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Edson Basilio

Edson Basilio

Ativo Escritor

Não sei como um homem daquela idade aguentava ficar tanto tempo agachado. Quando alguém perguntava quantos anos tinha, ele mandava contar quantas rugas tinha na cara que só assim iria conseguir saber. Ele nunca falava a sua idade, mas dizia que tinha muita experiência, que a saúde estava em dia e que ainda "comparecia com a patroa" e que isso era graças a uma garrafada que preparava com uma mistura de plantas e raízes que aprendeu com o pai e que "dotô" nenhum conhecia, mas que se a gente quisesse comprar, ele vendia os ingredientes certos e ainda ensinava a preparar.
Aos sábados, quando andávamos pelo centro da cidade e passávamos pela praça principal, já ouvíamos logo aquela voz meio metálica que vinha do alto falante, um daqueles antigos que eram mais comuns de se ver no alto de um poste ou em cima da kombi que vende ovos, que funcionava ligado a uma bateria de carro e a um microfone que ficava preso no grosso fio de energia que foi entortado para formar um pequeno círculo em volta dele e outro maior que era encaixado no pescoço do anunciante. A voz dizia: "- Psiu! Ei, você!", e continuava, ora oferecendo a solução para diversos problemas de saúde, ora garantindo que só ali se encontrava o verdadeiro "Viagra Natural".
Da primeira vez que comprei uma planta para fazer chá, foi um pacová. Eu estava com uma azia que não passava nunca, e como se tivesse adivinhado, foi exatamente o que o velho raizeiro anunciou no alto falante naquele dia, exatamente na hora que eu estava passando. Achei tão curiosa a coincidência que acabei comprando o seu produto. Durante uma semana eu tomei aquele chá e finalmente me vi livre da minha queimação. Meu ceticismo em relação à medicina popular havia acabado.
Da segunda vez, minha esposa passava por uma das piores cólicas de sua vida e eu enfrentava a pior TPM de todos os tempos. O velho "receitou" carapiá, um "santo remédio" que a avó e a mãe dele usavam quando estavam "naqueles dias" e era a única coisa que funcionava, elas ficavam bem, cheias de disposição para o trabalho na roça e "calminhas, calminhas". Comprei uma sacola lotada até a boca daquilo e levei para casa.
O preparo do chá era bem simples: ferver, coar, esperar esfriar e tomar. Segui os passos, pus em um copo e ofereci à minha esposa, que já foi logo dando uma golada e, logo em seguida, cuspindo tudo no chão: "- Credo! Que troço horrível! Amarga igual a um não sei o que!". Falei para ela que remédio não é para ser gostoso, é para curar e que o meu também não era bom, mas funcionou. Ela tomou aquele chá todos os dias até o final "daqueles dias". Como não há nada tão ruim que não possa piorar, piorou. O mau humor não passou, pelo contrário, agora havia se juntado com a raiva por ter tomado aquele chá amargo que não funcionou. Sobrevivi, mas nunca mais volto naquele raizeiro.

Na minha infância, no auge da minha inocência, eu pensava que antigamente tudo era preto e branco, porque é assim que a gente vê tudo nas fotos daquela época.
Na verdade, de acordo com o que os mais velhos contam, ao contrário disso, tudo era colorido: as roupas, os carros, as casas e a natureza, que convivia com tudo e todos. Muito mais colorido que nos dias de hoje.
Mais gente trabalhava no campo ou em espaços abertos, hoje trabalhamos fechados sem ver nada além de paredes. As poucas cores que vemos chegam pelas telas dos computadores ou celulares.
Para qualquer lado que olhamos, tudo é asfalto e concreto, ruas e mais ruas, prédios e mais prédios. As casas foram diminuídas e empilhadas. Carros pretos, brancos e cinza, soltando uma fumaça cinza. Quase não sobrou mais espaço para a natureza.
Eram tantas cores… mas as câmeras não conseguiam capturar. Agora temos câmeras capazes de capturar muitas cores, mas a vida não tem mais a mesma cor que tinha antes.

Entrei no ônibus, minha poltrona era a da janela, coloquei minha bagagem de mão no bagageiro que fica acima das nossas cabeças e sentei. Hoje em dia as janelas dos ônibus não abrem mais, a gente pode até viajar curtindo a paisagem, mas faz falta sentir os cheiros e ouvir os ruídos dos lugares por onde passamos e a sensação gostosa do vento refrescante batendo na cara, estamos presos numa caixa hermeticamente fechada, com um ar condicionado sempre mais frio do que o necessário e um silêncio absoluto.
Uma senhora que aparentava ter acabado de entrar na terceira idade subiu os degraus, passou pela porta que levava da cabine do motorista ao interior do ônibus, olhou para o bilhete de passagem, depois para as plaquinhas que ficam no bagageiro indicando o número das poltronas, voltou a olhar para o bilhete, depois para mim, balançou a cabeça afirmativamente, me pediu licença e se sentou. Me desejou boa viagem e foi pegando seus fones de ouvido, respondi desejando o mesmo enquanto ela os colocava. O motorista passou pelo corredor conferindo se o número de passageiros à bordo batia com o número de bilhetes de passagem que foram entregues a ele, voltou, nos instruiu sobre o uso do cinto de segurança (que ninguém usa), falou das paradas que seriam feitas durante a viagem, nos desejou boa viagem, entrou na sua cabine, fechou a porta, deu a partida no ônibus e começou a nos conduzir ao nosso destino.
Assim que pegamos a estrada, comecei a ouvir um barulho como se alguma pessoa estivesse tentando abrir uma embalagem, olhei para o lado, era a minha vizinha de poltrona tentando abrir uma bala, mas suas unhas excessivamente compridas a atrapalhavam nesta difícil tarefa, pois a bala era muito pequena diante daquelas enormes espadas vermelhas. Voltei a olhar para a estrada, mas continuava a ouvir aquele barulhinho, era uma situação um tanto quanto engraçada. Algum tempo se passou e finalmente o barulhinho cessou, pensei comigo mesmo: "Que luta, hein?! Como a busca pela 'beleza' é capaz de transformar uma tarefa tão simples literalmente em uma peleja". Foi então que a situação começou a perder a graça. De início era só mais um barulhinho como o da embalagem sendo aberta, só que este se parecia mais com o barulho de um botão daqueles que a gente fecha apertando, mas em meio a todo aquele silêncio o ruído foi se transformando em um estrondo, como se fosse um bate-estacas. Fiquei prestando atenção para ver se descobria de onde ele vinha. Era a bala que aquela senhora estava chupando, ela não a deixava quieta, fazia com que rodasse a boca toda e ficasse batendo nos seus dentes, eles eram as "estacas". É o tipo de coisa que normalmente a gente deixa para lá, nem presta atenção, mas no contexto em que eu estava não havia como não ouvir. Mesmo assim, deixei para lá, uma hora aquela bala iria acabar mesmo.
Passados uns 10 minutos, o silêncio voltou a reinar. A bala acabou, eu sabia, e nem demorou muito. Não demorou muito também para eu começar a ouvir novamente o barulhinho da embalagem de mais uma bala sendo aberta. Mais 10 minutinhos daquele barulho chato da bala batendo nos dentes? Dá para aguentar, passa rápido, tiro de letra. Só que não foi bem assim, não passou tão rápido, pois agora o bate-estacas se intercalava com uma pistola de rebite. Cada vez que a bala era pressionada no céu da boca e chupada, a língua produzia um som como um tiro ao se desgrudar de lá, era o vácuo que se formava. Estes 10 minutos foram mais longos que os primeiros. Então, aquela mão com longas unhas vermelhas se enfiou na bolsa e sacou mais uma bala, depois outra, e mais outra. Acho que ela tinha um saco de balas lá dentro. Sempre que eu achava que estava acabando, ela abria outra e enfiava na boca, cada vez com mais destreza. Parecia que ela havia aprendido um macete para abrir as embalagens, as unhas não atrapalhavam mais.
Aquilo estava virando uma tortura, mas eu não podia mudar de assento, muito menos sair do ônibus. Deu vontade de tomar o saco dela e jogar pela janela, mas os ônibus de hoje em dia não têm janela. Depois deu vontade de jogar aquela mulher pela janela, mas os ônibus de hoje em dia não têm janela. Deu até vontade de pular pela janela, mas os ônibus de hoje em dia não têm janela.

