1
O porão estava totalmente mergulhado em breu. Velma teve de tirar uma
lâmpada de um dos quartos para botar lá, e ainda assim ficou mal
iluminado, provavelmente porque os fios de força estavam ficando
podres. A casa de dois andares era uma mistura de madeira e alvenaria,
não por puro capricho e sim porque quem a construiu queria economizar
em certo momento da construção, era o que dona Mirta já havia
comentado uma vez. Então, em algumas partes da casa era preciso de
conserto, mas reformas só ocorriam caso fosse em algum cômodo que
teria algum uso para dona Mirta, essas frescuras eram algo que Velma já
tinha se acostumado a tolerar há muito tempo.
2
O espaço do porão (antigamente uma despensa) não era grande, porém
era suficiente para caber duas estantes amareladas e úmidas com
prateleiras cheias de livros religiosos e de receitas, garrafas de vidro onde
dona Mirta guardava botões e agulhas velhas, sacolas com retalhos de
tecidos de todos os tipos que eram guardados para virarem enchimento de
almofadas que ela também vendia e alguns ferros de passar roupa
pifados, mas guardados com esperança de irem ao conserto. No chão, ao
lado das prateleiras, estavam quatro caixas de papelão fechadas com
dizeres escritos em giz preto “DOCUMENTOS VELHOS, NÃO
MEXER!”, em letras grandes. Velma puxou um banquinho de madeira
que trouxe da cozinha para poder sentar-se enquanto começava a xeretar
nas caixas.
— Vamos ver o que há aqui. — Sua voz saiu irreconhecível para si
mesma, foi assim que se deu conta de que era a primeira vez que falava
em voz alta desde que voltou para a casa. Já estava se acostumando com
o silêncio em sua volta e a voz de seus próprios pensamentos.
Velma empurrou a primeira caixa para onde estava sentada, o banquinho
era baixo, mas ainda precisava se curvar-se para poder ver melhor o
conteúdo. Ao abrir suas abas, uma aranha surgiu andando em direção à
sua mão direita, mas com um gesto natural de reflexo, a expulsou dali lhe
dando um tapa com as costas da mão.
3
A primeira caixa tinha várias pastas com papéis amarelados, eram contas
velhas e pagas — ainda bem, pensou Velma — como descobriu enquanto
vasculhava cada uma delas. Depois de alguns minutos viu que não
haveria nada interessante ali e partiu para a segunda caixa depois de
reorganizar a primeira.
Na segunda caixa, o seu conteúdo era mais desanimador que o anterior:
eram jornais, uma pequena pilha de jornais totalmente amarelados e
fedendo a mofo.
— Meu Deus, para que tantos jornais! — soltou Velma indignada,
imediatamente fechando as abas desta pra seguir para as duas caixas
restantes. A terceira caixa tinha uma pasta com documentos de verdade,
de sua avó, coisas de trabalho, primeiras vias de documentos de
identidade e umas papeladas com cópias e a própria escritura da casa, que
foi a única coisa que Velma salvou dessa caixa. E na quarta e última,
havia apenas cadernos velhos onde dona Mirta escrevia suas receitas
mirabolantes para novos pratos que por incrível que pareça, sempre
ficavam bons quando ela os preparava. Pelo menos era assim que Velma
lembrava, pois depois que aprendera a cozinhar, era apenas ela quem
fazia a comida. Não iria salvar nada desta caixa.
Sentindo-se ligeiramente desapontada, Velma se levantou segurando a
pasta com a escritura em uma das mãos e a outra fechada em punho. Só
havia lixo ali, nada mais que lixo e mais lixo. Se pudesse, atiraria fogo
naquilo tudo, e quem sabe, seria isso mesmo o que faria após retirar tudo
o que não tinha mais necessidade de ficar naquela casa. Velma já tinha
deslizado para a porta quando de súbito, girou nos calcanhares e retornou
onde estava, empurrou o banquinho com o pé e puxou a caixa onde havia
jornais e a entornou para jogar seu conteúdo fora dali. E foi assim que
encontrou o que procurava inconscientemente.
4
Em meio aos jornais velhos havia um grande envelope marrom meio
desbotado com seu desconhecido conteúdo. Velma demorou alguns
segundos para enxergá-lo junto aos jornais amarelados e a luz fraca, mas
quando viu ela se agachou e sentou-se novamente no banquinho. O
envelope era um pouco pesado, deveria ter umas 500 gramas, o que a fez
hesitar um momento antes de abri-lo e ver o que continha.
— Tudo bem, pode ser nada demais. — Murmurou Velma, que naquele
momento não se deu conta se estava falando ou pensando. Ela abriu o
envelope e deixou seu conteúdo escorregar em cima do seu colo onde a
pasta com os documentos da casa estavam. Eram algumas fotos e um
envelope menor que tinha uma carta. Ela checou as fotos primeiro e o
que viu a deixou mais consternada do que quando descobriu que sua avó
havia falecido. Aliás, o que viu nas fotos quase a fez se esquecer de sua
avó completamente, o que só não foi possível pois dona Mirta estava nas
fotos, mas não sozinha. Ela estava bem mais jovem, sentada numa
poltrona de veludo amarela — a foto estava velha, mas ainda era possível
distinguir suas cores — com Velma bebê em um dos braços e... outro
bebê no outro. Dona Mirta sorria para o outro bebê. Quem era esse outro
bebê?
