A água, que é símbolo da vida, flui implacável tanto nas nossas veias quanto nos rios e oceanos. Ela possui uma dualidade inquietante. Por vezes, traz vida e renova as forças de quem se encontra em desespero, como um oásis que surge do nada em meio a um deserto. Contudo, sob a forma de tempestades furiosas ou oceanos traiçoeiros, a água pode nos arrastar para as profundezas escuras, roubando nosso último suspiro.
Essa dualidade ecoa por todo o universo conhecido. Tudo, desde os átomos que formam nosso corpo até as máquinas mais avançadas, pode ter dois lados: o oxigênio que nos mantém vivos pode se tornar tóxico, e uma bomba atômica, símbolo de poder supremo, tanto pode trazer progresso quanto destruição absoluta.
O que regula essas forças é a implacável lei de ação e reação. A energia que liberamos no mundo, seja ela boa ou má, retorna a nós de formas que muitas vezes não podemos prever. Esta é uma verdade inevitável, um ciclo eterno. O que me assombra, porém, é que não estamos isolados nessas ações. Cada escolha reverbera, afetando outros, como o movimento das ondas no oceano. Mesmo quando seguimos as regras, respeitamos os limites e vivemos de acordo com os preceitos mais aceitos, a ação ou inação de outra pessoa pode nos arrastar para a catástrofe. Isso torna o desespero ainda mais cruel: a falta de controle absoluto sobre nossas vidas.
Esses pensamentos giravam pela minha mente como uma correnteza enquanto eu andava sem rumo pelas ruas da cidade. A paisagem ao meu redor refletia meu estado interior. O céu cinzento e carregado parecia pressionar o mundo abaixo, sufocando o pouco de luz que ousava passar pelas nuvens. O vento, carregando o cheiro forte da maresia, misturava-se ao fedor de gasolina e resíduos deixados nas calçadas e sarjetas. As ruas eram uma selva de concreto, com carros e pedestres se movendo num fluxo apressado e indiferente. Ninguém notava minha presença e eu, perdida em meus pensamentos, pouco me importava.
Minha figura refletia a dor invisível que me consumia. A fome e a sede não eram mais necessidades básicas, mas sim um eco distante, uma dor entorpecida que se confundia com minha apatia. Minhas roupas maltrapilhas pendiam em meu corpo magro, cada fio indicando abandono. Meus olhos, que outrora eram de um azul brilhante e vivo, agora estavam opacos, refletindo o vazio que dominava meu coração. Já não havia mais lágrimas para serem derramadas, nem emoções a serem sentidas. A morte, tão próxima, parecia uma companhia familiar, algo inevitável, aguardando apenas o momento certo.
Conforme meus pés vagavam sem destino, fui conduzida até o centro da cidade, onde prédios imponentes de aço e vidro erguiam-se como guardiões de um mundo que já não fazia sentido para mim. O centro empresarial, um lugar antes vibrante e repleto de vida, agora era apenas uma sombra de sua antiga glória. O brilho intermitente das luzes de uma ambulância perfurava a monotonia da cena ao longe, suas cores vermelhas e azuis refletindo nas janelas dos edifícios.
Eu me aproximei, sentindo uma curiosidade mórbida me puxar. A cena diante de mim era familiar em sua tragédia. Socorristas corriam freneticamente ao redor de um homem idoso, seu corpo frágil estendido em uma maca. Seu terno, que deveria ter sido impecável, estava agora amarrotado e sujo, refletindo o caos ao seu redor. Seu rosto, pálido como cera, parecia à beira da morte, e seus olhos estavam fechados como se já tivesse aceitado seu destino. A máscara de oxigênio cobria-lhe a boca enquanto os paramédicos lutavam desesperadamente para reanimá-lo.
Ao seu lado, um jovem, provavelmente seu filho, estava ajoelhado, segurando sua mão com desespero. O rapaz, de cabelos castanhos e desalinhados, possuía olhos de mel que pareciam já ter carregado algum brilho. Esses olhos, agora vermelhos e inchados de tanto chorar, estavam cheios de um desespero que parecia atravessar a alma. Ele segurava a mão do pai como se tentasse puxá-lo de volta da beira do abismo.
Quando nossos olhares se encontraram, senti algo mexer dentro de mim, um eco distante da compaixão que eu acreditava ter perdido. A intensidade do sofrimento dele contrastava com minha aceitação amarga e, por um breve momento, fui forçada a hesitar. Uma prece silenciosa escapou dos meus lábios: que, se Deus ainda estivesse ouvindo, salvasse aquele homem.
Mas, para mim, não havia mais salvação. A única saída era o mar.
O mar, que já havia levado tudo de mim, aguardava minha chegada uma última vez. A lembrança daquele dia trágico nunca deixou minha mente. Em um instante, a felicidade, que parecia tão real e palpável, foi destruída pela força bruta da natureza.