Nos anos 90, os bailes para dançar tocavam principalmente Dance Music, mas um outro estilo estava cada vez mais presente, o Freestyle, que também era chamado de Miami Bass. Todo mundo que é dessa época sabe quem são Tony Garcia, Stevie B e Afrika Bambaataa. Mesmo quem não sabe, pelo menos cantarola uma ou outra de suas músicas. Até quem não gostava.
Nessa época, quem era adolescente ficava doido para completar 16 anos e poder sair sozinho (sem os pais) à noite, mas, para isso, era necessário convencê-los a ir com a gente ao Juizado de Menores, preencher e assinar uma autorização. Depois de conferir a papelada, o Juizado confeccionava uma carteirinha com a nossa foto, nossos dados e a autorização. Assim, a gente já estava liberado para ir nos shows e bailes, mas tinha que esperar o dia da mesada e insistir muito para os nossos pais deixarem.
Quando comecei a ir em bailes, eles começavam às 19h e iam até às 22h. Acho que esse horário era por causa da idade da gente, o que, também, não nos permitia entrar na área do bar, que ficava no andar de cima. A gente tinha que beber nos bares pelo caminho para depois entrar e, quando o baile acabava, a gente voltava para os bares.
O que prevalecia nesses bailes ainda eram os cantores internacionais, mas já surgiam os primeiros remixes dessas músicas feitos por DJs brasileiros, como o DJ Marlboro, por exemplo. Depois vieram os primeiros MCs brasileiros, que gravavam suas músicas usando as batidas estrangeiras prontas, algumas eram só versões mesmo. Surgia, assim, o Funk Melody e o Charme, um mais dançante e o outro mais romântico.
Enquanto Latino, Copacabana Beat, MC Marcinho, Claudinho e Buchecha, entre outros, cantavam seus sucessos em todas as rádios e programas de TV, equipes de som, como a Furacão 2000 e a Pippo's, promoviam bailes gigantescos com vários DJs tocando montagens e MCs cantando. Foi assim que surgiram os paredões de som, disputas de Lado A e Lado B, rivalidades e brigas e os bailes começaram a ser proibidos em todo o Brasil.
Os donos das equipes, que agora já eram empresários, lutaram pela liberação dos bailes, com regras para os frequentadores, e por uma legislação. Eles conseguiram voltar a promover seus eventos, mas naquele momento já estava surgindo o Funk Proibidão, que tocava em bailes clandestinos e estava se popularizando. No Proibidão, o que reina são os palavrões e a descrição explícita que o MC faz de sua vida íntima. Acabaram as letras, acabou a melodia e acabou, também, o meu gosto por este estilo musical. Restaram apenas, numa gaveta do guarda-roupa, uns CDs dos anos 90, que às vezes ouço no meu antigo Discman.

Ele surgia de repente, assim "do nada", no calçadão da cidade. Trazia toda uma parafernália: uma haste de aço que sustentava um aro de bicicleta com várias facas, uma mão de borracha, um jornal, um saco de pano que parecia um coador de café e uma caixa de madeira com tampa. Com uma garrafa pet cheia de água, controlando a quantidade que saía com o dedão, demarcava um círculo delimitando até onde as pessoas que paravam para assistir, podiam se aproximar.
Todo mundo que passava por ali parava, nem que fosse só para ver o que estava chamando a atenção de tanta gente, mas a maioria ficava por mais de cinco minutos, alguns até se atrasavam para o trabalho, para um compromisso ou para a aula porque ele anunciava que iria pular pelo aro com as facas arriscando sua vida ou que iria fazer uma mágica, mas antes contava umas histórias da época que era criança e a família passava fome ou de como um mágico famoso tinha criado aquele truque que ele iria mostrar.
Um auxiliar ia passando por nós com um chapéu nas mãos: "- Quem puder contribuir, pode dar qualquer quantia, o que o seu coração mandar, porque eu tenho certeza de que Deus vai te dar em dobro. Quem não puder dar nada, não tem problema, não, pode continuar assistindo do mesmo jeito". Quando ele terminava de passar por todos os espectadores, pegava a garrafa pet e novamente fazia o círculo que separava o espaço "deles" do "nosso". Feito isto, ia até a caixa de madeira, levantava a tampa, tirava lá de dentro uma sacola cheia de pequenas latinhas metálicas e abaixava novamente a tampa. Novamente ele vinha passando por nós enquanto o outro anunciava: "- Nessa pequena latinha está um dos remédios mais potentes que existem lá no Norte, é a Banha do Peixe Elétrico. Ela cura dor de barriga, dor de cabeça, dor nas juntas, é bom pra bronquite, asma, tira inflamação do ouvido, trata unha encravada entre outras, é só passar no local da dor ou ferver na água colocar numa bacia e fazer a inalação com uma toalha cobrindo a cabeça". O auxiliar passava um pouco nas palmas das nossas mãos e mandava cheirar do outro lado para sentir o cheiro porque ela atravessava a pele, a gente cheirava e sentia um cheiro parecido com o do Vick VapoRub, que, na verdade, era tão forte que, mesmo estando na palma da mão, dava para ser sentido até de uma certa distância. Era um "remédio" bem caro.
Finalmente, depois de tanta enrolação, ele havia decidido fazer uma mágica: "- Mãozinha! Anda um pouquinho pra mim!", bateu palmas e aquela mão de borracha que estava no chão se movimentou para a frente. Em seguida, pegou o jornal, entornou um pouco de água no meio, o folheou e depois o virou devolvendo a água para o copo. Ao terminar, tirou o relógio do braço, enfiou no "coador de café", pôs no chão e bateu várias vezes com um martelo, depois chacoalhou as peças soltas do relógio no chão, as pegou, pôs de volta no saco de pano falou as palavras mágicas: "- Aite naite fraite, naite fraite de fisolofaite" e eis que lá estava o relógio inteirinho, exatamente como era antes.
Para encerrar, ele disse que faria o número mais perigoso de todos, aquele que poucos tinham coragem para realizar, saltar pelo aro com as facas extremamente afiadas e demonstrou passando uma folha de caderno por uma delas, que a dividiu em duas, e jogando um tomate, que se dividiu em duas metades, que caíram do outro lado. Em seguida, tirou de dentro da caixa de madeira um punhado de pequenos saquinhos de pano branco, cada um costurado com uma linha de cor diferente, os entregou na mão do assistente, ficando com apenas um, que levantou para que todos víssemos enquanto dizia: "- Isto é um patuá, um amuleto pra você levar no bolso, dentro da carteira ou na bolsa pra te proteger e dar sorte. Eu queria distribuir um pra cada um de vocês, mas infelizmente hoje eu tenho poucos aqui e só vou poder dar como agradecimento pra quem der mais de dez reais pra ajudar a gente". Dito isso, se dirigiu ao aro e saltou quase que em câmera lenta e sem esbarrar em nenhuma das facas. Ele realmente era bom, não era só enrolação. Caiu do outro lado dando uma cambalhota e já começou a recolher suas coisas e a agradecer a todo mundo que ficou para assistir o show. Num instante ele já tinha sumido, desaparecia por meses ou anos e, quando menos esperávamos, aparecia novamente "do nada".
Cheguei atrasado de novo.

