A chuva caía fina, quase delicada, mas fria como o toque de dedos fantasmagóricos. Cada gota que tocava minha pele parecia arrancar um pedaço de mim. Meus sentidos estavam em frangalhos, e mesmo assim, ali estava eu, deitada sobre o chão úmido, os pulmões queimando como se a água estivesse dentro de mim. O ar denso, impregnado de uma névoa quase sólida, parecia distorcer o que meus olhos tentavam enxergar e dificultava ainda mais a respiração. Minhas mãos apertaram o chão úmido, uma superfície irregular e pedregosa. O ar cheirava a umidade, como se eu estivesse à beira de um oceano. Eu tentei me mover, mas o corpo parecia fraco, pesado. A dor era constante, latejante, mas não conseguia identificar a origem.
Ao redor, uma paisagem com outras pedras, negras, cobertas com algo parecido com musgo. O céu, encoberto por nuvens pesadas que permitiam uma luz fraca e opressora, como se o próprio ambiente estivesse à beira do colapso. Era impossível saber se eu estava dentro de uma caverna gigantesca ou ao ar livre, porque tudo parecia fechado, sufocante. A sensação de estar afogada, mesmo em terra firme, era real e avassaladora.
De repente, senti algo. Uma presença. Antes que pudesse reagir, uma mão áspera segurou meu rosto e começou a me esbofetear.
— Acorda! — a voz era impaciente, quase zombeteira. — Tá pensando que isso aqui é colônia de férias? Não é conto de fadas, e não vai ser um principezinho que vai te acordar!
Eu abri os olhos e vi uma mulher que parecia uma bruxa velha. Ela estava em cima de mim, me esbofeteando. Eu levantei os braços e comecei a me proteger, me virei com força, tentei me desvencilhar, até cair no chão. Eu estava em cima de uma espécie de cama, parecida com um colchão de água.
— Sua desgraçada! — gritei, minha voz ecoando pelo lugar enquanto sentia uma raiva súbita tomar conta de mim. Pulei em cima dela com uma força que nem sabia possuir, mas logo outras mulheres apareceram e me seguraram, arrancando-me de cima da velha antes que eu pudesse fazer algo.
Ela tinha uma aparência desoladora, seus cabelos eram longos, desgrenhados e de um grisalho opaco, como se tivessem sido expostos por anos à água salgada e ao vento sem qualquer cuidado. As mechas finas e embaraçadas pendiam em tufos desiguais, moldando seu rosto anguloso e cadavérico, onde a pele parecia quase colada aos ossos. Rugas profundas se espalhavam por toda a sua face, formando sulcos que percorriam sua testa, cantos dos olhos e em torno de sua boca fina, como rachaduras num terreno seco e abandonado.
Seus olhos eram de um cinza pálido, quase mortos, mas com um brilho de astúcia que sugeria uma mente afiada por trás de sua decrepitude. As pálpebras caídas e inchadas emolduravam esses olhos, que pareciam enxergar muito além da realidade imediata. O corpo dela era magro e encurvado, os ombros sempre inclinados para a frente, como se carregasse o peso de eras de sofrimento. As mãos eram esqueléticas, com dedos longos e tortuosos, cobertos de veias protuberantes e unhas amareladas, que lembravam garras de algum predador ancestral. Ela vestia um manto esfarrapado e escuro, com bordas desfiadas que se arrastavam pelo chão úmido, mas por baixo, parecia haver uma espécie de proteção de couro, para suas partes, mas bem velha e surrada. A textura do tecido parecia tão antiga quanto ela, gasto e descolorido. Mas apesar de sua aparência frágil e decadente, havia algo ameaçador nela.
Antes que eu pudesse pensar, outra figura se aproximou. Era uma mulher alta, sua pele era de um tom acobreado, reluzente sob a luz fraca, como se tivesse sido constantemente banhada por um sol distante e pálido. Ela tinha traços simétricos e marcantes, com uma beleza que não se mostrava apenas em sua aparência física, mas no modo como se movia e olhava para o mundo ao seu redor. Seu rosto era firme, mas de uma suavidade que transmitia autoridade sem ter um ar de agressividade. Os olhos de Leiva eram de um tom avermelhado, que parecia captar e refletir a luz ao seu redor com uma intensidade quase hipnótica. Eles estavam sempre atentos, analisando cada detalhe ao seu redor, como se enxergassem além do que os outros percebiam.
