sudário, mantas, panos e madeiras, para fazer a vez do morto. Fez isso, pois sabia que Nephi não se separaria do corpo tão facilmente e, provavelmente não permitiria que fosse sepultado e aquilo acabaria em um escândalo que chamaria uma atenção não desejada. E acreditava que aquela história ainda teria desdobramentos sociais. Durante a viagem uma coisa lhe chamava atenção: não sentia o odor de decomposição do corpo. Morto a pelo menos 3 dias, já era para que os gases putrefatos se fizessem sentir, mas mesmo com o enorme buraco que virá no abdome do falecido amigo, nada era sentido. John gostaria de averiguar mais de perto, mas Nephi se agarrava ao cadáver de forma obsessiva, choramingando e sussurrando coisas desconexas. No fim, o inglês atribuiu a ausência de cheiros ao frio cortante da estação. Ao chegarem em Tintagel, John dispensou os cocheiros e a guarda. Quando ficaram a sós, instou Nephi a carregar o corpo de Arthur. Passaram por uma entrada secreta e começaram a descer por lances de escadas corroídas pelo tempo. John sempre fora muito curioso e quando fora morar lá, investigara o castelo de ponta a ponta e descobrira aquele caminho. Tintagel não era tão antigo, mas fora construído sobre um lugar que fora habitado por romanos, celtas e povos mais longevos ainda. E o que ele descobrira fora uma cripta escavada na rocha do penhasco sob o castelo, onde havia dezenas de esqueletos. E pela quantidade de armas oxidadas, cerâmicas e até joias, percebera que era o lugar de repouso de grandes personalidades em suas épocas. John deixara tudo como havia encontrado, satisfeito por si só com sua descoberta, mas agora encontrará uma utilidade para ela, ser o local de repouso eterno de seu amigo, um homem tão nobre quanto os que ali foram sepultados. Usando uma tocha, mostrou a Nephi uma laje, onde deveria colocar o corpo. A garota obedeceu, mas ficou ao lado, desolada. John colocou a mão em seu ombro. “Vamos, querida. Deixemos o corpo de Arthur entregue ao descanso eterno, até o dia do Juízo Final e rezemos para que Deus tenha piedade de sua alma”. Enquanto iam em direção à saída ele pediu, “Vou precisar de sua ajuda para fechar a cripta. Na lateral interna da entrada baixa do lugar, havia uma grande pedra em formato de roda, que rolava em uma canaleta rente a soleira da porta. Seriam necessários pelo menos 10 homens para movê-la, mas Nephi sozinha conseguiria, ele tinha certeza. O velho se abaixou para sair, do lado de fora, enquanto endireitava, gemendo, as costas, ouviu um barulho e se virou. Deu um grito, mas era tarde. Nephi estava rolando a pedra, fechando o sepulcro, com ela do lado de dentro. A última coisa dela que John viu, foi o refulgir da luz da tocha nos olhos azuis. Ele esmurrou a pedra, chamou, implorou por horas até que, cansado desistiu. Achou que Nephi viveria seu luto por alguns dias e depois sairia. Três meses se passaram e o velho inglês já não tinha esperanças. Todas as noites ele ia até a cripta e batia na rocha, pedia, implorava, mas nenhum som chegava ao exterior. Queria acreditar que ela ainda estava viva, que mesmo sem comida e água, ela viveria indefinidamente. No mundo lá fora, os desdobramentos que John temia estavam se confirmando. As mortes no Sul pararam, mas o acontecido em Porthcaswydh tomava novos contornos. Por mais que a versão oficial, a dita pelo Earl, fosse de que os responsáveis foram piratas, corria entre o povo que tudo fora ocasionado pelo ataque de um monstro, e que este fora derrotada pelo Xerife Arthur. O francês foi elevado à categoria de herói, o Rei Arthur reencarnado e depois a mártir Logo pessoas estavam indo ao túmulo em Launceston para rezar. John imaginou que logo desenterrariam o corpo para retirada de relíquias e a farsa seria descoberta. Antes que isso acontecesse, mandou homens de confiança à noite para o desenterrarem o sudário e o queimarem em algum local ermo. Logo depois a igreja reabriu o local do sepultamento e não encontrou nada. As pessoas agora diziam que Arthur ressuscitara. O rei solicitou sua presença em Londres, mas John alegou estar doente. Henrique então enviou várias mensagens exigindo saber o que acontecerá de fato no sul da Cornualha. John reforçou que foi um ataque de piratas, que os boatos de um monstro era produto da mente ignorante dos camponeses e pescadores, que não sabia o que acontecera com o corpo. O rei até demonstrou interesse na viúva do xerife, pois já correra pelo reino de que ela era muito bela. John informou que ela, que já não tinha uma boa saúde, enlouquecera totalmente com a morte do esposo. O inverno terminou, a primavera passou e o verão se fazia presente e mais uma vez lá estava John, diante da grande pedra que encerrava a cripta, a escuridão reinante quebrada apenas pela luz bruxuleante da tocha. Ao longe era possível ouvir as ondas quebrando nos rochedos de Tintagel. John suspirou e abriu sua alma: — Nephi, meu coração me diz que você ainda está viva aí dentro. Imagino que poderia ficar aí pela eternidade, sofrendo pela dor da perda de seu amado, pois você é um anjo de Deus. Mas eu, minha pequena Nephi, sou apenas um homem, um homem velho. Eu vou morrer logo. E morrerei triste e solitário, por nunca mais ter podido ver seus olhos celestiais. Nada. Ele abaixou a cabeça, duas lágrimas caíram na poeira antiga do chão e tomou o caminho para retornar ao castelo. Ouviu um som, de pedra raspando pedra e se voltou. A pedra foi rolada e uma figura esquálida emergiu da cripta. Nephi estava nua, desgrenhada, os ossos parecendo que iam rasgar a pele ressecada, até o brilho de seus olhos estavam mortiços. Os dois se encararam em silêncio por um tempo, até que a garota sussurrou com voz rouca e dolorida: — John….na…. morre Havia tanto medo e súplica naquelas palavras entrecortadas que o velho não aguentou e chorou copiosamente. Abriu os braços: — Oh, minha filha. Nephi se atirou contra o peito dele e seu corpo magro balançou com vários soluços. — Vai ficar tudo bem agora, querida — ele acariciou os cabelos emaranhados dela. — Vamos subir. Você precisa se limpar e se alimentar. Ela se soltou, segurou a manga da túnica dele e a puxou apontando para a cripta. — Sim, vamos fechá-la para que Arthur possa repousar. Ela balançou a cabeça negativamente e, segurando-o pelo pulso o puxou suave, mas firmemente, para a porta e apontou para dentro: — Art..ur. — Você…. quer que eu entre? John titubeou. E se ela fechasse novamente a saída, encerrando-os lá dentro. Ela o puxou para dentro, o soltou e apontou novamente para a escuridão, onde estava o corpo do xerife. O velho se adiantou devagar. Imaginou que talvez ela o tivesse devorado, para saciar sua fome. A luz caiu sobre a laje. John arfou e recuou dois passos, quase caindo de costas. — Pelo Bom Deus!