Há muitos anos eu não ia visitar o sítio da família, mas nesse final de semana, meu pai resolveu reunir a família toda lá. Ele foi antes, na sexta, de manhã cedinho, para garantir que, quando os outros chegassem, tudo já estaria pronto. Ele gosta que as coisas estejam sempre funcionando direitinho e de garantir que não vai faltar nada.
No sábado, logo depois do café, eu, minha esposa e os meninos entramos no carro e partimos para lá também. Quando chegamos no trevo da bica, paramos para beber água. Ah! Aquela água da bica era incomparável, tão fresquinha que era quase gelada. Os meninos não quiseram tomar daquela água, queriam da mineral de garrafinha. Por sorte tinha uma barraquinha por ali que vendia. Aproveitei para comprar também um pacote de mariolas. Liguei para o meu pai para tirar algumas dúvidas sobre o caminho até lá. Ele me explicou e pediu para levar alguns maços de cigarros. Disse que havia uma vendinha no caminho que tinha de tudo. Voltamos para o carro e fomos para lá.
Logo na entrada do velho “secos e molhados” havia um saco de fubá moinho d’água, outro de açúcar mascavo, um de arroz e uma gaiola pequena com umas cinco galinhas espremidas. No teto, um ventilador cinza rodava bem devagarinho. Pendurados numa barra de ferro ficavam algumas linguiças, chouriços e chinelos Havaianas em sacos plásticos transparentes. Nas prateleiras, várias garrafas de cachaça com caranguejos, plantas ou raízes dentro, rolos daquele papel higiênico rosa em embalagens individuais também de papel, detergente ODD, água sanitária, sabão em barra e uma infinidade de outros produtos amontoados e meio empoeirados. A mistura de tudo isso resultava num cheiro muito característico que só quem já visitou um lugar desses conhece.
O balcão de madeira já estava lá há tantos anos que, de tanto debruçarem e apoiarem as mãos, parecia ter recebido uma aplicação de betume. Nele havia uma estufa com salgados, torresmos, ovos cozidos azuis e rosas e um tabuleiro de frissura. Do outro lado, uma antiga balança de ponteiro vermelha da Filizola e um baleiro giratório de três andares todo de vidro e com suas tampas de alumínio. Enquanto eu o girava, ouvia aquele rangido agudo e via a grande quantidade de balas, pirulitos e outros doces que já não via mais desde meados dos anos 90: pirulitos do Zorro, de guarda-chuva, balas Chita, Dadinhos, marias-moles em casquinhas de sorvete (que sempre estavam murchas), suspiros coloridos, balas Soft, pirocópteros, mini-ioiôs, dentaduras de vampiro, apitos, cornetinhas, anéis de plástico e línguas-de-sogra.
O dono da venda me reconheceu e perguntou:

- Como cê tá, rapaz? Cê tá sumido!
- Tô bem. E o senhor?
- Dentro do possível, né? A idade chegou. Tá precisando de que?
- Me dá meia dúzia de maços de cigarro e o troco pode ser uns docinhos sortidos e uns brinquedinhos pros meninos.
- Não vai me dizê que agora cê tá fumando!
- Não moço, é pro meu pai! - respondi como se fosse uma criança.
- Ah, bem! Faz muito bem! Obrigado e boa viagem!
- Obrigado ao senhor!

De volta ao carro, entreguei o saquinho de papel com os docinhos sortidos e brinquedinhos para meus filhos. Um deles pegou, pôs na tampa do porta-malas sem nem olhar o que tinha dentro e voltou a jogar no celular. Pedi que me devolvessem o saquinho. Peguei, enfiei a mão, tirei um pirulito do Zorro, abri e pus no canto da boca. Uma delícia! Quando acabou, fui mastigando o palitinho até chegarmos no sítio.

O despertador do celular tocou. Acordei. Levantei e fui desativá-lo. Havia um pequeno besouro pousado nele. O espantei e ele saiu voando iluminado. Era um vaga-lume.
Notei que a bateria do celular estava acabando e o coloquei para recarregar até a hora de sair para trabalhar. Trinta minutos deveriam ser suficientes para que a carga da bateria atingisse um nível que durasse até a hora do almoço, quando eu a completaria.
Nesse momento fui ver quantas horas eram. Ainda faltavam três horas para o horário que eu havia programado o despertador do celular. Achei estranho, mas voltei para a cama, programei o despertador da televisão, virei para o canto e dormi.
Quando a televisão ligou, levantei-me e constatei que, agora sim, eu havia acordado na hora certa. Pensei que após três horas a bateria do celular certamente estivesse completa. Fui verificar. Novamente o vaga-lume estava em cima do celular. O espantei, ele saiu voando. Peguei o celular. Para minha surpresa, ele continuava com a carga baixa, não dava para levá-lo assim para o trabalho. Voltei a colocá-lo para recarregar, só que desta vez em outra tomada, aquela provavelmente não estava funcionando. Fui trabalhar.
Na hora do almoço, fui outra vez verificar a bateria do celular. Mais uma vez me deparei com o vaga-lume sobre ele. O espantei, ele voou. No entanto, agora todo o seu corpo brilhava, uma luminosidade tão intensa que podia ser notada em plena luz do dia. Esse não poderia ser de maneira alguma um vaga-lume comum. Eu nunca havia visto um que emitisse luz de todo o corpo, nem com tanta intensidade.
Novamente a bateria do celular não havia sido recarregada. Nem um pouco. Aquela criatura estava, de alguma forma, absorvendo a energia dele. O vaga-lume saiu voando pela janela do meu quarto.
Alguns dias se passaram. Comentei o ocorrido com meus familiares. O que ouvi foi que eu estava louco, ou que havia tido um sonho maluco que, por ter sido muito realista, me deixou impressionado. Tentei acreditar na ideia do sonho, mas minha cabeça não deixava.
Resolvi procurar um psiquiatra. Marquei uma consulta. O médico, após ouvir minha história, este pelo menos sem rir, diagnosticou uma mania de perseguição, um tanto quanto paranóica e me receitou um medicamento, o qual, disse ele, era apenas um “medicamentozinho light”, só para me ajudar a lidar com a situação. Tarja preta, mas bem tranquilo.
Mesmo não gostando muito da ideia, resolvi tirar a prova e comecei a tomar o tal remédio. Passei a, quando saía de casa, trancar a porta olhando para os dois lados para ver se alguém me observava e conferia várias vezes se a porta estava bem fechada. Na rua, ficava olhando para trás o tempo todo, pensando que estava sendo seguido por alguém. Qualquer pessoa que me olhasse ou andasse atrás de mim por mais de dez segundos já ouvia um grito: “– O que você quer comigo?”. Isso nunca havia me acontecido antes.
Decidi parar de tomar o medicamento. Passadas algumas semanas, o efeito colateral do remédio desapareceu e minha vida voltou ao normal. Agora sim eu sabia o que era mania de perseguição. Uma coisa horrível. Não queria passar por aquilo nunca mais. Eu não estava louco, nem queria ficar. Não podia ficar dando ouvido a essas pessoas, senão iria acabar ficando.
Eu já estava trabalhando a ideia de que o ocorrido não passara de um sonho lúcido ultrarrealístico, mas ainda queria descobrir o que realmente havia acontecido naquele dia. Aquilo havia sido muito estranho. Aquele vaga-lume não saía da minha cabeça. Foi então que ele saiu. Literalmente saiu pelo meu ouvido e voou pela janela afora para nunca mais voltar.
Chamei um eletricista para dar uma olhada nas instalações elétricas daquele velho apartamento. Um curto-circuito provocado por uma infiltração na parede próxima ao banheiro havia queimado quase todos os fios elétricos que levavam energia para as tomadas, só a da televisão e os apagadores das luzes haviam escapado. Notei que a lâmpada que ficava acima da minha cama era tão forte que me fazia enxergar um ponto luminoso por algum tempo.
Aquele remédio realmente havia funcionado.

