Nicolay chegou à clínica, seu olhar intenso e determinado refletindo a agitação do centro de São Paulo. O prédio de 15 andares, imponente e movimentado, parecia pulsar com a energia da cidade, mas ele estava mais focado do que nunca. Ao sair do automóvel, seu motorista, o senhor Ivan, seguiu atrás dele, como uma sombra silenciosa, enquanto Nicolay caminhava em direção ao hall de entrada, onde sua secretária, a senhorita Helena, o aguardava. Ela era uma mulher morena, com a beleza madura de quem já viu muito, mas que ainda exibia um brilho de profissionalismo inabalável.
— Bom dia, senhorita Helena — disse ele, sua voz firme, mas com um leve toque de cansaço.
— Bom dia, senhor Castallan — respondeu Helena, com um sorriso que não conseguia esconder uma pitada de curiosidade. — Hoje o senhor tem uma reunião com os chineses sobre os equipamentos para o hospital de Londrina às 10:00. Às 14:00, tem aquela ligação para o senhor Silva, que está no Marrocos. E às 19 horas, o senhor tem a cirurgia da senhora Williams. Posso pedir aquele japonês que o senhor gosta?
Nicolay respirou fundo, a pressão do dia começando a se acumular em seus ombros.
— Obrigado, Helena. Não, hoje eu queria algo mais substancial. Uma massa, talvez. — Ele hesitou, sentindo a necessidade de se concentrar. — Vou subir para a minha sala. Qualquer coisa, só chamar.
Enquanto ele se afastava, uma sensação de inquietude começou a se formar em seu peito. Algo dentro dele pressentia que o dia não seria apenas mais uma rotina de reuniões e cirurgias. Uma parte de sua mente se perguntava se havia algo mais importante à espreita, algo que poderia mudar tudo. Enquanto Nicolay se perdia em pensamentos em sua sala na cobertura, observando com um misto de orgulho e apreensão seus alunos, agora estagiários em sua própria clínica, ele tentava organizar as aulas remotamente. A reunião com os chineses pairava no ar, mas seu peito estava estranhamente apertado, uma sensação de algo fora do lugar que ele não conseguia decifrar.
— Eleonora — ele digitou, sua voz mental soando urgente. — Não se esqueça de levar o Noah para passear.
Noah, seu fiel Border Collie, era mais que um animal de estimação; era seu confidente, seu melhor amigo. A rotina de reuniões, chamadas e cirurgias o consumia, mal lhe dando tempo para uma refeição decente.
— Eleonora, por favor, faça umas panquecas para mim quando eu chegar — ele enviou, em seguida, um pequeno pedido que buscava um conforto familiar em meio ao caos.
Deixando sua sala, desceu até o hall, onde Helena ainda estava, imersa em seus afazeres noturnos.
— Boa noite, Helena. Ainda aqui? — perguntou Nicolay, a voz carregada de uma gentileza que ele raramente demonstrava.
— Sim, senhor. Estou adiantando algumas coisas, já que amanhã chego mais tarde. Vou com a minha mãe na consulta, lembra? Avisei o senhor semana passada. — Helena o lembrou, um leve sorriso.
Nicolay assentiu, a memória aflorando. — Ah, claro. Helena, e como ela está? Depois da heterocromia?
— Está bem, vamos ver amanhã o que o médico fala.
— Tudo bem, Helena, vai dar certo! — ele disse, um genuíno desejo de conforto em sua voz. — Ah, e hoje alguém me procurou?
— Não, senhor. Tudo normal aqui.
— Ótimo. Até amanhã, então.
Nicolay se dirigiu à garagem, onde o senhor Ivan o aguardava pacientemente.
— Boa noite, senhor Ivan. Vamos?
— Boa noite, senhor Castallan — respondeu Ivan, abrindo a porta do passageiro. Nicolay detestava sentar atrás.
— Só Nicolay, Ivan. Eu já falei.
— Desculpe, é força do hábito — murmurou Ivan, resignado.
Ao saírem da garagem, Nicolay, em um impulso repentino, pediu para Ivan parar. Algo chamou sua atenção no gramado, uma figura imóvel, adormecida sob a luz fraca.
— O que ela está fazendo ali? — perguntou Ivan, a voz tingida de surpresa.
Nicolay deu de ombros, mas uma lembrança súbita o atingiu: a irrigação noturna.
— Ela vai ficar encharcada — ele disse, descendo do veículo e caminhando em direção à moça. — Moça, você não pode ficar aqui, eles vão ligar os irrigadores.
Antes que ele pudesse retirá-la dali, os aspersores foram ativados, jorrando água sobre ambos. A moça, completamente molhada, teve suas roupas grudadas ao corpo, revelando a forma generosa de seus seios. Mas foi ao olhar em seus olhos que o mundo de Nicolay parou. Era Anabelle.