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A carruagem cortava a estrada enlameada. Dentro dela, John Duffin, olhava pensativo os campos encharcados da Cornualha. Ao longe era possível distinguir, mesmo sob a chuva incessante da estação, os contornos do castelo de Tintagel. Havia um mês que ele havia saído de lá, convocado a ir a Londres pelo Rei Henrique II. Uma convocação que, ao contrário das demais, ele não pode deixar de atender, pois não fora trazida por um mensageiro, mas por soldados armados, com ordens de levá-lo, mesmo que à força, a presença real. Optara em não levar Nephi, deixando-a no castelo aos cuidados de seus servos mais leais, imaginando que ali ele ficaria melhor do que em Londres. E porque queria deixá-la longe dos olhos do mundo, principalmente os do rei. Nos dois anos em que estavam ali, a garota desenvolvera melhor sua comunicação e estava muito mais civilizada. “Dois anos já”, pensou John, desde que Nephi saíra da cripta e o fizera olhar para o cadáver de Arthur. Dois anos que ele tentava entender aquilo, que pesquisara em centenas de pergaminhos antigos atrás de uma resposta, e nada. E agora ele teria muito menos tempo para continuar sua busca, pois o rei o designará para uma missão. A carruagem atravessou o istmo até o promontório onde ficava Tintagel e parou no pátio. Sob uma cobertura a criadagem o aguardava e todos se curvaram, murmurando: “Meu lorde”. — Fez uma boa jornada, meu Lorde? — perguntou o intendente. — Na medida do possível, sim, Lecauf. Onde, — John olhou em volta — está a senhora Nephi? O velho teve a impressão de ouvir mais ao fundo alguns risinhos abafados. Lecauf parecia constrangido quando respondeu: — A senhora…. está por aí. — Talvez na estrebaria, meu Lorde — disse uma serva com o rosto vermelho e um sorriso contido. O intendente a fuzilou com o olhar. — Nas estrebarias? — perguntou John surpreso. — Porque, pelos céus, ela estaria lá? Ele nem gosta de cavalos. Ninguém respondeu, então John ordenou: — Descarreguem minhas coisas — e sem mais demora saiu sob a chuva em direção a estrebaria. Chegou sob a cobertura de palha da entrada do lugar e, após passar as mãos pelo rosto para retirar o excesso de chuva, ouviu gemidos. Por um instante pensou em virar as costas e ir procurar Nephi em outro lugar, mas uma leve desconfiança o fez seguir em frente. Ao olhar sobre uma mureta de madeira, viu Nephi deitada na palha. Seu corpete estava aberto, deixando seus seios à mostra. Sua saia estava levantada e, entre suas pernas, um rapaz com as calças arriadas, se movimentava freneticamente. A garota levantou os quadris e cruzou as pernas nas costas do rapaz, puxando-o mais para si. Ele gemeu alto. John, paralisado, só pode pensar que ela poderia parti-lo ao meio com aquele movimento. Voltou a si e rapidamente virou as costas e saiu, andando rápido na chuva. Entrou no castelo. Os servos já haviam debandado, o que John achou bom. Não tinha coragem de encarar ninguém àquela hora. “Como se eles já não soubessem”, pensou. Chegou no aposento que usava como biblioteca e escritório. Tirou o casaco pesado e respirou fundo. O que estava sentindo? Vergonha, consternação, indignação? Raiva? Mas por qual razão? Por causa de seus valores morais e cristãos, que diziam que uma mulher tinha que ser casta, honrada? Se recriminou. Nephi não estava fazendo nada diferente do que várias pessoas estavam também fazendo em montes de feno espalhados pelo mundo. Mas ela era casada. Ou era viúva? Lembrou-se do corpo de Arthur lá na cripta e o que encontrara há dois anos. Esperava ver o corpo decomposto de seu amigo, mas, mesmo após seis meses, ele estava integro, sem nenhum sinal de decomposição. Estava com uma aparência até saudável, como se estivesse dormindo, mesmo que o rombo em seu abdome dissesse o contrário. Nephi, ainda pouco articulada na época, fizera, através de gestos, John entender que Arthur estava vivo e que seu coração batia. O inglês chegou a ficar uma hora com o ouvido encostado no peito de Arthur, mas nada ouviu, nem sentiu qualquer respiração. Tempos depois, quando Nephi passou a se expressar melhor, lhe disse que o coração de Arthur batia “muito de vez em quando e muito baixo”. Seja como fosse, ela passou a ir todos os dias vê-lo e deixar uma tocha acessa na cripta, caso ele despertasse. No começo chegou a deixar vasilhas com água e comida, mas os ratos as consumiam. Aliás, aí estava outra coisa que intrigava John, os roedores não atacavam o corpo de Arthur, mantendo-se sempre a distância. De tempos em tempos o velho ia até a cripta para examinar o corpo, principalmente a ferida aberta. Na escuridão, sob a luz bruxuleante da tocha e com seus olhos cansados, não conseguia discernir se ela estava fechando ou não, se os órgãos estavam se recompondo, apesar de Nephi garantir que sim. John chegou a ter esperanças, mas agora nem tanto. Cada vez mais chegava à conclusão que o sangue Nephilim que a garota havia dado a Arthur, de alguma forma embalsamara e protegera o corpo contra a degradação. Deixara que Nephi alimentasse aquela expectativa da volta de Arthur, mas havia chegado a hora de encerrá-la. Olhou para um canto da sala e viu sobre uma mesa, pergaminhos, peles, pincéis e tintas. Ele os havia dado para Nephi, para que ajudassem a lembrar, revelar coisas de seu passado, já que a garota tinha dificuldade em verbalizar isto. John percebeu que ela tinha dificuldade em lembrar de seu passado com clareza. As lembranças vinham em lampejos e logo desapareciam. Ela pintava o que conseguia guardar delas. Pegou os desenhos. Pareciam com algo que uma criança faria, sem técnica ou precisão, mas eram, ao mesmo tempo, eloquentes e misteriosos. Ela pintou um velho. John achou que seria ele, mas Nephi sussurrara “sába”, que era “avô” em hebraico. Desenhou dunas, com um grande Sol vermelho sobre elas; um deserto. Em algumas dessas havia tendas e algo meio ondulado com quatro suportes que John demorou a entender que era um dromedário. Isto tudo lhe dizia que a origem da Nephilim estava na Terra Santa, onde Arthur a encontrara. — John! Nephi entrou