Este capítulo analisa como a discriminação contra pessoas LGBTQIA+ desafia os princípios constitucionais de igualdade e liberdade no Brasil, com foco especial na interseção da homofobia em questões de gênero e cultura. Inicialmente, serão exploradas as conexões entre homofobia, gênero e cultura na sociedade brasileira, ressaltando como os preconceitos e estereótipos contribuem para a discriminação e a violência contra essa comunidade.
Em seguida, serão abordadas as leis brasileiras que protegem os direitos LGBTQIA+, destacando tanto os progressos alcançados quanto as lacunas ainda existentes. Por último, é examinado o tema das reclamações constitucionais, detalhando os mecanismos pelos quais os indivíduos podem buscar reparação legal por violações de seus direitos fundamentais, com uma reflexão sobre a eficácia dessas ferramentas na prática.
Entre os diversos problemas sociais ainda presentes na sociedade brasileira, bem como a desigualdade social e econômica, o analfabetismo, a violência generalizada e os escândalos de corrupção, a homofobia se destaca pela sua persistência e crueldade, violando, na maioria das vezes, a dignidade humana e o respeito à intimidade dos seres humanos.
A homofobia, a transfobia e o machismo, embora originados de uma mesma raiz de heteronormatividade e patriarcado, persistem como problemas sociais distintos, evidenciando a necessidade de abordagens legislativas e judiciais mais ativas para enfrentá-los.
A discussão sobre os direitos LGBTQIA+ requer uma análise dos papéis de gênero na sociedade. A história é marcada por divisões de classe, raça e gênero, que resultaram em opressão e violência sistemáticas. A compreensão de que raça e gênero são construções sociais é crucial, assim como observado e reiterado por Marx e Beauvoir.
Falar sobre cultura é adentrar no campo da representatividade, uma questão crucial na formação da subjetividade. A representatividade é fundamental porque amplia os horizontes, evidenciando que existem alternativas. Quando um indivíduo cresce em um ambiente com horizontes limitados, a representatividade se torna a chave para descobrir que ele também pode alcançar outros lugares.
A frase do filósofo Aristóteles, “A arte imita a vida”[1], ressalta a ideia de que a arte reflete na vivência dos indivíduos, e as representações encontradas nas expressões artísticas e culturais são reflexos da vida. Porém, na Inglaterra Vitoriana, o intelectual Oscar Wilde inverte essa frase ao afirmar que, na verdade, “A vida imita a arte”[2]. Isso porque, ao ser constantemente exposta a uma determinada cultura, a sociedade tende, mesmo que de forma inconsciente, a imitá-la.
O senso comum conservador frequentemente aduz a ideia de que “homem é quem nasce XY e mulher é XX”, baseando-se em características genéticas. No entanto, é importante ressaltar que informações genéticas não determinam padrões de vestuário, comportamento ou até mesmo orientação sexual.
Um conceito contemporâneo relevante é o da masculinidade tóxica, que se recusa a reconhecer suas falhas e por diversas vezes é incompatível com outros sistemas de identidade. Historicamente, a masculinidade tem sido associada à violência, criando uma imagem estereotipada do homem como um ser agressivo.
Rudolf Laban, um dos primeiros teóricos a abordar essa questão, observou o comportamento animal na infância e sugeriu que os seres humanos também são socializados desde cedo para desempenhar papéis específicos na vida adulta. Isso é evidenciado pela forma como brinquedos são designados e pelos comportamentos impostos pelos pais desde a infância, contribuindo para a construção da identidade de gênero.
A masculinidade é marcada por restrições e proibições, exigindo que os homens se comportem de maneiras específicas, muitas vezes diferentes das impostas às mulheres. O documentário The Mask You Live In (2015), explora essas questões por meio de relatos de homens sobre suas experiências em casa e com amigos, oferecendo uma reflexão sobre as pressões sociais e culturais que moldam a masculinidade na sociedade atual.
Na era colonial, os homens que chegavam nas colônias ocupavam a base da pirâmide social, muitas vezes sendo trabalhadores rurais e/ou urbanos, pertencentes a uma classe sem instrução formal. No entanto, o ideal masculino da época colonial já não existe mais na Europa há muito tempo. Hoje, para um brasileiro, é difícil imaginar um italiano se depilando, usando cremes ou se preocupando com a cor de suas roupas ao sair de casa. Essa mudança de perspectiva foi amplamente estudada pela socióloga Raewyn Connell, uma mulher trans, que dedicou sua vida aos estudos de gênero e aos privilégios associados à masculinidade.