O dia começara perfeito: o sol brilhando no alto, refletindo suas cores douradas no mar calmo, criando uma superfície cintilante como uma joia líquida. Nós estávamos todos no barco, meus pais, meus irmãos, meu marido e meus filhos. As risadas inocentes das crianças cortavam o ar enquanto o barco deslizava suavemente sobre as águas. Meus filhos, com seus cabelos loiros agitados pela brisa, corriam de um lado para o outro, deslumbrados com o vasto oceano que se estendia até onde os olhos podiam ver. Eu me lembro de cada detalhe, de cada sorriso, de cada olhar de pura alegria e paz.
Porém, como em um pesadelo que se desdobra lentamente, as coisas começaram a mudar. O céu, antes de um azul claro, foi sendo coberto por nuvens negras e densas. Um vento estranho, gelado e cortante, começou a soprar, anunciando algo terrível. Em questão de minutos, a calma se transformou em caos. O mar, antes sereno, começou a se agitar, e ondas cada vez maiores surgiam no horizonte, como monstros antigos despertando de seu sono.
Lembro-me do momento em que olhei para o céu e percebi que não havia mais sol, apenas um manto cinza e ameaçador acima de nós. A embarcação começou a balançar violentamente, jogando-nos de um lado para o outro. O riso das crianças foi substituído por gritos de medo e meu coração disparou em pânico. Tentei segurar meus filhos, abraçá-los com força, protegê-los do que estava por vir, mas o mundo ao nosso redor estava desmoronando.
As ondas gigantescas batiam contra o casco do barco com uma força indescritível, e eu sabia, no fundo, que estávamos à mercê da natureza, que éramos insignificantes diante de sua fúria.
O barco virou com um estrondo ensurdecedor. Lembro-me do som da madeira rachando, do impacto brutal quando fui lançada ao mar e da água gelada que me envolveu como um abraço mortal. Meus olhos se encheram de água salgada, meus ouvidos foram tomados pelo rugido das ondas e, por um momento, tudo o que pude sentir foi o desespero absoluto de uma mãe que perde seus filhos diante de seus olhos.
Tentei desesperadamente alcançá-los, mas as ondas eram implacáveis, separando-nos, empurrando-nos em direções opostas. Eu me afogava não apenas no mar, mas na dor insuportável de vê-los desaparecer. Um a um, meus filhos, meu marido, meus irmãos, todos foram engolidos pelas águas furiosas. Suas mãos, que antes haviam segurado as minhas com tanta confiança e amor, foram arrancadas de mim e, de repente, o mundo inteiro ficou em silêncio.
Fui jogada contra uma rocha, sentindo o impacto cruel em meu corpo, mas a dor física era insignificante diante do vazio devastador que agora me consumia. Quando finalmente fui lançada de volta à praia, estava sozinha. O mar, que havia me tirado tudo, havia poupado apenas a mim, como uma cruel piada do destino.
Agora, de pé na praia deserta, eu sentia o frio da areia sob meus pés, as ondas tímidas quebrando suavemente ao redor de minhas pernas, como se soubessem o que eu estava prestes a fazer. O mar, sempre tão poderoso e impassível, me aguardava, pronto para me levar. Desta vez, eu não lutaria.
Meus pés descalços tocaram a areia fria da praia, o grão fino afundando sob meu peso. A praia estava vazia, as ondas quebrando suavemente na costa, uma sinfonia triste de despedida. O céu continuava carregado, o mar refletindo o cinza profundo das nuvens, como se soubesse da minha intenção. A brisa marítima, gelada e cortante, fazia meu corpo tremer, mas eu não me importava. Era um tremor de antecipação, de finalmente encontrar a paz.
A cada passo que dava, sentindo as ondas avançarem e recuarem ao meu redor, era como se eu sentisse as mãos do meu marido. Ele estava comigo, como sempre esteve, mas agora era apenas uma lembrança. Podia sentir seu toque, como se ele estivesse lá, me segurando, me acariciando, me possuindo com aquela intensidade carinhosa que eu tanto amava.
Ele me fazia tanta falta... O sorriso dele, a maneira como me olhava, como me dava paz com o calor do seu peito, e como me tirava do eixo com seu desejo. Essas lembranças aqueciam meu coração enquanto a água subia ao meu redor, mas não eram suficientes para me deter.
Já não sentia o frio da água, nem percebia que ela chegava ao meu pescoço. As ondas quebravam acima da minha cabeça e eu começava a engasgar. Lembrei dos meus filhos, tão pequenos, brincando na areia, correndo ao nosso redor... Eles eram a verdadeira felicidade, uma alegria pura que não existe mais.
As ondas que os tinham levado agora tentavam me levar também, e eu estava pronta.
A água invadiu meus pulmões e, por um momento, a escuridão me tomou. Quando recuperei a consciência, ouvi gritos. Alguém na praia tentava me alcançar, me salvar. Mas eu não queria ser salva. Tentei afundar mais, ir mais longe. Já não tinha forças para nada. Só queria que a morte viesse rápido, antes que alguém conseguisse evitar.
Finalmente, o breu voltou e, desta vez, não havia mais frio, nem dor, nem som algum. Apenas o silêncio.
Era o fim.