correndo no aposento. Seus olhos azuis estavam radiantes e um largo sorriso estampava-lhe a face quando se atirou no pescoço do velho para abraçá-lo. — Ho, ho! Devagar, querida, ou você arranca minha cabeça! — disse ele, abraçando-a também. Ela se afastou e disse: — Sentir falta de John! — Eu também, querida. Eu também. Ele mostrou os desenhos em sua mão: — Pintou mais alguma coisa? Ela correu na mesa e logo retornou com um pergaminho, que estendeu para John. Era um homem de cabelos e barba negras. Usava uma armadura e brandia uma espada. “Os traços dela estão melhorando”, pensou o velho. — Arthur — informou ela. No peito da figura, observou John, ao invés da cruz vermelha dos cruzados, havia uma mancha azul, como se fosse uma luz. — Me diga, Nephi, — perguntou ele — você ainda ama Arthur? John levara bastante tempo para fazê-la entender o conceito de amor. — Nephi amar Arthur — respondeu ela sem titubear. Ela poderia ainda ter dificuldade em conjugar corretamente os verbos e construir frases com eloquência e clareza, mas algo que era inegável na bela voz que ela demonstrara ter, era a sinceridade de seus sentimentos. — Então, por qual razão… — John se questionou, por um segundo, se devia tocar naquele assunto, mas decidiu que sim, afinal era sua obrigação instruí-la nas coisas do mundo. — Na estrebaria, eu vi você e o cavalariço em…. hã…. conjunção carnal. Por quê? Ela o encarou com estranheza. Era obvio que não entendera o sentido de “conjunção carnal”. John tentou de outra forma, mais vulgar: — Vocês estavam fornicando, por quê? Seus olhos se arregalaram, mas não passaram por eles qualquer traço de vergonha, ou mesmo de raiva, só alegria por ter entendido a pergunta. Pensou um pouco e respondeu, dando de ombros: — Porque eu quer. Eu gostar. A resposta desconcertou John. Ele aprendera que somente os homens tinham necessidades sexuais, que para as mulheres o sexo era só para procriação. Tudo bem que Nephi era uma mulher diferente das demais, mas era provável que, como em muitas outras coisas, aquela ideia também estivesse errada. Ele abanou a mão: — Tudo bem. Uma outra hora vamos conversar sobre discrição, privacidade e lugares e horários certos para se fazer certas coisas. Por hora precisamos conversar um outro assunto. Dito isto, se sentou pesadamente em uma cadeira forrada. Nephi sentou-se no chão e abraçou os joelhos como sempre fazia quando John ia contar uma história. — Nosso bom rei, Henrique, me convocou a Londres, — começou ele — para me incumbir de uma missão. Há alguns anos o rei foi, indiretamente, responsável pela morte de Thomas Becket, Arcebispo da Cantuária. Para evitar sua excomunhão, além de algumas penitências, Henrique se comprometeu a doar grandes somas aos Templários e Hospitalários na Terra Santa, Além de incentivar seus súditos a irem para as cruzadas. O rei é um homem muito meticuloso e fará uma nova remessa de dinheiro e quer saber se esta, assim como as demais, estão de fato chegando ao seu destino. E me incumbiu de ir para a Terra Santa, como seu emissário e acompanhar o pagamento. E para representá-lo junto ao Rei Balduíno de Jerusalém. — John ir embora de novo? — perguntou Nephi. — Na verdade, você irá comigo. Ficarei fora mais de um ano e não posso deixá-la sozinha aqui por tanto tempo. — E Arthur? — perguntou a garota sobressaltada. John acariciou o rosto dela: — Querida, não sabemos de fato se ele está vivo. — Vivo sim! — Veja, quero que me acompanhe pois, depois de me livrar de minhas obrigações oficiais, pensei em irmos até a caverna onde Arthur te encontrou. Podemos encontrar pistas sobre seu passado — John balançou os desenhos. — E resgatar os tesouros que lá estão. Já deixei registrado com pessoas de confiança que, quando eu morrer, todos os meus bens e minha fortuna serão seus. Mas este tesouro também lhe trará mais segurança. Nephi fechou a cara, coisa que sempre fazia quando John tocava no assunto de sua morte. Ele sabia que aquilo era praticamente a única coisa que assustava a garota, ficar só no mundo. Doeu nele, mas o velho usou aquilo como um meio de convencê-la: — Já lhe disse mais de uma vez, estou velho. Não sei se sobreviverei até retornar. Ou se retornarei. A Terra Santa é um lugar perigoso, quem sabe o que pode acontecer com um idoso como eu — disse ele fingidamente compungido. A garota fechou os olhos e suspirou: — Nephi vai — disse por fim. John procurou não demonstrar o júbilo que sentiu. Antes, segurou a mão dela: — Não se preocupe com Arthur. Ninguém sabe da existência da cripta. Podemos deslocar mais algumas pedras para selar ainda mais a passagem. E, se ele está vivo e só desacordado por dois anos, sem alimento ou água, se despertar, pode aguentar alguns meses até voltarmos. E tenho certeza de que ele aprovaria que você fosse atrás de sua história. Ela balançou a cabeça concordando e depois disparou: — Geofrey ir também? John franziu a testa: — Quem é…? Não! Não podemos levar o cavalariço conosco! Nephi fez um bico emburrado.
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— Não sei o que está mais azul hoje, seus olhos ou o céu. Nephi olhou para John e sorriu. Era um retrato de rara beleza vê-la sentada na proa do barco, seus cabelos loiros quase platinados brilhando sob o Sol do mediterrâneo, tendo o céu anil como fundo. Atrás deles, a ilha de Chipre ia se distanciando. Haviam saído da Inglaterra há coisa de um mês, em direção a Terra Santa, com o ouro prometido pelo rei Henrique II. No início, enquanto navegavam pelo canal entre a Cornualha e a França, o tempo esteve fechado, mas não tempestuoso, porém, quando se aproximaram da Hispânia, o sol surgiu e passou a acompanhá-los o tempo todo, com o mar calmo e sereno e assim adentraram o mediterrâneo, fazendo paradas na costa da França, da Itália e por último em Chipre. John achou, em vários momentos antes do embarque, que Nephi mudaria de ideia: quando soube que iriam pelo mar, quando se despediu de Arthur e de Geofrey. Deste, aliás, foram várias “despedidas” ao longo dos dias que antecederam a viagem, apesar das reclamações de John sobre aquele comportamento. Mas, no fim, ela embarcou. John acreditou que a curiosidade sobre sua origem se sobrepôs a todas as outras coisas. Durante a longa viagem, o inglês procurou passar para ela regras de recato, discrição, comportamento. Não que desejasse sufocar a espontaneidade de Nephi, mas para que ela soubesse como se comportar em sociedade. Ela