O diagnóstico invisÃvel
POV: Lara Santiago
Ser médica nunca foi uma escolha consciente.
Foi uma espécie de fuga que virou vocação.
Que se transformou em amor rapidamente, sem eu ao menos perceber.
Um caminho longo, caro, cheio de sangue, plantões e cicatrizes emocionais que só a gente reconhece no espelho do banheiro às quatro da manhã depois de um plantão de mais de 48 horas.
Mas eu não estava ali, naquele hospital gigante, frio, de fachada espelhada e corredores estéreis, por causa da minha história.
Mas tudo mudaria, eu ainda só não sabia.
Eu estava ali por sobrevivência. Porque, depois de tudo que aconteceu no antigo hospital, depois de perder minha reputação, minha paz e quase minha licença... tudo o que eu queria era um lugar onde ninguém soubesse quem eu era.
Em que eu também não me reconhecesse.
E o Montenegro Health parecia perfeito pra isso.
Ao menos, até me chamarem naquela tarde para uma reunião "urgente e confidencial".
E meu coração quase sair pela boca.
— Dra. Lara Santiago? — o assistente do andar executivo me abordou no meio do café.
— Sim? — Perguntei, engolindo em seco.
— O diretor solicitou sua presença. Sala 45. É no último andar.
— Agora?
— Agora. — Me respondeu antes de sumir como fumaça da mesma forma que apareceu.
Respirei fundo, deixei o copo de café pela metade e segui pelo elevador de acesso restrito, tentando manter a compostura.
Sem deixar meu corpo mostrar o quanto eu estava amedrontada.
O andar mais alto do hospital parecia uma bolha estéril de silêncio e poder. Nada de pacientes, nada de vozes. Só vidro, aço, e portas que pareciam segurar segredos atrás de cada número.
Quando cheguei à sala indicada, bati duas vezes.
Ninguém respondeu.
A maçaneta estava destrancada. Empurrei devagar.
Com o coração na boca.
A sala era ampla, com janelas de vidro do chão ao teto, cortinas parcialmente fechadas e cheiro de perfume amadeirado no ar, tudo é caro e marcante.
E tudo falava o nome dele. Deixava claro de quem era aquela sala.
E então… ele se virou na cadeira.
Por um segundo, perdi o ar.
Não por medo.
Mas porque aquele era o rosto que eu menos esperava encontrar.
Gael Montenegro.
CEO do hospital.
Ex-cirurgião renomado, agora magnata do setor da saúde.
O todo poderoso.
E... irmão da minha melhor amiga.
O dono dos olhos de quem eu fugi.
Meu corpo inteiro travou.
Ele me olhou como se eu fosse um incômodo que precisava ser arquivado.
— Você é a psiquiatra? — a voz saiu rouca, baixa, cheia de julgamento.
TÃpico de homens na sua posição.
— Você é o CEO que acha que não precisa de ajuda? — rebati, antes que meu bom senso me impedisse.
Silêncio.
Ele ergueu uma sobrancelha, levemente surpreso. Mas se fosse uma pessoa menos treinada que eu não perceberia. Então se recostou na cadeira com aquele maldito ar de superioridade.
Foi nesse momento que o
analisei com calma, como médica, mas também como mulher.
E, por dentro, uma parte de
mim cedeu.
Gael Montenegro era o tipo de homem que assustava e excitava ao mesmo tempo.
Alto.
Devia ter mais de um metro e oitenta e cinco. O rosto angular, com maxilar bem marcado e uma cicatriz fina no lado esquerdo da mandÃbula, discreta, mas impossÃvel de ignorar.
De alguém que era jovem e inconsequente.
Os cabelos negros
estavam cortados rente nas laterais, e mais longos no topo, levemente
desalinhados. A barba curta desenhava o rosto com precisão cirúrgica.
Os olhos... eram escuros. Quase negros. Profundos. Frios. E perigosamente
bonitos. Ele usava uma camisa branca impecável, mangas dobradas até o antebraço
forte, e uma calça de alfaiataria que moldava um corpo absurdamente definido.
