Eu estava atrasado, leitores, juro!
Mas o clamor da pobre vozinha
Alçando: “Leva-me, serei da Flavinhaâ€,
Fez-me voltar à cabeça ao muro.
E ei-la ali parada no escuro.
Com arbustos do lado, estava sozinha,
E reiterou: “Leva-me, serei da Flavinhaâ€;
Se eu a deixo ali, eu a torturo.
E eu que estava atrasado, leitora,
Parei para falar com o arbusto
E tive maior surpresa que susto.
Era flor fragrante e encantadora,
Queria teu regaço, tuas mãos, teu amor
E eu cheguei atrasado por te trazer esta flor.
A NATUREZA JOGA CHARME
O céu, antanho anuviado, se descansa
E as nuvens diluem-se num ar cálido
Que por teu escorreito rosto se gama
E o vento alÃsio sopra-se mais ávido.
Farfalham as acácias em cada rama,
É um flalhar-flalhar bem rápido
Porque abrem caminho para uma dama,
Mas por proximidade fazem-no esquálido.
Choverá depois como choveu antes,
Não agora para proveito dos visitantes
Que somos nós parados aqui.
Vegetação e clima sob medida,
Fauna integralmente envolvida,
A natureza se preparou para ti.
POEMAS DE MÃOS DADAS
Das mãos atadas dás-me o azo
E de poesia encho o teu ouvido
Que em tua mente deves ter dado prazo
Para que eu já devesse ter saÃdo.
Nas nossas conversas me comprazo
E do que falas me dou por valido
E a mente cá engendra sem atraso
Outro poema para por ti ser lido.
Os poemas têm mãos dadas como nós
E se prendem e com fortes nós
E a nossa conversa vê a noite virar dia.
Enquanto tu falas, os poemas atendem;
Eles não rechaçam nem contendem
Contra a força motriz da poesia.
RECEITA DE SAUDADE
Saudade não é como receita
Que se apronta meta por meta;
A saudade há de ser desfeita
Para então ser ela completa.
É a condição que o coração aceita,
Ele tranca o pé, chilreia e veta
E fica rodeando esperto à espreita
Pra ver até quanto à distância o afeta.
E por mais que a saudade apresente
O seu veraz e apurado relatório,
O coração nunca o terá por satisfatório.
E provará pelo tempo que esteve ausente
Que saudade não é como receita.
PRA QUEM MORRE DE SAUDADE
Tenho diante de mim a promessa,
Dada muito tempo antes da morte,
Que por intermédio do Deus vivo e forte,
A vida ao corpo mortal regressa.
Patente que isso me interessa
Porque quem não quer ter suporte?
A minha questão é só pra tentar a sorte
E saber se há mais verdade expressa.
Não desconfio que a morte seja o desfecho
E o que interrogo também não me queixo,
Tenciono apenas maior tranquilidade.
Quero saber, meu Senhor, de coração,
Se tua palavra acerca de ressurreição
Também se aplica a quem morre de saudade.
Pois ela é inteira quando desfeita.
ESCREVER EM TEU EU-LÃRICO
Meu amor, não me dê missão difÃcil,
Peça apenas coisas de que sou capaz
E se pedires algo além disso,
Nem adianta reclamar com seus ais.
O eu-lÃrico é do poeta um artifÃcio,
Ele transforma qualquer um em loquaz;
Ele pode ser plebeu ou patrÃcio
Mas não consegue os teus altos pedestais.
Se me pedires para me pôr no teu lugar,
Este é um eu-lÃrico que não sei interpretar
E te traria muita, muita vanglória.
Portanto quero-te como musa
E assim com a maviosa lÃngua lusa
Serei declarado venerador da tua história.
CARA-METADE
Os casais que se dizem cara-metade
Com o intuito de se acharem iguais,
Esquecem que os Ãmãs de mesma polaridade
Se retraem ferrenhos e abissais.
Eu não me ponho em pé de igualdade,
Deixo a minha amada ser mais.
Ela não me completa, a verdade
É que me preenche desde as marcas iniciais.
Ela não é minha cara-metade,
Ela não é ligada 50% a mim,
Ela é em mim com santo consentimento.
Dei meu coração como sua herdade
E ela apoderou-se com o fim
De ser não metade, mas meus 100%.
TUA MIRAGEM
Pensei, quando aportei, ter te visto
E meu corpo seguiu o ritual consuetudinário
De tremer-se em cada fibra onde existo
E de ansiar como quem anseia um salário.
Teu espectro por mim muito benquisto
Fez-me alterar o sistema circulatório
Mas por em seguida não ter te visto,
Abateu-me um pesar cruel, notório.
Se não tu, quem era aquele vulto?
Se alguém te imitava eu indulto
Porque és espelho de vida e coragem.
Podes medir o quanto eu te quero
Que embora teu escopo não fora vero,
Muito me enamorei só com tua miragem.
A CASA QUE MORAVAS
Passei em frente à casa em que moravas,
Digo-te que não a vi muito feliz;
Era cor de âmbar, hoje é gris.
Não se cuida mais como tu cuidavas.
Passei em frente à casa que embelezavas,
Digo-te que não a vi muito animada,
Hoje suas paredes são desbotadas
E desfiaram as flores que tu plantavas.
Caiu o forro como cai o semblante,
O meu semblante de saudade tua;
Estava a casa como fico eu.
O futuro desta casa quem garante?
Abandonar-se-á entre os imóveis da rua,
É uma casa, meu amor, que feneceu.
EU-LÃRICO CURIOSO
Tua voz anunciando novidade,
Espirituosa intenção me reflete.
Queres ver minha reação com a manchete
E aproveitar ao máximo da curiosidade.
Sabes que anúncios dados pela metade,
Ainda que seja um método que se repete,
Sempre me agrada estar na tua enquete
Que contabiliza minha curiosa personalidade.
Se tens um poema a declamar-me,
Não gaste tempo, não faça charme,
Conte-me de uma lufada tudo.
Que minha inquietude de esperar pelos versos
Faz-me ser de todo o universo
Quem tem o nÃvel de curiosidade mais agudo.
FLAGRANTE
Olha só, Flavinha,
Ele surge na tua frente,
É o poema que se alinha
Entre nós tão de repente.
A poesia contigo não está sozinha,
Ela vem que vem contente
E por nosso diálogo caminha
Te achando como sempre atraente.
E agora que a viste em flagrante
Com a famosa e benquista caneta,
Viste o processo do poetizar.
E para que saibas o que é marcante,
Depois de acompanhares o poeta,
É vê-lo, na tua frente, improvisar.
CLASSIFICAÇÃO DA POESIA
Não sei como minha poesia se classifica,
Sei, porém, que é sempre ao mesmo endereço;
Toda ela, toda rima pobre ou rica
É pensada nela desde o começo.
E se essa poesia que a uma pessoa se aplica
Recebe do público um certo apreço,
Lembrai que uma pessoa a vivifica
E a poesia é exclusivamente sem preço.
Se você, leitor, está lendo esse verso
É de se admirar tamanha ousadia,
Mas não os detenhas em seus itinerários.
Pois eles vão de amor embriagados e imersos
E encontrarão a fonte de sua autoria
Proporcionando doçura aos olhos vários.