— Anabelle… — ele sussurrou, o nome saindo como um lamento.
Ela se desfez em seus braços, não apenas molhada, mas queimando em febre. A realidade o atingiu com a força de um soco.
— Ivan, me ajude! Peguem as coisas da moça. Vamos levá-la para dentro! O coração de Nicolay martelava em seu peito com uma mistura de pânico e uma urgência avassaladora ao atravessar o limiar da clínica, a figura de Anabelle, pálida e febril, aninhada em seus braços. O espanto nos olhos de Helena, sua secretária, era palpável, um reflexo do choque que tomava conta de todos ali.
— Senhor! O que aconteceu? O senhor atropelou essa aí? — A voz de Helena soou, carregada de incredulidade e alarme.
Nicolay, com a urgência de quem carrega um tesouro precioso e frágil, respondeu, enquanto buscava com o olhar uma sala adequada para deitá-la:
— Não, Helena. Essa moça estava ali, deitada na grama. — Ele a depositou gentilmente em uma maca, seu toque delicado contrastando com a gravidade da situação. — Traz rápido, Helena, uns roupões e uma coberta para poder aquecê-la. Traz também soro, ela está desidratada. Corre, Helena! Chama uns enfermeiros, vai! Não fica aí olhando!
A ordem, embora firme, carregava a angústia de quem teme perder algo insubstituível. Cada segundo parecia uma eternidade enquanto Helena, agora com o rosto pálido, corria para atender às suas instruções.
Enquanto Helena se apressava, Nicolay ficou na sala, com a moça. Seus olhos percorreram o corpo dela, a roupa encharcada colada à pele, e uma hesitação tomou conta dele. Deveria tirar a roupa molhada dela? O pensamento o incomodava, uma mistura de preocupação e um constrangimento inesperado.
Ivan, percebendo sua hesitação, interveio com uma sugestão prática.
— Senhor, seria melhor o senhor tirar a roupa dela e colocar este roupão para aquecê-la — disse Ivan, a voz calma e ponderada.
Nicolay suspirou, a indecisão ainda presente. — Sim, mas não queria ser inoportuno, mexendo assim nela com ela dormindo.
— Mas é para o bem dela, senhor — insistiu Ivan, a lógica inegável.
Nicolay ponderou por um momento, o conflito interno visível em seu semblante.
— Vou sair e deixar o senhor a sós com ela para não ficar mais constrangido — disse Ivan, cedendo um espaço que ele julgava necessário.
Porém, antes que pudesse se afastar, uma ideia surgiu em sua mente, uma solução que parecia perfeita.
— Melhor a senhorita Helena tirar para o senhor — disse Ivan, um sorriso discreto brincando em seus lábios. — Ela pode fazer isso sem nenhum problema.
— Boa ideia, Ivan — disse Nicolay, sua voz ganhando um tom mais firme. Ele saiu da sala, dirigindo-se em busca de Helena, seu coração ainda acelerado, a imagem de Anabelle gravada em sua mente. Ao encontrá-la, sua voz soou com uma urgência renovada:
— Preciso que a senhorita retire as roupas molhadas da moça e a coloque um roupão, cobrindo-a com aquelas cobertas. Vou subir na cobertura para tirar essas roupas aqui e já desço para vê-la. Solicite para alguém puncionar a veia dela, ela está fraca, desidratada e com febre.
A ordem era clara, mas por trás dela, Nicolay escondia a batalha que travava dentro de si, a luta entre a razão e a emoção, entre o dever e o desejo, uma batalha que ele sabia que estava apenas começando.
Nicolay subiu para sua cobertura, um refúgio particular onde sempre mantinha um conjunto de roupas para emergências. Mas, naquele momento, sua mente estava longe de qualquer preocupação com vestimentas ou reuniões. Tudo o que ele conseguia pensar era na moça que acabara de encontrar. Anabelle. Não podia ser ela. A Anabelle que ele conhecia era uma jovem sonhadora, com um romantismo que transbordava em cada gesto, em cada palavra. Aquela moça, com seus traços marcados, quase rebeldes, com um quê de roqueira, era tão diferente da doce e delicada Anabelle que ele guardava em suas memórias. Era como se o tempo tivesse moldado a mesma essência em formas distintas, quase irreconhecíveis. Será que era mesmo ela? A dúvida o corroía.
Algum tempo depois, com a mente ainda turbulenta, Nicolay desceu novamente para a clínica. Ao se aproximar da sala onde a moça estava sendo cuidada, ele ouviu fragmentos de uma conversa entre Helena e Ivan.
— Como eu podia imaginar que ela realmente o conhecia? — disse Helena, a voz carregada de uma emoção que Nicolay não soube decifrar de imediato. Havia surpresa, talvez um toque de desapontamento.