Transparecia calma, esse seu olhar, mas também uma chama de determinação, como se nada pudesse escapar à sua percepção. Seu cabelo era longo, liso e negro como a noite sem estrelas, caindo em cascata por suas costas até a cintura, onde se confundia com os detalhes intricados de seu traje, que parecia simples, mas funcional, feito de couro escurecido, o vestuário era reforçado nos ombros e nas laterais com hastes que não se podia descrever de que material eram, mas reluziam suavemente, dando-lhe uma aparência de resistência e prontidão para um combate. Cada detalhe em sua vestimenta parecia ter uma função específica, desde os pequenos ganchos presos ao cinto, até as correias que firmavam as ombreiras ao redor de seu torso esguio.
Um tipo de botas altas e firmes em seus pés a preparavam para qualquer terreno, e suas mãos pareciam ter a destreza de alguém que manejava armas com a mesma facilidade com que liderava pessoas. Apesar desse tipo de armadura e da aparência austera, havia um toque de graça em como Leiva se movia. Ela possuía uma postura ereta, ombros sempre firmes, e cada passo seu dava a impressão de ser calculado, como se fosse uma dança entre o terreno e sua mente.
— Krata, já chega — disse, com a voz firme, mas sem agressividade. — Ela ainda está assimilando tudo.
A velha bufou, mas se acalmou. Meus olhos tentavam se focar nessa que parecia ser a líder. Ela se ajoelhou ao meu lado e me ofereceu um copo que parecia feito de cristal, com uma forma arredondada. A bebida parecia água, reluzia no recipiente, cristalina e convidativa.
— Beba — ela ordenou, sua voz calma, quase maternal. — Isso vai ajudar a recuperar suas forças e clarear sua mente.
O efeito foi imediato, um alívio que tomou conta de mim. A dor e o medo começaram a desaparecer, dando lugar a uma estranha euforia. Meus lábios se curvaram num sorriso bobo, e por um momento, tudo parecia estar bem.
— Ei! Preste atenção, não apague! — a voz da mulher cortou minha breve felicidade. — O primeiro gole de água destilada é sempre o mais difícil. Se você deixar sua mente se fechar, vai ser difícil sair. E você não quer ficar presa dentro de si mesma...
Eu mal conseguia entender o que ela estava dizendo. Minha cabeça girava, e o sorriso tolo ainda permanecia em meu rosto. Ela era linda, aquela mulher. Seus olhos fixos em mim, falando algo sobre a água, mas minha mente já começava a vagar completamente. Parecia que eu estava sob o efeito de algum entorpecente pesado.
— Leiva, bate nela, sua lesada! — A velha bruxa gritou de algum lugar.
— Não, Krata — respondeu a mulher à minha frente, com a voz firme e decidida. — Você sabe que existem dois jeitos de trazer alguém de volta. E bater não é o meu estilo.
A velha mesmo contrariada, mas não insistiu. Leiva, que entendi ser seu nome, se inclinou ainda mais para mim, segurando minha cabeça entre as mãos, e me olhou profundamente nos olhos.
Então, sem dizer uma palavra, ela me beijou. Um beijo intenso, carregado de uma ternura que me tomou de surpresa. Minha mente, que antes parecia estar se afundando num mar de incertezas, foi subitamente puxada de volta à realidade. Quando ela finalmente parou, eu estava ofegante, mas consciente. Mais consciente do que antes.
— Onde estou? — perguntei, minha voz quase não saiu, trêmula.
Leiva se levantou, cruzando os braços.
— Aqui é o Planeta Neon. O mundo obscuro das águas. Você foi trazida para cá após morrer.
A palavra ecoou em minha cabeça. Morta? Como? Eu não conseguia lembrar. O sentimento de perda era profundo, mas as memórias estavam fragmentadas, como se uma parte de mim tivesse sido arrancada.
— Não pode ser... — balbuciei, a confusão crescendo. — Como eu morri?
Krata gargalhou ao fundo, mas Leiva apenas suspirou.
— As respostas virão com o tempo. Por agora, você precisa entender que a vida aqui em Neon é diferente. A água é nossa essência, nosso guia. Mas também é nossa prisão.
— E agora? — perguntei, sem forças para continuar questionando a estranheza de tudo.
Leiva se aproximou mais uma vez, inclinando-se para me olhar nos olhos. — Agora, você precisa se levantar e seguir em frente. Temos muito o que fazer.
Ela me ofereceu a mão, e com dificuldade, aceitei sua ajuda. O mundo ao meu redor parecia mais real agora, as sombras se dissipando, revelando melhor o cenário ao nosso redor. Era um campo desolado, cercado por montanhas ao longe, e um mar negro e silencioso se estendia até onde a vista alcançava.
Antes que eu pudesse perguntar mais, Krata, resmungou algo, e Leiva se virou rapidamente para mim, como se tivesse lembrado de algo importante.
— E então, qual é o seu nome?
Pensei por um momento, a resposta perdida em algum canto da minha mente. Mas então, de repente, as palavras vieram, quase automáticas.