"Fede pra danar, mas é gostoso
O bicho é feio, é cabeludo e malcheiroso
Mas no fundo, bem no fundo é saboroso!
Calma, minha gente,
Eu tô falando do gambá!
Ó o Mate! Ó o limão! Limonada! Matê!"

Ele vinha cantando isso aos berros pela praia enquanto batucava com um isqueiro no galão de mate e com uma moeda no de limonada. Andava descalço naquela areia extremamente quente com a maior naturalidade do mundo, enquanto nós, turistas, dávamos umas corridinhas e uns pulinhos para não queimarmos os pés. Usava bermuda e camiseta laranjadas com o desenho de um leão e com o nome da marca Matte Leão, embora não trabalhasse para eles. Na cabeça, um sassá, também laranjado, já encharcado de suor e um pouco sujo de areia. Uma toalha molhada e dobrada duas vezes ajudava a refrescar e não deixava as alças dos galões machucarem os ombros.
A gente, de férias, distraído, procurando relaxar e esquecer os compromissos do dia-a-dia, só quer ficar admirando a imensidão do mar e acaba não prestando muita atenção nas pessoas e nas coisas que acontecem à nossa volta e, por isso, às vezes, acaba tendo a impressão de que só vê essas pessoas de costas ou de que elas não tem cara, mas esta tinha. O fato de cantar uma música tão alto e com uma letra de dupla interpretação fazia com que nunca passasse despercebido, todos queriam saber de onde vinham aqueles versos e olhavam para ele. Assim que percebia que já tinha a atenção de todos, vinha em nossa direção, já sacando um copinho de plástico, daqueles de café, no qual colocava um pouco de mate para a gente experimentar. Entregava a amostra grátis com sua mão calejada, grossa como uma sola do pé, cheia de cortes feitos pela faca que, vez ou outra, escapulia quando estava cortando limões o mais rápido que podia, enquanto tomava conta do mate que fervia na panela, para garantir que a limonada não faltasse para fazer os "meio a meio" no dia seguinte. Em seguida, abria um enorme sorriso de piano por entre uma circunferência branca de protetor solar e nos olhava com aqueles olhos cheios de veias bem grossas e manchas avermelhadas em cima de olheiras bem pesadas. Quando percebia que reparávamos nesses detalhes, pegava o óculos escuro que levava no pescoço, com as lentes totalmente embaçadas de suor, e colocava dizendo que quase não dormia para não deixar a gente na mão na hora que desse vontade de tomar aquele mate geladinho. Cada um de nós pediu um "meio a meio".
Enquanto ele nos servia, contava as dificuldades que passava para sustentar os cinco filhos e a mulher, que não conseguia mais emprego depois de ter sofrido um acidente. Dizia que conquistou tudo o que tem sozinho, com o suor do seu próprio rosto, sem a ajuda de ninguém, só das pessoas que compravam seu mate. Em tudo tinha o seu suor. Tudo era feito com o seu suor. Na minha cabeça surgiu uma pergunta: "- O mate também?". Paguei, agradeci, esperei que ele tomasse uma certa distância e entornei tudo na areia: "- Comprei só para ajudar, nem gosto de mate".

O pessoal lá do bairro adorava o carnaval. Todo ano nessa época era a maior festa, todos se reuniam em uma das poucas casas que tinham uma TV para assistir aos desfiles das escolas de samba de São Paulo e do Rio. Depois vinha a torcida no dia da apuração. Tinha gente que não tinha uma escola preferida, torcia para a que achou mais bonita, tinha quem torcia para essa ou aquela escola, mas a grande maioria torcia para a Mangueira.
O amor por esse período do ano era tão grande que eles até fundaram um bloquinho, que passou a desfilar anualmente pelas ruas do centro da cidade. Os ensaios eram feitos na praça do bairro, cada um trazia o próprio instrumento, que era sempre usado ou improvisado, por causa da falta de recursos, e sem uma boa afinação, pois ninguém entendia muito disso, mas, com toda a vontade e empolgação, acabavam saindo versões meio diferenciadas de sambas e marchinhas clássicos.
Com o passar dos anos, o pessoal foi aprendendo a tocar melhor, a afinar os instrumentos e conseguindo, aos trancos e barrancos, comprar instrumentos cada vez melhores e mais novos. Seguindo por este caminho, foram se organizando cada vez mais, até que um dia o bloquinho virou escola de samba. Escolheram as cores verde e rosa, claro, as mesmas da Mangueira. Ainda ensaiavam na mesma praça, pois ter uma quadra, mesmo que o espaço fosse alugado, ainda estava muito longe daquela realidade.
Ali, naquela praça, começaram também muitos namoros. O pessoal que ia assistir aos ensaios, já tinha até gente que vinha de longe, aproveitava para tomar uma cerveja no bar que ficava do outro lado da rua, para fazer uma fezinha na banca de jogo do bicho, que ficava em uma das antigas casinhas da vila onde antes pessoas moravam, e também para sambar. Enquanto isso, os filhos adolescentes se conheciam, conversavam e trocavam beijos e números de telefone. Várias dessas histórias terminaram em casamento.
Nossa escola de samba também se “casou”. Foi quando a sua maior fonte de inspiração, a Mangueira, se tornou sua madrinha. Daí para frente, vieram vários títulos de campeã, uma sede e a tão sonhada quadra. Enfim, não faltava mais nada.

A ideia era comprar alguns pães, presunto, mussarela, maionese e um refrigerante. Nada de sofisticação, apenas um lanche da tarde.
Saí de casa com uma quantia de dinheiro que acreditei ser suficiente e caminhei até o centro da cidade. Não era muito longe, dava para ir a pé.
Chegando lá, entrei numa casa de frios, ou melhor, quase entrei, pois foi só pôr um pé para dentro da loja e já deu para ver as placas com os preços. O presunto e a mussarela não cabiam no meu orçamento. Risquei da lista.
Segui para o mercado.
No caminho, passei por um boteco, um “pé sujo”, cheio daqueles cachaceiros que estão lá todos os dias, da hora que abre até a hora que fecha. No canto havia uma estufa com alguns salgados que já deveriam estar ali há alguns dias, só de olhar para eles dava azia.
Já no mercado, procurando pela maionese, passei pela seção de frios e resolvi dar uma olhada nos preços. A mussarela definitivamente estava descartada, mas quem sabe o apresuntado no lugar do presunto? Não deu também. Ah! A mortadela! Esta sim! Essa não!
Cheguei à prateleira da maionese. Até que não estava tão cara, mas não dava para comer pura. Então me lembrei do pão. Como posso ter me esquecido dele?! Nosso sagrado pãozinho de cada dia, que nunca faltou na nossa mesa. Ali só tinham pacotes de pães de forma, que, por virem com uma quantidade grande de pães, acabavam por custar mais caro do que eu podia pagar.
Resolvi ir a uma padaria.
Passei pelo mesmo boteco “pé sujo”, que continuava com os mesmos cachaceiros e a mesma estufa dos salgados velhos que davam azia.
O cheiro de pão fresquinho quando se entra numa padaria na hora que está saindo uma fornada é incomparável. Nesse momento me deu tanto apetite que a barriga até roncou…. mas o preço do quilo do pão tinha subido de novo.
Conferi novamente o quanto eu tinha de dinheiro no bolso e fiz uns cálculos. Dá! Dá sim!
Entrei na farmácia que ficava ao lado da padaria, comprei um sachê de sal de fruta e enfiei no bolso.
Voltei ao boteco “pé sujo”. Os cachaceiros ainda estavam lá, e os salgados também. Me aproximei do balcão e pedi meia dúzia de empadinhas.
O lanche da tarde estava garantido.