— Não sei ao certo se ele a conhece — respondeu Ivan, sua voz ponderada. — Pelo menos ele chamou a moça pelo nome de Anabelle.
O sangue de Nicolay gelou. Anabelle. Eles estavam falando de Anabelle. A indignação borbulhou em seu peito, misturada à apreensão.
— Acha melhor ele não saber! — Helena acrescentou, um tom de chateação evidente em sua voz.
Foi o suficiente para que Nicolay irrompesse na sala, seu semblante tenso, a voz ecoando com uma mistura de raiva e confusão.
— Saber o quê? — perguntou Nicolay, a voz carregada de indignação. — O quê é que eu não posso saber, senhorita?
O silêncio que se seguiu foi denso, carregado de segredos e de uma tensão palpável. Helena e Ivan trocaram olhares, a surpresa em seus rostos refletindo a intensidade da pergunta de Nicolay. A verdade, ele sentia, estava prestes a ser revelada, e ele não estava preparado para o que quer que fosse.
Nicolay retornou ao corredor, a mente ainda turbulenta. A conversa entre Helena e Ivan o atingiu como um raio, a menção de “Anabelle” ecoando em sua mente. Ele se aproximou, a voz carregada de uma indignação crescente.
— Então, Helena, estou esperando. O que eu não posso saber? — Ele olhou para ela e Ivan, um turbilhão de dúvidas e suspeitas girando em sua mente. A hesitação de Helena, como ela desviou o olhar, tudo indicava que algo estava sendo escondido dele.
— Bom, senhor, hoje mais cedo essa jovem esteve aqui à procura do senhor — Helena começou, a voz tensa, como se estivesse pisando em ovos. — Eu a mandei embora, não sabia que o senhor a conhecia.
O sangue de Nicolay gelou. O que ela queria? Por que Helena a mandou embora? A imagem de Anabelle, a Anabelle que ele conheceu, tão diferente daquela moça com traços de roqueira que ele acabara de encontrar, o assombrava.
— E o que ela falou, Helena? — perguntou Nicolay, a voz baixa, mas cada palavra carregada de uma intensidade que fez Helena estremecer.
— Ela só o procurava, senhor — respondeu Helena, a voz ainda mais tensa.
— E por que você não passou o recado? — A pergunta de Nicolay foi direta, cortante. A frustração e a raiva começavam a borbulhar em seu interior.
— Eu não achei que ela seria alguém relevante, senhor — Helena tentou justificar, mas suas palavras soaram fracas e vazias.
— Quem decide o que é ou irrelevante sou eu, Helena! — Nicolay explodiu, a voz subindo de tom, a reprimenda ecoando pelo corredor. — Você trabalha aqui tendo sido paga para me ajudar, para recepcionar a todos. Todos os dias! — Ele a encarou, seus olhos transmitindo uma fúria contida.
Helena, visivelmente abalada, tentou argumentar, uma tentativa desesperada de justificar sua ação. — Mas, senhor, o senhor tem um nome a zelar! Não pode receber qualquer uma, uma mendiga, ainda mais um médico renomado com tempo tão corrido. Eu achei...
— Sem achismos daqui para frente, Helena! — Nicolay a interrompeu, sua voz agora fria e cortante como gelo. — Faça só o seu trabalho e nada mais. Se sou esse médico tão renomado como você sempre fala, é porque nunca deixei de atender ninguém, nem mesmo os sem condições financeiras. Agora, vá cuidar da moça. E eu quero saber quem ela é!
A ordem final pairou no ar, um ultimato que Helena não podia ignorar. Nicolay, por sua vez, sentiu um nó se formar em sua garganta. A incerteza sobre a identidade da moça, a possibilidade de ser Anabelle, a Anabelle que ele amava, o consumia. Ele precisava saber. Precisava entender o que estava acontecendo, e Helena, com sua interferência, havia apenas atiçado ainda mais a chama de sua angústia. Horas se arrastaram, a madrugada já se instalara quando a moça finalmente abriu os olhos. A cama era dura, desconfortável, e um roupão a cobria, mas não o suficiente para disfarçar a sensação de vulnerabilidade. Ela se encolheu, tentando se proteger do frio e da estranheza do lugar.
— Onde estou? — A voz saiu rouca, um sussurro incerto, e seus olhos vagaram pelo quarto, buscando um ponto de referência.
Ao seu lado, Nicolay dormia em uma cadeira, o cansaço evidente em seu semblante. Ele havia dispensado Helena e Ivan, preferindo velar o sono da desconhecida.
— Olá — A voz de Nicolay a fez sobressaltar. Ele se levantou, o semblante gentil, tentando transmitir tranquilidade. — Está tudo bem. Sou Nicolay. Você está na minha clínica. Estava molhada e com febre; por isso, está sem as suas vestes. Não se preocupe, ninguém aqui vai te fazer mal. — Ele estendeu a mão, pousando-a levemente em seu ombro, um gesto que, apesar da estranheza, trouxe uma inesperada sensação de paz.
