As chamas tomam tudo, nada resta mais para herdar. As terras que os pais de meus pais conquistaram, por sua serventia ao rei, agora estavam sob jugo do fogo ardente, tão vermelho, tão alto que dançava por cima das mobílias e dos mortos abaixo. Fui o único a escapar, de meus irmãos, pais e servos que viveram dentro daquele castelo, nenhum deles saiu.
Eu ouvia de minha mãe as honras que teria em minha maturidade, as conquistas de meus antepassados ligados àquela terra fértil, rica em frutos e história. Meu bisavô, em sua mocidade, as ganhou como tributo por sua valentia, minha avó as expandiu através de sua intelectualidade, já meu pai… este foi um bruto e sereno, defendeu suas terras dos maus-olhados de seus vizinhos e as lavrou com as mais belas plantas dos mais doces frutos.
Os irmãos que tive eram inúmeros, alguns deixaram a nobreza em prol de coisas maiores, o meu irmão mais velho deu sua coroa para meu segundo irmão e partiu para uma vida modesta como um sacerdote. Meu irmão mais novo cedeu às tentações da aventura e partiu em inúmeras viagens em busca de novidades. Por fim, minha irmã, doce e séria em perfeita medida, foi a viver em outro feudo, casada com um cavaleiro.
Dos que restaram, eu era o do meio, não era o mais forte, tampouco o mais encantador, eu era apenas um puro amante das artes, prosperei na pintura e nos cânticos. Me chamaram para viver como um trovador, um bardo e levar a arte para o mundo, mas optei por viver ao lado de minha família, optei por me manter na terra em que nasci. Eu era um Siurg e este nome eu deveria honrar, fui mentor de meus caçulas e conselheiro de meus veteranos, para os novos contava histórias e aos velhos charadas.
Tinha tudo a meu favor, poderia ser um glutão, mas por esta vida não optei, preferi o caminho mais tranquilo e regrado. Em minha vida, pude presenciar o confronto dos meus azares e de minha sorte, o ducado que ajudei a reger viveu entre trágicas perdas contrastando com os ganhos das amizades. A fome afligiu nos tempos de crise, porém, mesmo nessas calamidades, vi a ajuda surgir dos pontos que jamais imaginei que viria. Mesmo nos momentos de glória, tinha algo a se resolver, um desafio para superar, um obstáculo a ser desviado.
Fui feliz, mesmo sob penitência do azar, pude ver minhas obras colorirem os templos e as casas de meus vassalos, às vezes comprados e outras como presentes. Meu nome havia chegado a todos os nobres, de forma singela, às vezes tão ínfima que só os atentos podiam identificar. Eram tempos de paz, mesmo meus parentes ligados à honra da batalha não a tiveram a praticar, as riquezas que emergiam pelos brotar do trigo e pelas mãos dos mineradores de prata não eram mais motivo para o delírio da batalha. As terras Vakarinas eram as mais ricas, caídas em um luxo incessante.
Em pouco tempo, a riqueza trouxe o tédio a muitos e desse tédio veio a perversão, a moral que antes forjou a cavalaria e a nobreza de meus entes acabou. Vi os jovens em minha própria casa sucumbirem para o Libido e meus velhos irmãos serem tomados pela gula, todos os dias eram banquetes, festas e festividades. O castelo de meu avô, antes forjado para defender nossa terra, agora era similar a uma adega. As servas leais foram trocadas por moças belas, os leais guardas e assistentes de meu pai foram tirados de seus postos e substituídos por bajuladores.
Meus avisos agora eram ignorados, meus irmãos, que antes me viam como um pilar de sabedoria e cordialidade, agora me viam com repulsa, como se meu moralismo fosse somente uma forma de insultá-los ou de submetê-los a minhas vontades. Vi-me isolado dentro de minha própria casa, os únicos que se mantinham sãos eram aqueles que haviam saído dos aposentos e vivido sob outras regras. A morte de meus pais foi a declaração da depravação do feudo que tanto quis proteger, que tanto amei por sua história.
A biblioteca era um dos poucos pontos que ainda dominava, assim como a galeria. Lá eu tinha meu fiel servo, que foi fiel à minha mãe e meu pai. Ele era velho, mas mantinha sua virilidade, mesmo em seus últimos dias se manteve a meu lado. Para mim, a morte mais devastadora após o último respirar de minha amada mãe, depois de seu fim, eu estava agora só, mesmo sendo leal à causa de minha realeza, honrando o nome que portava e prestando toda a ajuda a minha família… nada adiantou.
Nessa noite, eu me ausentei do castelo, cansado do barulho incessante do comodismo de meus irmãos. Eu apenas contemplei os lagos cristalinos cercado por um verdejante bosque silvestre e as árvores frutíferas da casa dos campesinos, estas verdadeiras pinturas, aonde os frutos e as flores acrescentavam em cor. O solo batido, úmido pelas chuvas do outono guardava a marca de meus passos, enquanto o som dos animais reverberava no silencio daquele doce fim de dia.
Minha noite foi apenas uma meditação, um descansar de meu árduo serviço inútil. Tive vontade de chorar, mas não podia mostrar fraqueza, apenas me sobrou admirar o castelo, a demonstração da glória de um passado distante, um passado forjado por aqueles que deram origem aos Siurg.
Mas agora… nada restou desse passado, na mesma noite que sai, o fogo chegou, destrutivo e ardente, o som das festas e a imprudência dos novos servos fizeram-no se alastrar. Não sabia a origem daquela chama, tampouco o como ela pode alcançar os céus, só sabia que ela trazia o fim. O som do estralar das toras que fazia a sustentação era possível de se ouvir de longe, os portões sucumbiram às chamas, as torres que antes faziam a vigilância caíam sobre o castelo, rompendo-o, alguns pularam por suas vidas, morrendo na queda e outros gritaram enquanto o fogo os consumia.
A única coisa que pude fazer era contemplar aquele horror, a chama, rubra, irradiante, devorava tudo e todos. As belas cores das muralhas corroíam-se, as flamulas de nosso castelo eram transformadas em pó, os escudos de minha família tinham suas belas cores e símbolos trocados pela cor negra do carvão e o cinza do pó que caia sobre elas. Aquilo era o fim de minha família, o fim da decadência.
Eu agora estava realmente só, um nobre sem um castelo, um duque com as cinzas de uma glória passada. Em meu ser apenas portava um nome, um legado que a pouco se perdeu. Eu era o último herdeiro dos Siurgs. Para mim, aquilo não era apenas um azar, nem mesmo a punição dos descasos de meus irmãos… mas sim um desafio, um desafio quase divino para meu ser, o desafio de reerguer a glória, a virtude e o legado de meus avós e de meus pais.
Era apenas eu, somente eu… que resolveria aquilo, o fogo… em sua extensão e calor, era o sinal. O sinal de que meu desafio estava apenas começando…