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Aquele lugar estava cheio de macas ocupadas por pessoas que pareciam estar doentes, mas ali não era um hospital, era imundo e cheirava como um abatedouro, um cheiro forte, ferruginoso de sangue e de carne podre.
Em uma das macas pelas quais passei, havia um menino negro deitado, imóvel. Ele tinha um risco na testa que ia de uma orelha à outra. Impressionado com aquela visão desagradável, resolvi continuar a caminhar pelo local.
Observei que havia também jaulas ocupadas por cachorros. Mas algo estava errado, os cachorros pareciam ter o corpo de uma raça, a cabeça de outra e as patas de uma terceira raça, todas as partes do corpo de cores diferentes. Ao me aproximar mais, percebi que eles tinham costuras em suas juntas, o pelo ora era liso, ora crespo, e eles espumavam muito pela boca. Perturbados com a minha presença, eles começaram a latir muito alto. Achei melhor não continuar naquela direção.
Voltei na direção das macas. O menino negro virou-se para o lado pelo qual eu me aproximava, porém, a parte de cima de sua cabeça se soltou e ficou em cima do travesseiro, como se fosse a tampa de um pote, deixando seu cérebro à mostra. O risco em sua testa era, na verdade, um corte. Então, o menino olhou dentro dos meus olhos, abriu a boca já pálida e sussurrou bem baixinho, sem força nenhuma em sua voz quase inaudível, enquanto apontava para seu cérebro: “– Tá vendo meu cérebro? Eu tô morrendo. A sensação é horrível.”
Não me lembro como saí daquele lugar, apenas que acordei já na minha cama.

-> Esse texto foi baseado em um pesadelo que eu sonhei.

Ele era bem pequeno, tanto o corpo quanto os membros. Sua pele era lisa e brilhosa. Parecia um bebê, mas não um bebê de verdade, estava mais para uma boneca daquelas com as quais as meninas brincam. Ao mesmo tempo, ele se assemelhava também a um boneco de porcelana.
Acordei meio tonto, com as vistas embaçadas. O “boneco” tinha em suas mãos uma faca e ao seu lado um galão cheio de um líquido amarelado. Em sua frente havia uma pessoa de pé, estática, a qual, na medida em que fui recuperando a visão, percebi que estava morta e que era segurada por uma estrutura metálica. Aquele ser estava estripando as entranhas do cadáver. Ele o deixou oco.
Ainda sem conseguir me levantar, mas tentando, me esforçando, presenciei aquela carcaça sendo costurada depois de ter sido enchida com algum material que eu não soube identificar. Após tudo isso, seu órgão sexual foi arrancado e o buraco que ficou foi tampado. Subindo numa escada, o serzinho maquiou o “empalhado” e começou a passar, com um pincel, aquele líquido amarelado e viscoso por todo o corpo do morto. Agora o que se via era um boneco de porcelana em tamanho natural.
Comecei a sentir meu corpo e achei que já poderia me levantar e sair correndo. Mas para onde? Virei a cabeça para a esquerda e vi um pequeno corredor com uma escada no final. Levantei-me e, antes que eu começasse a correr, o bebê-monstro gritou algo que não consegui entender e em seguida surgiu um outro ser, só que esse era gigantesco. Saí correndo. O menor deles então gritou: “- Pega ele!”. O maior respondeu: “- Sim senhor, capitão!”. Após dizer isso, ele veio correndo meio desengonçado atrás de mim. Comecei a descer aquela escada correndo o mais rápido que eu podia, de dois em dois degraus, às vezes pulava uns cinco para terminar de descer aquele lance mais rapidamente. Vez ou outra eu dava uma olhada para trás e não o via, mas ouvia seus passos descendo também. Finalmente cheguei à porta do edifício e fugi para a rua.

-> Esse texto foi baseado em um pesadelo que eu sonhei.

Há algum tempo, mas nem tanto, quando uma criança estava com anemia, fraqueza, tontura e pálida, os avós e bisavós logo "receitavam" feijão feito na panela de ferro, juntamente com pregos, de preferência enferrujados. Toda família tinha alguém que sempre contava: "- Isso vem de muito tempo, passou de geração pra geração, é a sabedoria dos antigos. Funcionou com todo mundo da família, seu tio mesmo era uma criança cheia de problemas, agora olha o tamanho do homão, olha como cresceu e ficou forte!".
Na minha família, não era diferente, digo, era sim, porque o princípio era o mesmo, mas a receita era bem diferente, nós tomávamos a famosa Sopa de Martelo da família. Todo mundo lá em casa já tinha tomado. Todo mundo conhecia e tinha medo daquele martelo velho que era até alaranjado de tanta ferrugem. Ele ficava pendurado lá no fundo da garagem, era muito antigo e foi passando de geração para geração, “curando” todo mundo.
A receita da sopa não era muito difícil, o martelo e algumas batatas eram obrigatórios, pois ele soltava a ferrugem e elas a "chupavam" e acumulavam para depois serem comidas e levarem o ferro para dentro do organismo, assim como o caldo, que era a água suja de ferrugem. Os demais ingredientes poderiam ser qualquer coisa que tivesse na despensa ou na geladeira: cenoura, cebola, abóbora, carne de ontem, ovo cozido cortado em rodelas. Não tinha restrições, tudo e qualquer coisa que ajudasse a disfarçar aquele gosto horrível era bem vindo, mas não adiantava, nada disso funcionava.
Naquela época não se sabia muito sobre o que causava as doenças e como se prevenir. A friagem, por exemplo, era um dos piores males que existiam. Tudo era causado por ela. Não se podia sair na friagem, muito menos se estivesse com os cabelos molhados, nem andar descalço no chão frio para não gripar, se gripasse, com certeza a culpa era dela e era "bom para aprender a obedecer e não sair na friagem". Tudo era meio que intuitivo, por dedução e por similaridade, por isso, tal como o frio causava uma gripe, a febre era tratada com banho gelado e a falta de ferro era tratada com ferrugem. As pessoas tinham mais medo dos “remédios” do que dos sintomas das doenças.