— Emma... Meu nome é Emma.
Leiva sorriu levemente, mas seus olhos ainda estavam cheios de mistério.
— Muito bem, Emma. Seja bem-vinda a Neon.
— Mas por que me beijou? — Ainda estava muito confusa e parecendo nem me importar com o fato de ter sido avisada sobre uma nova vida.
— A água destilada aqui é a essência desse mundo. Água pura! Ela é um estimulante para a mente, nos mantém lúcidas quando o desespero toma conta. Mas ela também pode ser letal, um veneno que nos prende para sempre em nossa própria mente, se você se perde, não consegue mais voltar a não ser que alguém a traga de volta, com fortes tapas na cabeça ou com um beijo intenso.
— Foi uma sensação muito estranha... Acho que preciso dizer... Obrigada.
— Bom, talvez seja cedo pra agradecer alguém, isso aqui é um inferno, não posso te garantir que não fizeram nada com você desacordada, nem que eu possa te ajudar no futuro, ou que eu queira.
Eu não pude entender se sua fala foi irônica, se queria me assustar ou se realmente ela disse aquilo sério. De todo modo, ela apresentou cada uma do grupo. Ela, Leiva, era a líder. A velha, que eu já tinha ouvido o nome, Krata. Anna era a mais magra, de pele escura e a única de olhos castanhos, quase mel. Shanera, a loira mais alta e de pele negra, Fanare, a loira mais baixa, Benita, a mais forte, musculosa e Kinerta, a ruiva, de olhos vermelhos.
Foi então que fez-se um som ensurdecedor que vinha de longe.
— Todas preparadas! — Leiva gritou e imediatamente todas as mulheres que estavam ali levantaram-se, formando um círculo. Pelos trajes e lanças que carregavam eu as descreveria como guerreiras, algo como amazonas da antiguidade. Eu não sabia o que fazer e fiquei no meio delas.
Naquele momento, todo ar a nossa volta se transformou em água instantaneamente. As guerreiras continuaram paradas do mesmo jeito, eu sentia como se me afogasse novamente, mas dessa vez a angústia e o medo eram muito maiores. Todas as mulheres começaram a mexer os braços com movimentos circulares. Era como se estivessem tirando a água da frente e trazendo o ar de volta. Até que, enfim, toda a água se dissipou e o ar retornou, permitindo que pudéssemos voltar a respirar. Cai no chão, com a pressão do ar voltando aos meus pulmões. Uma mulher surgiu diante de nós, saindo daquela tormenta. Parecia a personificação do poder e da elegância. Sua estatura era alta, com um corpo esguio e bem proporcionado, transmitindo uma graça natural.. Seus movimentos eram lentos e calculados, como os de alguém que não tinha pressa, pois o tempo parecia se curvar à sua vontade. Ela possuía traços finos e delicados, com uma pele alva como mármore, sem imperfeições, como se o tempo não a afetasse. Seus olhos eram de um azul gelado, quase translúcidos, penetrantes e inumanos, capazes de sondar a alma de quem cruzasse seu olhar. Seus cabelos eram longos, lisos e de um tom escuro, tão preto que parecia absorver a luz ao seu redor. Eles desciam até quase a cintura, formando ondas suaves. O contraste entre seu cabelo e a pele clara aumentava ainda mais sua aparência etérea, como se ela fosse esculpida em sombras e luz.
Vestia um manto feito de um tecido azul escuro, com um brilho sutil. O material parecia fluir como água ao seu redor, movendo-se de forma quase inexplicável, moldando-se ao seu corpo com uma perfeição impossível para qualquer tecido comum. Em alguns momentos, o azul profundo do manto dava lugar a reflexos prateados, como se houvesse correntezas ocultas fluindo por ele. Ela também vestia uma armadura ornamentada, mas com um design minimalista. As peças eram forjadas em uma espécie de metal escuro, quase negro, com detalhes em verde-esmeralda que brilhavam à luz. Em sua mão, segurava um cetro longo e esguio, de um branco brilhante e ornamentado com uma espécie de pedra verde translúcida na ponta, que parecia pulsar levemente, como se tivesse vida própria.
— Ora, ora, ora, vocês estão melhorando, guerreiras da água.
A essa altura, todas já estavam de joelhos e não olhavam para a recém-chegada. Eu continuei no chão onde estava, cada vez mais perplexa com tudo que acontecia.