O relatório apresentado em 2019 pela ONG Grupo Gay da Bahia (GGB) revela uma estatística alarmante: uma morte provocada por homofobia ocorre no Brasil a cada 23 horas, conforme matéria publicada pelo veículo de notícias G1 (ARCOVERDE; SOUZA, 2019). Além disso, entre os anos de 2008 e 2016, um período de oito anos, pelo menos 868 travestis e transsexuais foram assassinados no Brasil, conforme estudo divulgado pela ONG Transgender Europe (TGEu), como reportado pelo Correio Braziliense (CUNHA, 2017). Esses números são um triste reflexo da realidade do país, corroborando relatórios nacionais e internacionais que apontam o Brasil como um dos países mais homofóbicos e transfóbicos do mundo, devido ao alto número de crimes motivados pelo preconceito. Essa situação evidencia a urgência de medidas eficazes para combater a discriminação e garantir a segurança e os direitos das pessoas LGBTQIA+.
É perturbador que, ainda hoje, um assunto tão íntimo e natural como a identidade de gênero seja motivo de crimes hediondos, como estupro corretivo e homicídio, como evidenciam os relatórios mencionados. Além disso, os dados reportados sofrem com duas lacunas preocupantes: a primeira é a questão das "cifras negras", que são crimes não contabilizados devido à falta de informação e comunicação; a segunda refere-se às inúmeras outras formas de violência perpetradas, que, embora não resultem em homicídio, são igualmente degradantes e deixam sequelas irreparáveis. Assim, fica claro que o problema da transfobia é muito maior do que o conhecimento atualmente disponível.
Portanto, este estudo possui relevância tanto social quanto acadêmica, pois, reconhecer o progresso das sociedades humanas inclui a capacidade de estender o conceito de humanidade à todos os corpos, uma vez que os seres humanos são complexos e diversos em suas identidades.
A busca por uma sociedade livre de preconceitos não é apenas uma aspiração ética, moral ou legal, mas também um dos pilares fundamentais da Constituição Federal brasileira. Esse princípio transcende qualquer interpretação meramente legalista ou infraconstitucional, representando um compromisso profundo com a igualdade e a justiça social.
Nossa Carta Magna estabelece como um dos objetivos primordiais do Estado brasileiro a promoção do bem-estar de todos os cidadãos, sem distinção de origem, raça, gênero, idade ou qualquer outra forma de discriminação. Essa disposição constitucional não apenas reflete nossos valores fundamentais, mas também orienta nossas políticas públicas e nossas ações como sociedade, observe o que diz o artigo 3º: “Art. 3º Constituem objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil: I - Construir uma sociedade livre, justa e solidária; IV - Promover o bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação.”[3].
Assim, a luta contra o preconceito e a discriminação não é apenas uma questão moral, mas também um compromisso legal e político. É um imperativo ético assegurar que todos os indivíduos sejam tratados com dignidade e respeito, independentemente de sua identidade ou características pessoais.
Portanto, a busca por uma sociedade inclusiva e igualitária deve ser vista como um objetivo fundamental de nosso país. Isso implica não apenas em promover a diversidade e a tolerância, mas também em combater ativamente qualquer forma de discriminação e exclusão. Somente assim poderemos construir uma sociedade verdadeiramente justa e democrática, onde todos tenham oportunidades iguais de realização e felicidade.
Ao longo da evolução histórica e social da humanidade, temos testemunhado a luta constante pela aceitação e respeito à diversidade de orientações sexuais e identidades de gênero, representadas pela comunidade LGBTQIA+ e outras formas de existência que desafiam normas tradicionais. Essa jornada tem sido marcada por uma verdadeira revolução cultural, onde indivíduos têm buscado construir um ambiente mais saudável e tolerante para todos os membros da sociedade.
Essa luta não se restringe apenas à comunidade LGBTQIA+, mas se estende a todas as causas que combatem a discriminação e o preconceito contra aqueles considerados diferentes ou inferiores pela sociedade dominante. É parte de um movimento mais amplo de promoção da igualdade e da justiça social, que busca reconhecer e valorizar a diversidade como um aspecto fundamental da experiência humana.
Nesse contexto, é importante observar as conquistas alcançadas ao longo do tempo, bem como os desafios que ainda persistem. A evolução da moralidade e da cultura humana tem sido marcada por avanços significativos na promoção dos direitos e da dignidade de todos os indivíduos, mas também por retrocessos e resistências que evidenciam a necessidade contínua de vigilância e engajamento na luta por uma sociedade mais inclusiva e justa.
Portanto, ao reconhecermos o papel fundamental da luta e evolução histórica das causas LGBTQIA+ e similares, também reconhecemos a importância de continuar avançando na promoção dos direitos humanos e na construção de um mundo onde todas as pessoas possam viver livremente e com igualdade de oportunidades:
Do mesmo modo que há alguns anos toleravam-se piadas infames contra negros ou judeus e, agora, estas são vistas, no mínimo, como sinônimo de deselegância, senão de profundo desrespeito ou, inclusive, sintoma de racismo, o mesmo deve ocorrer com as anedotas que retratam, de maneira caricata e inferiorizada, os homossexuais (ESTEFAM, 2016, p. 113).