A porta gritou jogando duas moedas sujas no balcão: – Me dá dois cigarros no varejo!
Um cigarro na orelha, o outro na boca: – Tem fogo?
Três puxadas e a ponta já está em brasa. A brasa fica mais forte, mais brilhante – a primeira tragada. A fumaça sai devagar pelas narinas e por entre os dentes. O indicador e o polegar apertam o filtro, tirando o cigarro da boca, o médio bate a cinza – todos eles amarelados nas extremidades, assim como as unhas, essas até a metade. Mãos um tanto quanto nojentas – as palmas suadas e encardidas, uma sujeira preta por debaixo das unhas. Uma ajeitada no boné, que tinha manchas de suor que mais pareciam desenhadas com alguma tinta gosmenta encontrada ao acaso num depósito de lixo. Os dentes, amarelados também da nicotina, após mais uma forte tragada, soltaram uma baforada espessa na cara do balcão, que nela pôde ler com muita dificuldade – uma letra muito miúda e mal escrita – um “obrigado” tão amarelado quanto o recipiente de onde veio. O “obrigado” se desvaneceu com o bater da porta ensebada: – Estranho, não?! Não deve ser dessas bandas... Realmente não é. Nunca foi visto pela vizinhança, quanto menos aqui.
A porta torna a gritar, na mesma altura, no mesmo tom e com o mesmo bafo, que o balcão logo reconheceu: – Me dá um copo de cachaça! Até o risco!
O copo, já pela metade, se dirigiu ao banheiro. Após uns minutos ouviu-se um barulho. A cadeira, que estava mais próxima, levantou-se, toda torta, e entrou no banheiro – as cadeiras costumam ser muito curiosas. Lá dentro podia-se ver que após derramar-se um pouco no vaso brancamarelamarronzado, o copo caiu, bateu a cabeça na pia e se quebrou deixando no chão uma poça de cachaça, que agora já era avermelhada.

Já estava pronto para sair.
Abri a porta da sala e vi que a chuva estava pior do que parecia. Com a casa toda fechada, eu estava me baseando só no barulho.
Fui até a janela que ficava do outro lado, pois de lá dava para ver o ponto de ônibus. Estava tudo branco de tanta chuva que caía e ventava muito, o guarda-chuva não iria dar conta. Fiquei quase meia hora olhando e não passou nenhum ônibus.
Resolvi tirar os sapatos, deixar os pés respirando e à vontade. Meu Deus! Como esses sapatos apertam! Assim que a chuva estiar, calço eles novamente e saio.
Olhei pela janela por mais 10 minutos. Nada. Abri a porta novamente. As poças no chão estavam enormes e as enxurradas pareciam as Cataratas do Iguaçu.
Tirei o paletó e pendurei no cabideiro ao lado da porta. Afrouxei a gravata. Respirar, sim respirar.
Liguei o ventilador, sentei no sofá e pus os pés no pufe.
Comecei a pensar se realmente valia a pena ir àquela festa. Eu nem conhecia as pessoas direito.
Lembrei da minha infância, quando minha mãe me levava às festas das suas amigas, nas quais só havia gente mais velha e nenhuma diversão para uma criança. Na maioria das vezes eu saía andando pelas casas à procura de alguma coisa divertida, mas, vira e mexe, quebrava um item decorativo: um vaso, uma xícara ou algo no estilo.
Às vezes íamos a festas de primos que eu nem conhecia. Na maioria das vezes não dava tempo nem de me enturmar. Ficava meio sem jeito de me aproximar e só observava, de longe, os presentes sendo abertos e como brincavam com eles. Alguns salgadinhos, o parabéns, o bolo, os docinhos e já estávamos voltando para casa.
Neste momento, dei uma olhada no relógio e mais meia hora havia se passado. Olhei novamente pela janela e deu para ver a silhueta de um ônibus passando.
Acabei de tirar a gravata, desabotoei a camisa, arregacei as mangas e tirei as meias.
Fui à cozinha tomar um copo d’água. Na mesa havia um último pedaço restante de um bolo que eu estava comendo há dias no café da manhã, dei a primeira mordida e me lembrei do Toddynho do meu sobrinho, que estava na geladeira. Resolvi tomar, depois era só comprar outro, ele só viria aqui em casa de novo na semana seguinte.
Desta vez o saudosismo veio de forma mais agradável. Lembranças boas foram voltando à minha memória. Lembrei de um videogame que estava guardado desde o final dos anos 90, fui buscá-lo no meio dos meus cacarecos.
Voltei para a sala.
Anos atrás, as garrinhas eram conectadas à entrada da antena da TV, mas agora precisavam de um adaptador. Eu tinha. Conectei tudo, liguei o videogame na tomada e apertei o botão “Power”. Ele funcionou direitinho, exatamente do mesmo jeito que funcionava antes.
Achei na caixa o cartucho do jogo que eu mais gostava de jogar na minha adolescência, soprei embaixo e inseri. A manete boa era a que tinha uma marca feita com corretivo. Peguei ela e virei a madrugada jogando, só de samba-canção.

A raquete de matar pernilongo me proporciona um certo prazer. Confesso que acho esse prazer um tanto quanto estranho, mas sei, também, que o compartilho com muitas outras pessoas. Lá no meu prédio mesmo, já ouvi aquele estalo que ela produz quando algum inseto encosta na sua trama eletrificada vindo de janelas de diversos apartamentos. Tem dias que parece até que estou jogando tênis com um dos meus vizinhos, eu dou uma raquetada de cá e escuto o estalo da raquete dele de lá. Outros dias tenho a impressão que estou ouvindo metralhadoras.
A responsável pelo desenvolvimento dessa raquete deve ser a indústria do entretenimento, que quis trazer a emoção dos videogames para a vida real. Eles pensaram em tudo: elementos do esporte, de jogos de estratégia e de guerra. Caçamos sem precisar de uma licença, nem curso para aprender a utilizar uma arma de fogo. É uma "diversão" que ajuda a descarregar nossa raiva, sede de vingança e a suar um pouco, assim como no esporte.
Existe um ditado que diz que "a vingança é um prato que se come frio", mas quando se trata de pernilongos, a minha vingança é em forma de churrasco. Já disse que eu mesmo acho estranho, mas o prazer de ver aquele mosquito agarrado na raquete enquanto a gente segura o botão e ele vai torrando, deixando subir uma fumacinha, inseticida nenhum é capaz de proporcionar.
Sou sádico? Sou! Mas esse bicho também é. A gente acaba de espantar e ele volta para a nossa orelha. Uma picada na perna ou no braço é ruim, coça, mas o zumbido na orelha é só para atrapalhar a gente a dormir mesmo, ele nem pica ali. Só estou jogando o jogo dele.

Não me lembro bem se o meu primeiro contato com o álcool foi através do Biotônico ou do mimeógrafo. Eu era muito novo e algumas memórias do início das nossas infâncias acabam se perdendo. Ficam só alguns fragmentos e as histórias da família.
Minha mãe conta que eu era “ruim de comer”, por mais que ela tentasse, nunca conseguia me fazer comer nada. A solução foi apelar para o Biotônico. Era só tampar o nariz e enfiar goela abaixo para abrir o apetite. O gosto era meio estranho e forte, mas com o tempo fui me acostumando e depois passei até a gostar e já pedia: “- Manhê! Me dá cachacinha?”. Esse apelido era muito comum, algum adulto lá em casa experimentou e falou, mas depois descobri que as outras crianças também chamavam ele assim. Mais tarde, cheguei pessoalmente à conclusão de que o gosto era bem parecido mesmo. Assim como um dia eu descobri que o Biotônico tinha aquele gostinho de cachaça e passei a desconfiar que tinha álcool alí, os órgãos de fiscalização também desconfiaram, fizeram testes e descobriram que realmente tinha. A fórmula teve que ser mudada para poder continuar vendendo.
Já no caso do mimeógrafo, este não me foi apresentado em casa, foi na “rua”, ou melhor, na escola. Os professores pegavam um pacote de Chamequinho, que os nossos pais tinham que levar todo início de ano letivo, e uma garrafa de álcool, colocavam cada um no seu devido compartimento, o “original” da prova na bandeja e começavam a girar a manivela, por isso diziam que iam “rodar” a prova. A folha entrava branca e saía uma cópia quase perfeita daquele “original”, só que da cor azul e com um cheiro muito forte de álcool. Descobrimos que cheirar aquelas folhas “dava onda”, a gente ficava meio tontinho, era o “barato” da molecada. Com o tempo, o mimeógrafo foi sendo superado pela tecnologia, principalmente quando ela começou a baratear. As cópias ficaram mais fiéis aos originais, inclusive a cor preta dos textos das provas. O cheiro já não fazia mais parte do processo e não se fala mais em “rodar” as provas, agora elas saíam automaticamente e numa velocidade muito maior.
Na minha memória ficaram gravadas aquelas sensações da minha infância: o gosto, o cheiro e a “onda”. Quando cresci, as encontrei de novo em um bar qualquer, dentro de um copo. Foi como ter nas minhas mãos a nostalgia em forma líquida para beber. E ainda tem gente que pergunta: “- Por que você bebe?”.