Homem de academia, sim. Mas com a elegância de quem não precisa mostrar nada,
porque sabe que basta entrar numa sala pra ser notado.
E como ele era notado.
Minha garganta secou.
Mas mantive a postura.
— Você sabia que a solicitação era pra mim? — perguntei.
— Sabia que seria uma mulher. Não sabia que seria... você. — Respondeu, rÃspido.
O tom de desprezo não passou despercebido.
— Podemos fingir que não nos conhecemos — respondi. — Ou podemos encerrar por aqui e você continua tendo crises de pânico sem saber o porquê.
Ele me lançou um sorriso torto.
— Não estou tendo crise nenhuma.
— Claro. Tremores, suor frio, dor no peito, insônia, irritabilidade... tudo isso é só charme, né? SÃndrome de CEO. Não sou uma principiante, Gael. Você sabe.
Ele cruzou os braços. O
músculo do antebraço se contraiu visivelmente.
— Você costuma diagnosticar
seus pacientes antes de ouvi-los?
— Só os arrogantes. — Respondi, tão arrisca quanto ele.
A tensão entre nós era palpável. Elétrica. Se fosse outro paciente, talvez eu tivesse amenizado o tom. Mas Gael não era qualquer paciente.
Ele era dono de tudo.
E, por algum motivo que ainda não conseguia nomear... eu não queria que ele me visse como qualquer médica.
Eu nunca quis.
Mas também não quis que eu fosse a melhor amiga da irmã mais nova.
Me sentei à frente dele.
Abri minha pasta.
Fiz perguntas.
Ele respondeu com o mÃnimo necessário.
Como se eu posso a paciente, e ele o médico da questão.
Não ao contrário.
Mas eu via.
Via nos olhos cansados, no leve tremor dos dedos, na forma como ele esfregava a têmpora esquerda entre as frases.
Ele estava quebrado. E odiava estar.
Ao final, depois de horas que pareciam dias, fechei o bloco de anotações e o encarei.
— Diagnóstico preliminar: estafa severa, possivelmente burnout.
— Prescrição? — ele debochou.
— Terapia contÃnua. ExercÃcio fÃsico moderado. Redução de carga. E... oito horas de sono por noite.
— Divertido. Alguma solução real?
— Sim. Começar a admitir que seu corpo tem limites. — Respondi, com um sorriso no rosto.
Desafiando-o.
Ele se inclinou pra frente. O perfume dele me envolveu. Como me envolvia quando eu ia na casa dele para ver a Camila. Mas fácil tantos anos que eu não o via. Que o baque parece que ainda foi maior.
— E você vai me curar, doutora?
— Eu não curo ninguém, Dr. Montenegro. Eu apenas aponto o que os outros fingem não ver.
— E o que você está vendo agora?
Olhei diretamente em seus olhos.
— Um homem inteligente... que está a um passo do colapso total. Mas ainda finge que não.
— E você vai me impedir de cair?
— Não. Mas posso te mostrar como levantar sozinho. Esse é o objetivo não? Por isso fui chamada aqui de forma urgente e discreta.
Ele não respondeu. Só ficou ali, me observando, como se tentasse me decifrar. E eu... senti o coração bater mais forte do que deveria.
Levantei.
— Até a próxima sessão.
— Quem disse que haverá outra?
Sorri de lado.
— Seu corpo. Ele vai te obrigar. É pela forma que andam as coisas, pode ser que seja tarde para uma próxima sessão.
Saà da sala com a respiração presa. Atravessei o corredor, entrei no elevador e, quando as portas se fecharam, deixei o corpo encostar na parede.
Que merda foi essa...?
O cheiro dele ainda grudado na minha pele. A presença. A tensão. O olhar que me despiu. E, principalmente... o fato de que eu não queria parar de vê-lo.
E isso... era inaceitável.
Ele sempre seria Gael.
E eu, sempre serei eu.