— Hoje eu acordei de bom humor e resolvi vir visitá-las. — Ela vestia uma roupa imponente, uma mistura entre um traje de gala e um uniforme de proteção, num tom de azul noite que se confundia com as nuvens negras, mas em alguns momentos refletia a luz e brilhava. Ela carregava um cetro com uma pedra verde em sua ponta e, antes que alguém dissesse alguma coisa, ficava claro pra mim que ela deveria ser alguém muito importante — Na verdade, Leiva, eu vim propor uma troca. Esse, portanto, era o nome daquela que claramente era a líder daquele grupo. Ela apenas olhou para a rainha.
— Pode se levantar... — A guerreira fez como lhe foi ordenado.
— Minha rainha, sabe que nunca me oponho a qualquer coisa que me peça.
— Então, deve saber também que apesar de muitos me acharem maligna, eu sou muito justa e nunca peço nada sem oferecer algo em troca — disse a Rainha com um falso sorriso no rosto.
— Sim, minha rainha — respondeu Leiva com uma cara de poucos amigos.
— Eu vim trazer a boa nova da morte para uma de vocês. — Todas sorriram e vibraram, se mantendo paradas no mesmo lugar, tentando se conter, mas claramente ficaram felizes com a notícia. Como alguém poderia vibrar com o aviso de morte?
— Oh, Senhora das Águas que nos abençoa, o que preciso fazer para compensar tal generosidade? — Realmente a cena parecia bem diferente aos meus olhos.
— Dessa vez, Leiva, é algo muito simples. Eu quero a eternidade daquela mulher — disse a Rainha apontando para mim. Fiquei aterrorizada, mais ainda do que já estava depois de tudo aquilo.
Leiva pareceu olhar muito surpresa, seu semblante era de alguém que tinha recebido a missão de matar o Leão da Nemeia apenas com as mãos.
— Minha Rainha, se eu puder pedir algo, gostaria de conversar com as guerreiras para decidirmos quem será contemplada. — As guerreiras olharam espantadas e a Rainha deu de ombros.
— Muito bem, sei que essa decisão poderia ser exclusivamente sua, ou mesmo minha..., mas farei como prefere, como eu disse, acordei de muito bom humor. — A Rainha riu de um jeito um tanto maquiavélico, mas um pouco estranho, quase engasgada. — Vou recuperar algumas algas mágicas que escaparam e retornarei para o Castelo, me levem a garota até lá... Sabe, às vezes gostaria de não ser a única que pode pegá-las. Pensando bem, não gostaria não... — E a Rainha saiu mergulhando novamente numa onda que se ergueu no ar para tragá-la.
— O que você está fazendo, Leiva? E se essa mulher muda de ideia? — Anna questionou.
— Anna, já se esqueceu que as "trocas" que a rainha proporciona sempre significam duas vantagens apenas para ela mesma? — Respondeu Leiva, fazendo outra questão de volta.
— Bom, saber negociar com a rainha foi o que lhe permitiu ser nossa líder. O que tem em mente? — Benita perguntou.
— Alguma vez a Rainha pediu uma de nós? Não! E já pensaram que isso significará o Inferno eterno para aquela menina, vivendo aqui ao lado da Rainha, para sempre? — Eu já não estava gostando nada daquela conversa.
— Espere, como assim viver pra sempre? — Era tudo muito difícil de acompanhar.
— Veja, a morte é como um teletransporte da alma, nós só nascemos uma vez e depois disso toda vez que morremos, seguimos algum caminho para algum outro planeta. Nosso corpo é reconstruído a cada morte no auge de nossa vitalidade. Porém esse planeta que estamos é como um inferno, uma espécie de prisão. Não importa como morremos, reaparecemos aqui da mesma forma que estávamos antes de morrer. Somos imortais nessa mesma realidade e não podemos fugir dela. A única forma de sairmos daqui é sendo morta pela Rainha. Por algum motivo ela controla as algas mágicas que podem, mais do que controlar a água, transformar qualquer matéria em líquido, incluindo o ar. E a única morte que não reconstroi nosso corpo nesse planeta é quando ela nos explode, transformando em água. — Leiva explicava e minha boca aberta parecia que ia atingir o chão. Por que não ensinavam isso na escola?
— Mas o que garante a vocês que explodindo seus corpos vocês vão para outro planeta? — Questionei super segura de ter entendido tudo.
— A maioria de nós já morreu mais de uma vez e veio de mais lugares. Aprendemos que a alma não pode ser destruída. Se um corpo é destruído a alma refaz seu corpo em algum lugar. E pelas experiências que já trocamos, sofrer em uma vida e ser brutalmente assassinada é um passaporte certo para um lugar muito bom — Leiva terminou de explicar.
— Ok, entendi... eiiiiiiiii, então o que está em jogo aqui é eu permanecer pra sempre mesmo nesse lugar? Não é modo de dizer? — Agora caiu minha ficha da enrascada que eu estava.
— Exatamente — ela sabia que não tinha escolha.