Toda vez que pego um ônibus, para qualquer bairro que seja, sempre tem alguém comendo uma coxinha ou um pastel num saco de papel pardo com uma mancha úmida de gordura. A pessoa abre o saco, puxa o salgado um pouco para fora, dá uma mordida, passa a língua entre os lábios para tirar os farelos, enfia o salgado de volta no saco e começa a mastigar, tampando a boca com umas das mãos. Tudo isso com uma postura encurvada, quase corcunda, e um olhar desconfiado para os lados, como se estivesse comendo escondido, com medo de alguém pedir um pedaço. Eu que não seria. Nem aceitaria se me oferecesse. Mas só pelo egoísmo, fico desejando que tenha uma baita duma azia.
Acho que nem todo mundo pára para pensar com mais frieza nos detalhes da forma que deveria. Além do ônibus não ser o local mais indicado para se fazer um lanche, por causa da quantidade enorme de gente que colocou as mãos no mesmo lugar que você, pessoas de higiene duvidosa, por exemplo, não se pode esquecer que você pegou no dinheiro para pagar o salgado e a passagem. Qual foi a mão que segurou aqui e ali? Qual foi a que pegou no dinheiro? Qual vai segurar o saco engordurado? Qual vai puxar e enfiar o salgado de volta no saco?
Quando vejo uma pessoa comendo naquele lugar, tudo isso passa pela minha cabeça e meu estômago já fica embrulhado. Se estiver com fome, perco o apetite na hora. Mas ela, não! Ela está lá, com aquela mão suja, se deliciando com aquele salgado como se ele fosse a refeição mais deliciosa desse mundo, tão gostosa que vai mastigando, mastigando, mastigando e nunca engole. Na maioria das vezes demora uns 10 minutos para dar mais uma mordida. Sempre deixando cair um monte de farelos na blusa que, se for de lã, que é a que agarra mais, acaba virando uma árvore de Natal de casquinhas de pastel, pedacinhos de carne moída, fiapinhos de frango, entre outros “enfeites”.
Mas o pior de tudo mesmo é a pessoa ser egoísta. Apesar de estar comendo um lanche gorduroso, sujo e babujado, ela acha que todos os outros passageiros do ônibus estão mortos de fome a ponto de não conseguir esperar chegar ao destino para comer alguma coisa e cobiçam seu salgado como se ele fosse a última comida disponível na face da Terra. Cada vez que o ônibus pára em um ponto, parece que dá para ver escrito na cara dela: “menos um” ou “menos dois”.
Chega uma hora que, por estar satisfeita, ou por estar com muito medo de dividir, a pessoa simplesmente pára de comer, guarda o restante no saco, dobra ele várias vezes e guarda dentro de uma bolsa ou mochila para terminar mais tarde. O que acontece depois, nunca vou saber. Eu sempre desço antes.

Já repararam na quantidade de gente que desmaia em pontos de ônibus? A pessoa está parada, às vezes até conversando com outra, e simplesmente, do nada, cai no chão.
Por diversas vezes perguntei a conhecidos meus se eles já repararam nisso, mas a resposta sempre foi negativa. Nunca presenciaram sequer um desses casos. Fico com a impressão de que isso só acontece perto de mim, como se fosse uma perseguição. Sempre estou por perto e me pedem ajuda. Ajudar como?! Tem que abrir espaço para deixar a pessoa respirar e ligar para uma ambulância! Em vez disso, ficam todos em cima da pessoa, nessa hora aparecem curiosos de todos os cantos, e pedem ajuda para levantar a pessoa e sentá-la no banco. Para que?! A pessoa está desmaiada, inconsciente, ela tem que ficar deitada, com o corpo relaxado. E a gente ainda vai ter que ficar escorando para ela não cambalear e cair. Mas se falar isso, começam a achar que você está de má vontade, que não está querendo ajudar.
Às vezes fico tentando imaginar como foi o dia daquela pessoa ou o que houve com ela para que isso acontecesse. Será que foi uma rotina estressante de trabalho? Uma caminhada muito longa? Muitas horas sem comer? O sol muito forte? Acho que nunca vou descobrir. Não dá para saber o que se passa na cabeça de outra pessoa ou qual foi a sua rotina naquele dia. Também não vou ser invasivo ao ponto de esperar ela acordar, me aproximar e perguntar, não sou tão intrometido. Confesso que até fico tentado, mas me seguro. Ah! Se curiosidade matasse...
Certa vez aconteceu algo parecido comigo. Após um dia inteiro numa rotina estressante de trabalho, tive que fazer uma caminhada longa, estava sem comer há algumas horas e o sol bem forte. No meio dessa caminhada, comecei a me sentir mal, um pouco tonto e achei que fosse desmaiar. Mas foi no meio da caminhada! Por que essa gente deixa para desmaiar do meu lado, ali no ponto de ônibus, depois de já ter chegado e já ter parado, quando já está descansando? Vai saber.

A Coca-Cola da garrafa de vidro é muito mais gostosa que a que vem nas outras embalagens. Acho que isso é unanimidade. Mas por que? O que ela tem de diferente? Será que o material da embalagem muda o gosto dela?
Hoje em dia existem vários tipos de embalagem para refrigerantes, cervejas e sucos, mas, quando eu era um pré-adolescente, não. Nada de latinhas e garrafas de plástico de todos os tamanhos, tudo vinha em garrafas de vidro. Cerveja e guaraná vinham nas de 600 ml marrom, já a maioria dos outros refrigerantes, vinham nas de 290 ml, a famosa KS.
Naquele tempo, a gente ia numa lanchonete, padaria ou bar e pedia um salgado e uma Coca. Quando o atendente abria a tampa da garrafa, o bico sempre ficava com um anel de ferrugem. A gente não estava nem aí, colocava na boca e ia logo bebendo. Depois era a vez de dar uma mordida no salgado, que vinha num prato de alumínio, em cima de um papel retangular e coberto por dois guardanapos.
Acho que o verdadeiro diferencial da Coca KS está na memória de outros tempos, de momentos felizes, talvez até no gosto de ferrugem. Pode ser também que a mistura de tudo isso crie um sabor mais complexo: o gosto da nostalgia.