5
Havia cinco fotos, além da primeira que dona Mirta aparecia, as outras
eram fotos desses dois bebês em seus berços. A última foto, porém, era
diferente e foi capaz de arrancar lágrimas de Velma que nem ao menos
conseguiu chorar no funeral. Quem estava nessa foto era sua mãe. Ela
sabia que era sua mãe, sem dúvidas. Ela tinha os mesmos longos cabelos
castanhos como carvalho e a mesma pinta ao lado do nariz, Velma era a
cara de sua mãe. Na mesma poltrona amarela onde dona Mirta estava na
outra foto, sua mãe também segurava dois bebês, que eram bastante
semelhantes. É lógico que bebês tem quase todos a mesma cara assim
que nascem, mas estes da foto eram muito parecidos. Irmã? Irmão?
— Eu não entendo... — Velma estava confusa, por que sua avó nunca
mencionou ter posse dessas fotos? Era a primeira vez que ela via a face
de sua mãe, a quem dona Mirta disse nunca ter existido fotos para
lembranças, que não havia tido tempo de fazê-las antes que sua filha
morresse no tal acidente de carro. A única coisa que sua avó a havia
contado sobre sua mãe era seu nome, Rosa.
Velma ficou olhando para essa foto por um bom tempo, vendo o rosto de
sua mãe, a expressão de felicidade enquanto segurava suas... filhas? Sim,
eram meninas, a qualidade da fotografia estava ruim, mas dava para
enxergar a cor rosa de suas roupinhas de frio. Num gesto inesperado,
Velma olhou para o verso da fotografia e viu algo escrito em caneta
esferográfica azul, estava um pouco desbotada, mas ainda legível.
Andradina — 1962
Rosa com suas gêmeas,
Velma e Dália.
E com apenas essas palavras lidas, foi o suficiente para Velma chorar o
que não chorou no enterro de sua avó.
6
Velma cresceu num ambiente aparentemente calmo, quando sua avó não
a chamava aos berros a convocando para ajudar em algum serviço de
casa ou de costura. Apesar disso, não teve problemas sérios, era um
pouco entediante até. Na escola, desde os anos iniciais, sempre teve
amigos que iam e vinham. E mesmo sendo um pouco tímida, ela nunca
ficava sozinha. Era o que a fazia nunca querer faltar nas aulas, seus
amigos, eram quem a tiravam do tédio.
— Não se apegue a essas crianças, logo elas seguem com a vida e
esquecerão de você. — Dissera dona Mirta numa vez que Velma fora
convidada para um aniversário de uma das colegas que insistiam que ela
fosse.
— A senhora também foi convidada! — protestara Velma e, por fim,
convenceu sua avó a levá-la para a festa.
Dona Mirta não prendia Velma em casa assim como Norma Bates fazia
com seu icônico filho, porém não era fácil convencê-la a sair de sua zona
de conforto. Apesar de não ter sido um mar de flores ser criada por ela,
tivera bons momentos, nem que fossem um pouco raros. Quando sua avó
estava de bom humor era como se fosse uma outra pessoa: levava Velma
para passear na cidade e tomar sorvete no parque; comprava roupas
novas para elas e chegavam em casa tarde, no último circular do dia.
Essas eram algumas das boas lembranças que tinha de sua infância. E
agora, tudo isso estava começando a desbotar de sua mente enquanto
tentava imaginar como seria sua vida se sua mãe estivesse viva. E se sua
irmã estivesse com elas, como tudo poderia ter sido diferente, melhor...
7
É engraçado como as crenças de alguém podem cair e quebrar tão
facilmente. É preciso de apenas um golpe de supetão e pronto. Velma
sentia que tinha levado um murro no estômago, e que estava presa
durante aquele momento de dor que nos paralisa logo após o golpe. A dor
vai aumentando e aumentando, contorcendo suas entranhas até começar a
ir embora lentamente, te deixando ofegante e depois, com alívio.
O que mais tinha sido escondido dela? Sua avó mentiu sobre mais
alguma coisa? Ela era realmente sua avó? Ela realmente era um dos
bebês? Claro que sim, não seja estúpida, seu nome está na foto. Velma
guardou as fotos no envelope novamente, o outro com a carta não queria
ler agora. Saiu do porão levando-as consigo, as segurava com as duas
mãos como se tivesse medo de que alguém as tomasse ou que elas
desaparecessem em pleno ar. Precisava preparar alguma bebida quente
para relaxar.
8
— Eu não posso deixar isso me afetar. — disse para si mesma, sentada à
mesa da cozinha, esperando a água do bule esquentar e começar a
assobiar. Velma achava que ao dizer essas palavras ela se sentiria
confiante, mas ao ouvi-las saindo de sua boca soube que não era como se
sentia. Ela já estava afetada pela recente descoberta e sabia que isso
continuaria a assombrando por um bom tempo. O que eu deveria fazer,
pensava ela sem saber de onde viria essa resposta.