o ouvia, ou, pelo menos, olhava para ele quando falava, mas a impressão era que John pregava para ouvidos moucos. O que Nephi gostava mesmo era de ouvir as histórias dos marinheiros, suas aventuras, os lugares que conheceram. Algumas eram histórias bem sujas e outras sangrentas, que os homens contavam esperando chocar a bela mocinha, mas só o que viam nela, era a ansiedade por mais contos. Uma destas histórias sangrentas foi contada quando aportaram em Chipre, de como a ilha fora devastada alguns anos antes por um homem, cujo nome era defenestrado em toda a cristandade: Renaud de Chântillon. Quando invadira a ilha em 1155, Renaud e seu exército pilharam igrejas e conventos, queimaram plantações, estupraram mulheres, massacraram soldados rendidos, degolaram os pobres, velhos e crianças. Os ricos foram presos para o pagamento de resgates. Antes de ir embora, o francês mandou reunir os sacerdotes bizantinos, cortou-lhes os narizes que foram enviados para Constantinopla. — Homem mal —disse Nephi — Sim, menina, muito mal — concordou o marinheiro abissínio que contava a história. — Mas tenho dúvidas se ele é mesmo um homem. — Como assim? — perguntou John. — Renaud foi capturado pelo soberano Noradine e ficou dezesseis anos preso na Síria. Dizem que só conseguiu sair porque fez um pacto com o demônio. John riu: — Ele saiu porque o imperador Manuel Comeno pagou seu resgate, afinal, Renaud era padrasto da imperatriz Maria. — Dizem muitas coisas — contemporizou o outro, enquanto enrolava uma corda e olhava para o horizonte. — O que não dá para entender, é como um homem bom como o rei Balduíno, aceita uma criatura daquela a seu lado. — Porque o rei precisa defender Jerusalém de Saladino e Renaud tem um exército e é muito influente, apesar de não ser bem-quisto — John deu um tapinha afetuoso na mão de Nephi. — Isto querida, se chama política, algo que também tenho que lhe explicar. A garota torceu o nariz: — Política má. John sorriu, concordando com ela. Depois de mais alguns dias chegaram em Jafa. Um grupo de templários os aguardavam, para escoltá-los e ao ouro, até Jerusalém. Ao ver os homens com suas cotas de malha e suas túnicas com a cruz vermelha no peito, ela suspirou, lembrando-se de Arthur e enquanto John acertava detalhes com o oficial, ela se postou na beira do cais, os olhos perdidos entre os navios ancorados. John se aproximou: — Está tudo bem, querida? — Eu e Arthur saímos daqui para a Europa. John ficou comovido e surpreso. Primeiro pela carga emocional que a garota colocou nas palavras e porque era a primeira vez que ela falava uma frase bem articulada. Segurou carinhosamente a mão ela: — Venha, vamos buscar a história de vocês dois e a sua antes dela. Um dia após deixarem Jafa, Nephi chamou a atenção de John, apontando para um maciço rochoso a leste: — Caverna — sussurrou ela. O velho acenou e guardou a localização na mente. Um dia antes de chegarem a Jerusalém, cruzaram com os restos de uma caravana que havia sofrido um ataque. Carroças vazias e incendiadas, homens, todos muçulmanos, mortos. Não se viam corpos de mulheres ou crianças. — Com certeza foram levadas para serem vendidas como escravas — informou o oficial templário com desgosto. — Isso com certeza é coisa daquele canalha de Renaud de Chântillon – vociferou outro soldado. — Já ouvimos esse nome, — disse John — sempre acompanhado de más ações como esta. — É um assassino sanguinário — falou o oficial. — Um ser de pura cobiça e maldade. Seus homens têm atacado caravanas árabes, contrariando as ordens do rei Balduíno que fez um acordo de paz com Saladino. — Mas, assim, ele acabará com este tratado e isso, com certeza, não é vontade do rei, certo? — A triste verdade, senhor, é que o rei não consegue controlá-lo. Esse maldito ainda será a causa da queda de Jerusalém, escute o que lhe digo. No dia seguinte adentraram a Cidade Santa. John estava sufocando naquele calor, mas Nephi estava bem à vontade, afinal, aquela era sua terra. Passaram primeiramente no Monte do Templo, onde ficava a sede da ordem e John fez a entrega dos valores ao Mestre do Templo, que se encarregaria de dividi-los com os Hospitalários e depois seguiram para o castelo do rei, para entregar a última parte. Nephi e John foram levados aos seus aposentos, para se refrescarem e limparem-se da sujeira da viagem e, então, foram introduzidos a presença do rei. Balduíno IV estava sentado em seu trono e fez sinal para que se aproximasse. John se curvou e cutucou Nephi para que fizesse o mesmo. — Majestade, sou John Duffin, Earl da Cornualha e venho em nome do Rei Henrique II da Inglaterra, trazer-lhe suas saudações e uma contribuição monetária, para ajudá-lo em sua batalha para manter a Terra Santa sob a bandeira de Nosso Senhor Jesus Cristo. Um homem ao lado do rei abaixou-se e sussurrou-lhe algo. — É com grande alegria — disse o rei logo depois — que recebo os votos e a ajuda do estimado rei Henrique. Agradeço também pelos inúmeros ingleses que chegam todos os meses, vindo se juntar a nossa santa cruzada. — O rei Henrique está sempre exortando os homens do reino a virem se juntar a sua justa e sagrada batalha para manter a Terra Santa livre do jugo dos infiéis. Ele mesmo pretende vir, algum dia, para lutar ao lado do senhor, a quem tanto admira. — Aguardarei com ansiedade este dia. Houve um minuto de silêncio, no qual John aproveitou para examinar melhor o rei Balduíno. Ele era jovem ainda, mas seu rosto estava marcado pelas lesões da doença que o acometia. “O Rei Leproso”, pensou John. Apesar da pavorosa deformação em sua face e mãos, Balduíno não escondia sua doença do mundo e nem a usava como desculpa para se esconder. Participara de todas as campanhas militares contra Saladino, comandando pessoalmente o exército, mesmo carregado em padiolas, quando já não conseguia mais montar, sua espada amarrada as suas mãos em forma de garra, quando não conseguia mais a segurar. E por isso era amado e idolatrado pelo povo de Jerusalém. Era um homem admirável. Um movimento de Nephi chamou a atenção e John se virou para ela. A garota acenava para o rei. As pessoas em volta demonstravam claramente seu mal-estar, mas nada falavam. O homem ao lado do rei fez menção de abaixar-se novamente em direção ao rei, mas parou o movimento no meio e retomou sua postura estática. Apenas Balduíno se mantinha impassível, então John entendeu o que Nephi já percebera: o rei estava cego! Muito