Linha de risco invisÃvel
POV: Lara Santiago
É impressionante como um único paciente pode desestruturar o que você levou anos construindo. Na medicina, a gente aprende a manter distância. A observar, escutar, diagnosticar. Mas nunca... sentir.
Sentir atrapalha.
Envolve.
Derruba.
O paciente se torna alguém.
E eu, que sempre fui boa em separar as coisas, me peguei olhando para o nome “Gael Montenegro†no prontuário eletrônico com uma ansiedade que não era nem um pouco profissional.
Depois da sessão, tentei ocupar a mente. Plantão. Laudos. Casos reais, urgentes, palpáveis. Tentar conversar em aplicativos de namoro que mais parecem um cardápio.
Mas ele ainda estava ali, no canto do meu pensamento, me observando como fez naquela sala. Com aqueles olhos que mais pareciam bisturis. Friamente intensos. Quase negros. Quase indecentes.
Que me desnudam sem tirar a roupa.
Eu me odeio por pensar isso.
Porque ele é meu paciente.
Porque ele é o CEO do hospital.
Porque ele é o irmão da Camila.
Porque tudo nessa equação grita perigo. Grita proibição. Grita... corra.
Mas o que mais me assusta... é que eu não quero correr.
Naquela noite, cheguei em casa exausta. Tomei banho no escuro, tentando apagar o dia da minha memória. Da minha pele. Mas era como se o toque dele tivesse ficado. Mesmo sem ter encostado em mim.
Meu corpo doÃa de desejo contido.
E, como se não bastasse, sonhei com ele.
No sonho, estávamos no
mesmo consultório. Ele estava de pé, atrás de mim. Respiração quente no meu
pescoço. Eu estava sentada, vestida de branco, mas com as pernas nuas.
E ele me tocava.
Lento.
Firme.
Como se soubesse exatamente
onde doÃa.
Com a mesma precisão de quem foi um dos melhores cirurgiões do paÃs.
Acordei ofegante, com o corpo úmido e a cabeça em chamas. Olhei o relógio. Quatro da manhã.
Levantei. Fui até o espelho.
Me encarei por longos minutos.
— Ele não é diferente, Lara — sussurrei pra mim mesma. — Ele é só mais um homem quebrado que vai tentar te consumir.
Mas mesmo dizendo isso… eu sabia que havia algo nele que me puxava. Algo que não era só atração. Era reconhecimento.
Gael Montenegro era feito de controle e trauma. E eu… sempre tive uma queda pelo tipo que finge que não precisa ser salvo.
Era por isso que eu sempre fugi dele.
No hospital, tentei agir normalmente.
Camila apareceu no meu setor com um smoothie de frutas vermelhas e um sorriso que não chegava nos olhos.
— E a� Como foi a integração?
— Intensa — respondi com sinceridade.
— Intensa tipo... “vou pedir demissão� — Perguntou ela, sorrindo.
— Intensa tipo “vou precisar de meditação e reza bravaâ€.
Ela riu.
— Você vai se acostumar. Aquele lugar lá de cima é um campo minado. Mas se conseguir se manter... ninguém te segura.
Eu queria dizer que já havia pisado em uma bomba. E que ela atendia pelo nome do irmão dela.
Mas fiquei quieta.
A consciência pesava.
E a fantasia... também.
Camila nunca poderia saber dos meus desejos.
Mais tarde, no
intervalo do almoço, abri o prontuário de Gael para fazer os registros
clÃnicos.
Mãos levemente trêmulas.
Comecei a digitar o relatório com frieza profissional:
Paciente apresenta sinais consistentes de estafa ocupacional severa. Nega sintomas emocionais, porém os expressa fisicamente. Postura defensiva. Alto nÃvel de controle. Responde com sarcasmo e resistência à condução terapêutica. Indico continuidade de sessões clÃnicas e avaliação psiquiátrica a cada 7 dias.
A cada sete dias, ficar numa sala trancada com ele.
Parei.
O cursor piscava no final da
frase. Eu estava prestes a encerrar.
Mas, sem pensar, acrescentei:
Nota pessoal (não enviada):
Existe algo naquele homem que desafia mais do que meu código de ética. Existe um silêncio no olhar dele que grita. E, por mais que eu tente ignorar… eu ouço.
Fechei o prontuário com raiva. Respirei fundo. E jurei que, na próxima sessão, nada disso se repetiria.
Eu manteria o jaleco.
Eu manteria a distância.
Eu manteria o controle.
Ou, pelo menos, tentaria.
Mesmo sabendo que eu estava mentindo.