Destacada a evolução, ou revolução, cultural quanto ao combate à discriminação, é de se esperar, pelos objetivos constitucionalmente traçados no ordenamento jurídico brasileiro, que medidas progressistas e protetivas sejam tomadas para que os que não acompanharam a referida evolução e permaneceram em seu estado de violência e ignorância sejam cada vez mais coibidos em seus atos nefastos, garantindo aos marginalizados uma existência cada vez mais digna, segura e humanizada.
Todavia, não é esse o progresso legislativo. Até o momento, mesmo com os dados alarmantes constantemente apresentados e toda a militância realizada por ONGs, coletivos, partidos políticos e manifestações, o Poder Legislativo brasileiro foi negligente e insensível na produção de medidas eficazes e bem orientadas de luta contra a homofobia.
Não cabe o entendimento de que o Poder Judiciário estaria legislando, portanto, usurpando competência do Legislativo, nem o de que a medida seria incompatível com a reserva legal e com os princípios e procedimentos legalistas do Direito Penal, pois a própria razão de ser deste é pautada na proteção dos bens jurídicos fundamentais, em análise valorativa do que é caro para a sociedade e ético em sua aplicação, conforme expõe o renomado jurista Cezar Roberto Bitencourt:
O Direito Penal também é valorativo. Sua atuação está pautada não em regras aritméticas sobre o que é certo ou errado, mas, sim, a partir de uma escala de valores consolidados pelo ordenamento jurídico que integra, os quais, por sua vez, são levados à prática por meio de critérios e princípios jurídicos que são próprios do Direito Penal. Nesse sentido, o Direito Penal estabelece as suas próprias normas, que dispõe em escala hierárquica, de tal forma que não resultem incompatíveis com as normas de natureza constitucional e supranacional. O Direito Penal tem igualmente caráter finalista, na medida em que visa à proteção dos bens jurídicos fundamentais (BITENCOURT, 2021, p. 41).
Ainda assim, somado ao argumento de usurpação de competências e de desrespeito ao princípio da reserva legal, resta o princípio penal de que nullum crimen, nulla poena, sine praevia lege (não há crime sem lei anterior que o defina, em tradução livre), posto que, não sendo referido enquadramento realizado por produção legislativa, este não se encontraria tipificado conforme determina o ordenamento jurídico e assim, inválido a medida.
Para, então, a compreensão do que foi realizado pelo Supremo Tribunal Federal neste ato histórico, é necessário consultar as bases do Direito em sua essência. O renomado jurista e escritor brasileiro Miguel Reale (2002) desenvolveu a atualmente hegemônica Teoria da Tridimensionalidade do Direito, que consiste no entendimento de que o Direito existe em três dimensões distintas e complementares, três elementos da equação cujo produto final é o efeito jurídico, a saber: a) o fato, circunstância material ocorrida no plano real; b) a norma, a tipificação ou dispositivo legal, lei; c) o valor, isto é, o princípio axiológico e valorativo que a sociedade humana e a ética atribuem àquele fato.
O entendimento positivista baseado apenas no respeito ao procedimento legislativo e aos princípios processuais não encontram valor real na sociedade que objetiva o entendimento ético de seus fatos, objetos e conflitos.
Como é facultado aos Tribunais, deve-se sempre analisar as circunstâncias materiais do caso concreto e, se um bem jurídico fundamental, se um sentido princípio lógico estiver ferido pelo cumprimento da letra fria da lei, esta deve ser ignorada em prol dos direitos e garantias humanas, posto que fundamentais e acima de quaisquer outras disposições. Isso, pois, conforme ensina Miguel Reale em sua teoria, a linearidade “fato-norma” é puramente positivista e burocrática. O que dá real valor à manifestação do Direito na subsunção do fato à norma, ou à flexibilização desta, é o valor, o princípio, o bem jurídico fundamental.
De acordo com Estefam (2016, p. 272), o propósito da teoria funcionalista da culpabilidade, cabe lembrar que, segundo Roxin, não se deve admitir que a pena esteja vinculada unicamente à reprovabilidade do fato. Ademais, verifica-se se sua imposição atenderá a alguma finalidade preventiva, isso porque, segundo propõe, a finalidade do Direito Penal não é outra, senão a proteção subsidiária de bens jurídicos, meta que se cumpre, nomeadamente, por meio da prevenção.
Haja vista, por fim, a observação do autor supracitado, é importante ainda destacar que a instituição de punição específica, como o caso analisado, cumpre uma função social mais importante do que apenas promover a responsabilização do praticante de um crime.
Logo, as estruturas penais, junto de suas técnicas e procedimentos, são importante instrumento do Estado para a manutenção da ordem social e para a devida persecução penal dos infratores das leis do país, coibindo condutas indevidas e entregando um mínimo de justiça para as vítimas de fatos criminosos, evitando que novas vítimas sejam feitas.
Essa reflexão nos leva a compreender que a ideologia de classe, gênero e raça são construções humanas, impostas a grupos minoritários que sofreram severamente com essas imposições. Portanto, conclui-se que a falta de empatia e a persistência do preconceito na sociedade só podem ser combatidas por meio da educação e do diálogo.