provavelmente por conta da doença, mas esta era uma informação que John não tinha, então aquilo ainda era um segredo. Estava também explicada a atitude do homem ao lado do rei. Ele provavelmente sussurrava ao rei o que estava acontecendo. Era como se fosse os olhos de Balduíno. Um barulho na porta do recinto atraiu a atenção de todos, o que John agradeceu, mas o clima não melhorou, pareceu ficar pior, com todos olhando desgostosos para quem entrava. Um homem grande, usando uma malha de aço, botas, uma túnica branca a cruz vermelha no peito e uma grande espada, vinha caminhando hirsuto. Mas o que mais chamava a atenção nele, eram seus bastos cabelos e barba ruivos e sua postura arrogante. O homem se ajoelhou ante Balduíno. “Os olhos do rei”, sussurrou nos ouvidos reais e Balduíno fez um sinal para que o recém-chegado se levantasse. — Lorde John, este é Renaud de Chântillon, senhor de Hebrom, um nobre a meu serviço. John fez uma mesura que não foi correspondida. — Um lorde inglês aqui? — perguntou o francês com desprezo e vendo os baús ali perto — Veio justificar a covardia de seu rei com ouro? Porque, em vez de mandar um velho, não vem ele lutar? — Por favor, Renaud — pediu o rei. — Homem mal. Todos olhavam para Nephi, que encarava o nobre com uma careta de nojo. — Ora, não sabia que a Inglaterra produzisse tais guloseimas — disse Renaud cinicamente. O rei suspirou forte. — Peço que perdoem minha sobrinha. Ela não bate bem da cabeça — disse John O francês cofiou a barba vermelha: — A cabeça pode não prestar, mas o restante está na mais perfeita ordem. Balduíno esmurrou o braço do trono: — Chega! Retire-se agora, Renaud! O homem não pareceu nem um pouco ofendido. Rindo baixo, fez uma mesura debochada e se foi, não sem antes olhar Nephi mais uma vez, de cima a baixo. — Peço desculpas por tudo isso — disse o rei compungido. — Ele é inconveniente, mas, infelizmente, é necessário. — Não há o que se desculpar, majestade — rebateu John polidamente. O rei se levantou: — Venha, lorde John. Vamos passar a uma sala mais reservada, para tratarmos de outros assuntos que gostaria que levasse ao rei Henrique. Sua sobrinha será acompanhada pelas aias para seus aposentos, para que descanse. O homem ao lado do trono, discretamente, se aproximou do rei e o segurou pelo cotovelo, guiando-o. John se inclinou para Nephi e sussurrou: — Vá com estas moças. E comporte-se! Ele seguiu atrás do rei e Nephi foi atrás das quatro aias, que usavam belos e ornamentados vestidos. — Viram como o senhor Renaud se interessou por esta coisinha inglesa pálida? — perguntou uma das moças em hebraico para as outras. — Sim. Não sei o que ele viu nela. É tão sem graça. As moças olharam para trás. Nephi olhava para as decorações e paredes, parecendo admirada. — E ainda por cima é idiota da cabeça. As moças riram de forma abafada. Em um corredor elas viraram à direita, porém Nephi foi à esquerda. — Ei, moça idiota. O caminho é por aqui — chamou uma delas, ainda em hebraico. Sem se virar, Nephi respondeu na mesma língua: — Não. Passear no castelo. As aias ficaram vermelhas. Não imaginavam que ela falava sua língua. Mudando o tom, uma delas pediu: — Por favor, senhora, o rei ordenou que cuidássemos de você. Nephi se virou subitamente, arreganhou os dentes e rosnou para elas. As moças, aos gritos, fugiram correndo. A garota retomou tranquilamente sua caminhada. Desde que pusera os pés na Terra Santa, uma série de sentimentos tomara sua alma. Os cheiros os sons, as cores, tudo lhe evocava lembranças, as mesmas que desenhara em Tintagel, mas agora mais vívidas. Aquilo a estava deixando agitada. Um outro sentimento também a incomodava. Não sabia o que era, mas era algo muito próximo da sensação de perigo. Parou diante de uma tapeçaria com uma cena de batalha entre templários e árabes. Ao ver as figuras dos cavaleiros barbudos, sentiu saudades de Arthur. — Vejo que gosta de artes. Nephi se virou surpresa. Não tinha ouvido ninguém se aproximar, contudo, ali próximo estava Renaud de Chântillon. Aquele sentimento negativo bateu forte nela e agora sabia que a causa era aquele homem. Ele se aproximou: — Gostou do palácio? Se desejar, posso lhe dar um, que tal? O francês parou bem em frente a ela, uma cabeça mais alto, corpulento: —Um lugar onde poderemos fornicar o dia e a noite toda, o que acha? Nephi, apesar de entender o que ele dizia, optou por manter-se calada. — Como retardada não deve estar entendendo nada, não é? Mas tenho certeza de que entende isto. Ele levantou a mão e agarrou seio dela, sobre o vestido. Num átimo, o primeiro pensamento dela foi matar aquele homem asqueroso. Mas se conteve. Aquilo não seria bom para John. Procurou lembrar das lições do velho sobre como uma dama devia se comportar. Levantou a mão para dar um tapa no rosto dele, dosando a força para não lhe arrancar a cabeça, mas, para sua surpresa, ele soltou seu seio e com extrema rapidez, segurou seu braço pelo pulso e o torceu as suas costas, a fazendo girar e se debruçar sobre um aparador. Atrás dela, com a outra mão, ele começou a levantar a saia de seu vestido. Nephi tentou soltar seu braço, mas Renaud demostrou uma força incomum para um homem. Ela forçou mais e ele sussurrou resfolegante: —É bem mais forte do que sua imagem diz, senhora. Vamos ver se… Ele não terminou a frase. Nephi, agora furiosa, esqueceu os ensinamentos de John e, usando bem mais de sua força, se soltou, girou o corpo e desferiu um golpe com sua mão esquerda. Renaud desviou, evitando um desfecho fatal, mas as unhas dela talharam o lado direito de seu rosto. Os dois se encararam. Nephi rosnando e ele com um olhar entre a surpresa e o júbilo: — Você é um deles, não é? Igual aquele demônio de asas. Nephi arregalou os olhos. As feridas no rosto do francês começaram a se fechar. — Eu queria o que tem no meio das pernas, mas agora, quero o seu sangue — ciciou ele com volúpia. Antes que algo mais acontecesse, um cortinado à esquerda se abriu e dele saíram as aias que Nephi colocara para correr. Elas vieram de cabeça baixa até o nobre. — Senhor de Chântillon, peça por favor para a senhora nos acompanhar. O rei nos incumbiu de dar-lhe toda assistência, mas ela insiste em andar por aí. Não queremos ser punidas por desobedecer a uma ordem real. Por favor, use de sua autoridade. Renaud endireitou o corpo. Seu rosto já não tinha nenhuma marca e ele sorriu de forma cínica: — O rei é bondoso demais para vir a puni-las