A moça o olhou com uma doçura hesitante, uma mistura de esperança e dúvida em seus olhos. — Nicolay Castallan? — perguntou, a voz ainda embargada.
— Isso, esse sou eu. E você, como se chama? — Ele a observou, curioso, esperando uma resposta que preenchesse o vazio de informações.
Ela o percorreu com o olhar, uma avaliação silenciosa, quase calculista. — Anastácia Salvatore — disse, e uma pausa dramática se seguiu, carregada de uma tensão palpável. — Filha da Anabelle. Não sei se o senhor lembra dela, mas ela me mandou procurá-lo.
Aquelas palavras caíram como uma bomba no colo de Nicolay. Anastácia. A pequena Anastácia que ele havia segurado em seus braços no momento do parto. Era ela.
— Anastácia — ele se aproximou, o coração acelerado. — Claro, você é Anastácia. E Anabelle? Cadê ela? Por que ela não veio até mim? — Ele a olhou nos olhos, a urgência em sua voz transbordando.
Os olhos de Anastácia se encheram de lágrimas, que começaram a rolar por seu rosto em um pranto silencioso. — Minha mãe não está mais aqui conosco...
Aquelas palavras foram como um golpe devastador para Nicolay. Saber que sua querida Anabelle não estava mais ao alcance, que ela se fora para sempre, partiu seu coração em mil pedaços.
— Sinto muito, Anastácia — ele disse, a voz embargada pela emoção.
Anastácia estendeu a mão, e Nicolay percebeu, então, um envelope que ela havia tirado bolsa. — Ela deixou isso para o senhor — disse, entregando-o.
Nicolay pegou o envelope, suas mãos tremendo levemente. — Anastácia, você pode ficar aqui esta noite. Está no soro. Ali tem um banheiro. O que precisar, pode apertar aquele botão ali que alguém vem te atender. Amanhã, por volta das oito, eu vou vir te ver. Não vá a lugar algum sem antes me ver, OK? Tente descansar.
Com essas palavras, Nicolay saiu do quarto, o envelope da Anabelle em mãos, a mente girando em um turbilhão de dor e saudade. A noite prometia ser longa, preenchida pelas lembranças de um amor perdido e pela descoberta de um passado que se desdobrava diante dele.
Nicolay subiu até a cobertura, o peso do mundo em seus ombros. As luzes do apartamento se acenderam, revelando um espaço amplo e luxuoso, mas que, naquele momento, parecia vazio e frio. Ele ligou a cafeteira, o aroma forte do café invadindo o ambiente, uma tentativa de despertar os sentidos e afastar a melancolia.
Diante da carta, Nicolay hesitou. O envelope, sem cor, parecia conter não apenas palavras, mas o peso de anos de saudade e de uma dor que ele tentava, a todo custo, manter sob controle. A coragem, no entanto, não era uma opção. Com mãos trêmulas e o coração apertado, ele a abriu.
A caligrafia familiar, a letra de sua amiga de infância, Anabelle, o transportou instantaneamente para um passado distante. Ele a viu novamente, com apenas sete anos, um encontro que selou um amor eterno, um amor à primeira vista que jamais o abandonou. As palavras no cartão o envolveram em uma onda de nostalgia.
“Querido Nic,”
Se você está lendo esta carta, significa que o câncer foi mais forte e me venceu. Muitas vezes, eu tentei voltar, e sei que você faria o possível e o impossível para conseguir uma cura, ou melhor ainda, para prolongar meus dias. Mas eu nunca quis, meu amigo, ser um peso na sua vida. Você não merecia ter um peso morto como eu na sua vida. Sempre acompanhei, mesmo de longe, sua ascensão, e tenho muito orgulho do grande homem que você se tornou.
Bom, em nome da nossa amizade, quero te pedir uma última coisa: quero que cuide da minha menina, Anastácia. Ela é uma boa garota, mesmo que tenha este estilo meio de “mau com o mundo”, ela é boa. Por favor, meu amigo, cuide dela. Não deixe jamais que ela saiba de Ethan Volkov. Para ela, ele está morto, e para ele, Anastácia nunca jamais existiu. Ela não pode jamais saber quem o pai dela é. Te solicito, meu amigo, cuide dela.
Com amor,
Sua amiga, Anabelle Salvatore.
Nicolay releu a carta, as palavras de Anabelle ecoando em sua mente. A dor da perda, a preocupação com Anastácia, o segredo sobre Ethan Volkov – tudo se misturava em um turbilhão de emoções. Ele sabia que sua vida, a partir daquele momento, seria guiada pelas últimas vontades de sua amiga, um juramento silencioso feito à memória de um amor que o tempo não pôde apagar.