por isso, mas estão certas em uma coisa — ele se voltou para Nephi — Não é adequado que uma dama circular sozinha, então, acompanhe estas donzelas, ou serei obrigado eu mesmo a conduzi-la até seu quarto. Nephi, rígida, saiu a caminhar em direção de onde viera. As moças agradeceram ao nobre e a seguiram. — Espero ardentemente poder revê-la em breve, senhora — lançou ele ao longe. As aias soltaram risinhos, mas Nephi sabia que aquilo não era um galanteio. Era uma ameaça. Já em seus aposentos, espantou novamente as aias e ficou andando de um lado para o outro, até que John apareceu. Contou-lhe o ocorrido e o velho ficou muito assustado: — Por Deus! Será esse homem também um Nephilim? A garota balançou a cabeça em negativa: — Não Nephilim. É…. sinto ele...não sei o que é. — Ele citou um “demônio com asas”. Aquele Nephilim que atacou você e Arthur no vilarejo tinha asas. Era o mesmo ser? Nephi deu de ombros. — O rei nos convidou para um banquete hoje à noite, já que lhe informei que vamos embora amanhã. Disse-lhe que gostaria de visitar alguns lugares, fazer alguns estudos, antes de embarcarmos para a Inglaterra, minha ideia é irmos até a caverna, mas este homem irá nos perseguir, com certeza. — John pensou um pouco. — Tenho uma ideia de como despistá-lo. — Ele se levantou. — Irei tomar algumas providências. Não saia do quarto por nenhum motivo. Voltarei em breve.
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Na manhã seguinte, uma carruagem fechada com uma escolta de mercenários saiu de Jerusalém e seguiu para o sudeste. Logo depois dois cavaleiros encapuzados também saíram da cidade, seguindo para o oeste. Eram Nephi e John. Durante o banquete, na noite passada, John comunicou ao rei que visitaria o oásis de Ein Gedi e explorar as muitas cavernas daquela região. Falou em voz alta, esperando que a informação chegasse a Renaud de Chântillon e como a estrada até lá passava perto de suas terras, orava para que aquilo fosse muito tentador para o francês esperá-los para uma emboscada. Enquanto isto, cavalgariam rapidamente para chegar logo na caverna de Nephi, recuperar o tesouro, procurar pistas sobre seu passado e seguir para Jafa, antes que Chântillon percebesse o embuste. Na manhã do dia seguinte saíram da estrada para Cesareia e seguiram por tortuosos caminhos calcados de pedras entre montes rochosos. A certa altura os cavalos não conseguiam mais prosseguir, então eles os deixaram amarrados e seguiram a pé. Após uma hora chegaram à base de uma encosta. Nephi apontou para um grupo de pequenas árvores sob a sombra de um paredão rochoso. — Caverna — disse ela. Subiram até lá, com John tendo muita dificuldade. Ao chegarem ao topo da encosta viram que um desmoronamento havia tapado parcialmente a entrada da caverna, assim como arbustos e arvoretas. Nephi as arrancou e deslocou as pedras, abrindo uma passagem. Ela conseguia enxergar no escuro, entretanto John precisou acender uma tocha ao entrarem. A garota ficou parada, olhando para todos os lados, em silêncio. Parecia estar emocionada. John perguntou: — Sentiu falta de sua casa? Nephi suspirou: — Eu viver aqui, mas, casa, é onde Arthur e John estar. Muita solidão aqui. O velho ficou com pena, imaginando todos os anos, séculos em que a garota que aprendera a amar como uma filha, vivera ali, no escuro, sozinha. Ele enxugou uma lágrima. — Então vamos pegar o que viemos buscar e voltar logo para casa. Seguiram mais para o fundo. John viu as caveiras e esqueletos fragmentados. Evitou pensar que foram presas de Nephi. Em um deles ainda era possível ver os restos de uma túnica com uma cruz pintada. Um dos companheiros de Arthur, com certeza. Viu um elmo romano e uma cota de bronze, hitita com certeza. Também havia armas de aço enferrujadas e outras de cobre ou bronze cobertas com uma camada verde. Havia um tesouro histórico ali. Pensou em voltar em uma nova expedição para resgatá-lo. Riu. Como se ainda fosse viver mais tanto tempo para aquilo. Levantou a tocha e viu inscrições em hebraico nas paredes, a maioria já bem apagada. Identificou a palavra “Nephilim” e outra que parecia um nome “Hamateu”. Ao lado deste lia-se algo que parecia estar incompleto ou o restante tinha se apagado “Ake..” Havia também desenhos de traços simples, infantis e uma pequena mão contornada com fuligem, como as crianças fazem. — É sua mão? — perguntou Nephi se aproximou e colocou sua mão sobre a imagem. Esta, bem maior, cobriu a figura: — Sim. Então, concluiu John, ela havia sido uma criança em algum momento e crescera ali, mas sozinha? Senão, quem havia cuidado dela? O velho apontou para a inscrição: — “Hamateu”, quem é? A garota, enrugou a testa, num esforço para se lembrar. De repente, sua expressão desanuviou e ela apontou para um monte de pedra em um canto: — Sába. Só então John reparou que aquilo era um túmulo. — Avô? Seu avô está sepultado ali? O inglês pensou se Nephi se ofenderia se ele desenterrasse os ossos, para buscar alguma outra informação, algum detalhe, mas antes de dizer qualquer a coisa a garota se levantou, com os punhos crispados, expressão fechada. — Pegar tesouro. Ir embora. — Mas… Nephi fez um gesto com a mão, interrompendo-o: — Isso…. passado. Quer voltar para Arthur. John entendeu e respeitou a vontade dela de não querer rememorar certas coisas. — Tudo bem, querida. Vamos lá. Eles avançaram mais um pouco, até uma grande pedra em formato de laje. Seriam necessários vários braços para levantá-la, mas Nephi segurou uma das bordas com as duas mãos e a ergueu, encostando-a na parede. Debaixo dela havia um buraco e dentro dele, nada. Nephi se ajoelhou atônita, olhando para o espaço vazio. — Olhe! — John chamou a atenção dela. A tocha iluminou a parte debaixo da pedra e havia uma inscrição em hebraico lá: “Meggido” John estremeceu — O que ser? — perguntou a garota. — É o local onde, segundo a bíblia, a batalha do Armagedom acontecerá. Onde o apocalipse trará o fim da humanidade. Quem pegou o tesouro deixou uma indicação de onde está. A pergunta é: essa pessoa deixou o recado para qualquer um ou para você? Se é para você, como ela sabe de sua existência? — Ir lá. —Pode ser uma armadilha. — Ir lá. John viu que Nephi ficara curiosa. Ele também. — Vamos então. Quando iam saindo, na porta da caverna, Nephi na frente, subitamente uma lança se chocou contra a parede de pedra, a centímetros do corpo da garota. Ela empurrou John e voltaram para dentro. Uma voz poderosa ecoou lá fora: — Nephilim! Não adianta se esconder! Segui você pelo seu cheiro! Não tem aonde ir que eu não a ache! Era Renaud de Chântillon. — Não quero matá-la! Quero só um pouco do seu sangue! Me dê e você e o velho podem ir! Nephi ficou possessa com a audácia daquele homem, de se achar no direito de ameaçá-la e a quem amava para que cedesse algo, então gritou de volta: — Eu beber seu sangue! Ela ia se levantando para descer a encosta em um ataque, mas John a segurou: — Espere! — ele olhou através de uma fenda e viu que havia, além do francês, em torno de trinta homens, alguns com arcos. — Sei que pode vencê-los, mas será ferida de alguma forma e aí fará o que aquele maldito quer. Levará seu sangue até ele. Seja por qual razão ele o queira, não podemos permitir que consiga, porque coisa boa não é. Nephi respirou fundo, se acalmando. Olhou em volta e viu logo a frente, uma grande pedra precariamente presa na borda da encosta e teve uma ideia. —Ficar — disse para John e correu para a pedra. Flechas zuniram perto dela, mas logo ela ficou escondida atrás da rocha. Viu que havia homens subindo a encosta, então apoiou o ombro na pedra e a empurrou. Não precisou fazer muita força. A rocha desprendeu-se e rolou ladeira abaixo, levando cascalho e outras pedras consigo. Os homens que subiam tentaram desviar, mas sem sucesso. A pedra grande esmagou um e as menores partiram ossos e laceraram a carne dos demais. A grande pedra continuou seu percurso e ia atingir em cheio os demais homens e os cavalos na base da encosta, mas Renaud colocou-se no caminho dela e se aprumou para apará-la. Um pouco antes de chegar nele, a pedra quicou, saltou e o acertou no peito. Ele conseguiu detê-la, mas o impacto o derrubou e, ao cair para o lado, a pedra caiu sobre sua perna esquerda, machucando-a severamente. — Aaah! Sua meretriz maldita! — berrou. Lá no alto, Nephi gritou para John: — Vem! Segura em mim! Ele subiu nas costas dela, segurando em seu pescoço. Nephi começou a escalar o paredão rochoso, segurando nas reentrâncias que encontrava e, quando não as encontrava, ela mesmo furava a rocha com seus dedos. Uma flecha bateu perto deles e ela começou a subir em zigzag, preocupada porque John estava exposto. Quando estava praticamente na borda superior, uma flecha acerou a lateral de seu corpo. Mesmo com dor, ela conseguiu içar os dois, saindo do alcance dos arqueiros. Ela arrancou a flecha com um grunhido e o furo logo se fechou. — Fugir — disse para John. — Espere! — o inglês se abaixou e pegou a flecha que Nephi havia jogado. — Ele quer seu sangue, então não podemos abandonar nenhum vestígio — disse enquanto limpava a ponta na própria roupa. Depois passou areia nela e olhou no chão para conferir se nenhuma gota havia caído. — Agora vamos.
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Os soldados foram até onde Renaud estava sentado, esperando sua perna se recuperar, o que poderia levar alguns dias. Entregaram para ele a flecha que recuperaram no alto do penhasco e ficaram o encarando ansiosos. O francês a agarrou e freneticamente começou a cheirá-la e lambê-la. Cuspiu areia e atirou a flecha longe com um urro de decepção. Nada! Nem um vestígio do poder! Lembrou-se dos anos de cativeiro na Síria e como um dia, Manuel Comeno pagou seu resgate. Estranhou aquilo, pois apesar de ser padrasto da sua esposa, o imperador o odiava. Foi levado até Constantinopla e nem chegou a ver sua enteada e Manuel. O alojaram em suntuosos aposentos e o deixaram só. Durante a noite, acordou sobressaltado, com uma presença no quarto. Era um homem pálido, grande, vestido de negro e com profundos olhos escuros que brilhavam. Com uma voz que era ao mesmo tempo suave e cavernosa o estranho lhe disse que era ele quem havia ordenado que fosse libertado e o havia trazido ali para lhe conceder uma dádiva. “Lhe darei força física muito superior a outros homens, resistência e instintos superiores. Você será ferido, mas se curara rapidamente. Vivera por muito tempo, desde que mantenha sua cabeça sobre os ombros” Renaud o havia olhado com desconfiança. “Está me propondo um pacto? És o demônio?” “Sou um Nephilim” “E qual será minha contrapartida, Nephilim?” “Apenas seja você mesmo, mas em uma escala muito maior. Espalhe a morte, o caos, a dor.” O francês riu alto. “Isso é alguma brincadeira, certo? Do marido de minha enteada? Pois saiba que não acredito em demônios ou qualquer outra sandice que exista na bíblia!” O ser então abriu grandes e negras asas de couro. Renaud caiu para trás apavorado. “Não estou lhe propondo um pacto”, falou o monstro. “Eu disse que lhe concederei uma dádiva, quer você queira ou não” E numa velocidade estonteante ele cortou a distância que os separavam e agarrou Renaud pelo pescoço. Com dedos de uma mão apertou a mandíbula do homem, fazendo-o abrir a boca. Com a unha do indicador da outra mão perfurou o próprio indicador, de onde saiu uma gota de sangue negro, o qual passou na língua exposta de Renaud. Foi como se o tivesse feito comer uma brasa. Seu cérebro e seus olhos pareciam em chamas. Uma dor excruciante o atingiu e se sentiu arrastado para a escuridão. Antes de apagar, ainda ouviu: “Não permita que outros saibam de seus poderes. Use-os com discrição, mas mate e destrua o máximo que puder. Se assim o fizer, você terá mais do meu sangue.” Renaud despertou quatro semanas depois. Realmente agora ele tinha tudo que o Nephilim havia prometido e Renaud estava cumprindo sua parte, mas fazia anos que nunca mais fora procurado pelo Nephilim e ele queria mais. Queria se tornar o rei, não, imperador do Levante Por isso, quando entendeu que aquela garota era uma Nephilim, viu que a oportunidade se apresentava. Olhou para os homens à sua volta. Todos conheciam seu segredo. Renaud mantinha a fidelidade deles com a promessa de que, se o servissem bem, compartilharia seu poder e sua vida eterna com eles. Mas isso era algo que ele não faria. Só a ele pertenciam aquelas benesses. — Vocês sete, — Renaud apontou para alguns soldados — sigam-nos! Mas não os ataquem ou abordem. Apenas vejam para onde vão e voltem para me avisar!
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Após um dia e meio de caminhada, Nephi e John chegaram a Nablus. O velho chegou desfalecido pelo calor e cansaço. Ela o havia carregado nos braços por boa parte do caminho, mas mesmo ela sabia que seria as pessoas na cidade estranhariam uma mulher carregando um homem, então ela abordou um carroceiro já próximo a cidade e lhe dera uma moeda para levar John. Desembarcaram em uma estalagem, onde Nephi colocou John em uma cama e passou a lhe dar água e frutas, até que ele conseguiu se levantar. — Obrigado, querida. Hoje senti todo o peso dos meus sessenta e sete anos. Mas agora estou bem. Vamos para Meggido. — Não. John descansar. — Não podemos nos dar este luxo. Renaud e seus homens estão atrás de nós. Ela o encarou por um tempo, com expressão contrariada. Mas depois assentiu. Compraram cavalos e suprimentos e seguiram em direção noroeste. Depois de horas de cavalgada, no meio da tarde, avistaram as ruínas de Meggido, sobre uma elevação pontuada com palmeiras. Nephi se ergueu na sela e olhou para trás. — O que foi? — perguntou John. — Homens. Cavalos. O velho olhou na mesma direção e nada viu, mas logo, sete figuras despontaram sobre uma colina mais distante. — Nos encontraram! — lamentou ele. — Cabelo vermelho não está. — Não? Devem ser batedores. Com certeza voltarão e dirão onde estamos. Se formos rápidos podemos tentar encontrar algo antes que voltem. De repente, os cavaleiros tocaram suas montarias e vieram em direção a eles, desaparecendo na primeira ondulação. — Parece que me enganei. Nephi desmontou. — John ir, lá — e apontou para as ruínas. — Tome cuidado — e puxando o cavalo dela se foi. Ela aguardou. Logo os cavaleiros surgiram na crista da colina mais próxima. Vinham em uma carga furiosa, mas sem uma linha formada. Eles estavam desobedecendo às ordens de Renaud propositadamente. Queriam os poderes dele, mas não queriam esperar. Sabiam que o sangue daquela mulher lhes daria o que queriam. Imaginavam que ela era forte, mas a ideia não era derrotá-la. Apenas queriam acertar-lhe alguns golpes e arrancar-lhe um pouco de sangue. Os tolos gananciosos não faziam a menor ideia do que estavam enfrentando. O primeiro cavaleiro chegou, apontando uma lança para Nephi. Ela se posicionou e aguardou. Quando a ponta metálica estava próxima de atingi-la, ela desviou, agarrou o cabo da lança e a puxou, catapultando o homem a uma grande altura. O infeliz fez um movimento de arco e caiu adiante. Nephi arremessou a lança entre os dois próximos cavaleiros, atingindo o terceiro. A lança lhe varou o corpo, se perdendo na distância, enquanto o soldado desabava do cavalo. Os dois homens à frente, na carreira, deram simultaneamente golpes com suas espadas, mas Nephi rolou para o lado. Quando se levantou deu de cara com um outro cavaleiro. Com os dedos em forma de garra deu um forte golpe, que arrancou a cabeça do cavalo. O cavaleiro tombou aos pés dela e, quando se levantou rapidamente, o soco que Nephi deu, fez seu braço varar o peito do homem e sair nas costas. Ele desabou sem um único gemido. Os outros dois cavaleiros restantes, percebendo o perigo, passaram ao largo, indo se juntar aos demais. Eles confabularam entre si, mas antes que tomassem qualquer atitude, Nephi segurou o cavalo decapitado pela pata traseira, girou o corpo dele e o arremessou contra o grupo. Os quatro caíram de suas montarias, um já morto. Agora em três e feridos, resolveram atacar abertamente, brandindo suas espadas. Dois cercaram Nephi. Um estocou. Ela se desviou, agarrou o pulso do homem e puxou, arrancando seu braço que, ainda segurando a espada, ela usou para enfiar no pescoço do outro. Girou e, com um golpe, arrancou a cabeça do que tinha tido o braço arrancado. Ela se virou com os dentes arreganhados para o único sobrevivente. O homem largou a espada e correu. Conseguiu alcançar um dos cavalos e saiu em disparada. Nephi escolheu uma pedra no chão, fez pontaria e a jogou. O projetil estraçalhou o crânio do cavaleiro, que desabou mais adiante. Ela seguiu em direção a Meggido e encontrou o primeiro atacante, aquele que tinha sido catapultado, se arrastando com as pernas quebradas. Ele ergueu os olhos para ela e pediu: — Piedade! Nephi ergueu o pé e o pisou nas costas, arrebentando sua coluna vertebral e sua caixa torácica. Logo à frente encontrou John: — Você está bem? — e vendo-a coberta de sangue — Se feriu? — Não. Eu bem. Seguiram então pela trilha que levava para dentro da cidade abandonada. Vagaram pelas ruas poeirentas e silenciosas, vendo os restos de construções desgastados pelo tempo. John achou que o nome Armagedom era adequado, pois era daquele jeito que ele imaginava que ficaria o mundo após a batalha final entre o bem e o mal. Um brilho adiante chamou a atenção deles. Amarraram os cavalos e foram até uma pilastra. O brilho era de uma moeda romana que refulgia ao Sol. — Isto fazia parte de seu tesouro, Nephi? Ela não teve tempo de responder. O chão sob seus pés desabou e eles caíram em uma rampa descendente de pedra e deslizaram por ela, para as entranhas da cidade. A rampa acabou e eles despencaram no vazio. Nephi, com agilidade, girou no ar e puxou John para si, colocando seu corpo sob o dele. O impacto no solo foi forte e, mesmo protegido, o homem desmaiou. — John! John! — gritou Nephi. — Finalmente você veio. Achei que teria que esperar mais alguns séculos. Como uma leoa, Nephi se pôs em pé e de guarda. Mais adiante, uma mulher, uma velha de idade indefinida, a observava, apoiada em um cajado mais alto que ela. Era de baixa estatura e seu corpo, carcomido pelo tempo, dava a impressão que fora bem robusto. Tinha o crânio alongado e baixo na frente, as sobrancelhas eram proeminentes, o nariz era grande e a mandíbula era puxada para a frente. Os cabelos estavam brancos, mas ainda era possível ver que tinham sido vermelhos. Os olhos eram verdes. Verdes luminosos! “Nephilim”, pensou Nephi e atacou. Com uma agilidade surpreendente, a velha girou o cajado e acertou, com a ponta nodosa, a têmpora da garota, que caiu atordoada. Mesmo cambaleante, ela se levantou e ia atacar novamente, quando a velha disse: — Pare, Akésha! Nephi estacou. Aquele nome lhe trouxe um turbilhão de pensamentos e sentimentos desconexos. Cerrando os dentes, ela respondeu: —Não Akésha! Nephi! A velha recolheu o bastão e voltou a se apoiar nele, observando a garota por um tempo: — Nephi? — disse por fim. — Quem lhe deu este nome ridículo? Voltou a apontar o cajado para a garota: — Você é Akésha! Filha de Mizaenel, príncipe dos Elohins! Assim como eu! Ela voltou a se apoiar no cajado, diante do olhar abismado de Nephi. — Sou Tula — informou a velha. — E faz muito tempo que estou procurando você, irmãzinha.