Já não aguentava mais o barulho que vinha daquela boca mastigando, da língua passando a comida de um lado para o outro dando estalos. Aquilo me dava arrepios e calafrios. Eu já tinha perdido a fome. Tentei sair disfarçadamente da mesa, mas aquela mão engordurada da coxa de frango que havia comido segurou meu braço. Me perguntou onde eu ia. Respondi que ia ao banheiro. Começou uma conversa unilateral comigo. Ainda havia um restinho de comida na ponta da língua, aquele que a pessoa dá mais uma mastigadinha de vez em quando, mas que nunca acaba. Os dentes exageradamente espaçados e projetados para fora, daqueles que obrigam a pessoa a fazer biquinho para conseguir fechar a boca, tinham restos de queijo grudados entre si e, de vez em quando, entre um perdigoto e outro, um pedacinho também "voava" na minha direção. Eu ficava tentando me esquivar, mas, vez ou outra, um deles acabava atingindo minha camisa. Senti um tocar o meu queixo. Tive ânsia de vômito, aquela coisa azeda subiu pela minha garganta, mas, antes que chegasse à boca, consegui segurá-la e fazê-la retornar para o lugar de onde veio.
Com muito custo, consegui finalmente ir ao banheiro, mas a mão não me soltou enquanto não chegamos à porta dele. Quis me acompanhar para mostrar o caminho, sem parar de falar um único minuto. Acho que me contou a história da família inteira, mas não consegui prestar atenção em nada. Assim que entrei, já fui direto para a pia, joguei água na cara, molhei um pouco os cabelos e a nuca. Enquanto isso, me aguardava na porta para me acompanhar de volta à mesa. Demorei bastante, mas ainda era aguardado incansavelmente. Me perguntou se estava tudo bem. Respondi que sim, que já estava terminando. Saí e fui recebido com um enorme e indigesto sorriso. Me deu azia. Na verdade, eu já estava sentindo, mas não na mesma intensidade que agora.
Antes que segurasse meu braço novamente, eu disse que precisava de um sal de frutas, pois havia comido algo que me fez mal. Seu semblante mudou, a simpatia exagerada virou raiva. Um ódio mortal. Me disse que era impossível que algo que comi pudesse me fazer mal, pois tudo foi feito com ingredientes frescos comprados nas lojas mais caras da cidade e com muito amor. Disse que eu não sabia o que era isso, que eu não tinha amor pela minha família e nem tampouco tinha educação. Me expulsou de sua casa dizendo que eu era muito grosso e mal-agradecido. Disse que não era para eu voltar nunca mais, pois não era mais bem-vindo. Saí aliviado e, sem querer, acabei deixando escapar um “obrigado”.

Um dia eu estava numa lanchonete comendo uma empada de queijo e ouvi uma pessoa falar que os homens geralmente não gostam de empada, mas as mulheres sim. Não disse o motivo e nem deu mais nenhuma explicação, apenas “deixou no ar”. Fiquei com isso na cabeça. Gosto muito de empada, ainda mais se for a de queijo, e isso me intrigou.
Sou um apaixonado pela empada de queijo desde criança, é uma paixão que chega a ser quase amor. Desde a primeira vez que coloquei uma na boca, ela já foi entrando e ocupando um lugarzinho no meu coração, como se fosse um quartinho que estava disponível para aluguel há muito tempo e finalmente tinha aparecido um inquilino que paga em dia, não faz barulho e não reclama de nada. Acho curioso ela ser a única que não tem aquela “tampinha” de massa cobrindo, o recheio dela é exposto, e isso parece que influencia a minha vontade de comer, eu vejo o recheio e parece que já começo a sentir um pouco do gosto. Ela é honesta, não tem nada para esconder.
A empada é um dos salgados mais populares do Brasil, ela é feita com aquela massa podre deliciosa que desmancha na boca e com todo tipo de recheio que a gente pode imaginar: frango, camarão, palmito, carne moída, queijo, etc. Agora tem até empada doce! No lanche da tarde ou em festinhas de aniversário de criança, numa confraternização ou num coffee break, ela é presença certa e indispensável, quase obrigatória. Por que os homens não iriam gostar? Será que as mulheres têm uma sensibilidade diferente da dos homens também em relação à empada? Será que eu tenho um lado feminino quando se trata de lanchar?
Passei a observar as pessoas que entram nas lanchonetes onde estou lanchando e o que elas pedem. Não foi por uma semana, por um mês, trimestre ou semestre, foi por anos. Nunca vi um homem pedir uma empada.

Tem gente que, quando vai contar alguma coisa para a gente, conta de uma maneira que dá a impressão de que tudo o que ela fez foi melhor do que o que a gente faz. Não estou falando de pessoas que contam vantagem, que se gabam ou se acham superiores, mas daquelas que descrevem o que fizeram “com gosto”.
Todo mundo já conversou com alguém que contou como foi o seu dia, tudo pelo que passou e teve que fazer naquele dia, como ficou cansado, sem forças e sem disposição, mas que, quando chegou em casa, tomou AQUELE banho e saiu com as energias renovadas. Tem também quem conte que estava com muita fome e, quando foi almoçar, comeu AQUELA macarronada, ou qualquer outra comida, o que importa é a ênfase que a pessoa dá na hora de contar.
Acho que eu nunca tomei um banho, nem comi nada tão bom que tivesse merecido o adjetivo “AQUELE (A)” com essa ênfase toda. Já tomei banhos que foram revigorantes, mas nenhum deles foi AQUELE, já comi comidas deliciosas, mas nenhuma delas também foi AQUELA. Talvez eu não esteja fazendo essas coisas do mesmo jeito ou no mesmo lugar que as tais pessoas que contam fazem.
Para falar a verdade, acho que nem essas pessoas chegaram a tomar um banho ou a comer algo tão bom assim, o jeito como elas contam é que parece criar um outro mundo dentro das nossas cabeças, onde tudo é melhor. Elas gesticulam de uma maneira diferente enquanto descrevem o banho que tomaram e falam com a boca cheia d’água e como se estivessem sentindo o sabor enquanto descrevem as comidas que comeram. É tudo o jeito. E eles têm o jeito. AQUELE jeito.

Engarrafamento numa sexta-feira depois do expediente ninguém merece. As quatro pistas paradas e eu doido para chegar em casa. Não anda de jeito nenhum, meia hora já e não saio do lugar, nem um centímetro. Há muito tempo não engarrafava desse jeito, por isso eu já tinha feito até planos para o fim de tarde e noite. Comprei a bebida e os tira-gostos. Ia ser só eu e ela, era só chegar, ligar, tomar um banho, me arrumar e esperar. Mas engarrafou. Justamente nessa sexta.
Passou um vendedor de biscoito, desses que sempre aparecem do nada nos engarrafamentos e a gente nunca sabe de onde eles surgem e se já sabiam que iria engarrafar ou como eles conseguiram comprar tanto biscoito assim de última hora. Ele chegou do lado do carro, enfiou a mão pelo vidro da porta, segurando aquele saquinho branco com o desenho do bonequinho com um cabeção redondo, e disse: "- Biscoito Globo, freguês?! É o maior sucesso!". Eu detesto esse biscoito, ele é horrível, tão horrível quanto ser chamado de "freguês" por um vendedor. Agradeci e perguntei se tinha água mineral, ele respondeu que não, mas que tinha um camarada que vendia e ia mandar ele vir trazer para mim.
Agora já tinha uma hora que eu estava parado ali. Ou melhor, tinha andado mais ou menos um quilômetro, mas não fazia muita diferença. Nada de água, a camisa e a calça encharcadas de suor e colando na pele. A garganta seca e a cabeça já começava a doer. Liguei avisando que ia atrasar, disse que não aguentava mais esperar, ela disse que também não.

- Água aí, freguês?
- Ô! Finalmente!
- O camarada do biscoito falou que você queria água.
- Sim. Quero sim. Me dá duas.
- Tá na mão, freguês!
- Graças a Deus! Você me salvou.
- Tamo aqui pra isso, freguês. Agora deixa eu ir naquele outro carro ali.

Abri uma das garrafinhas e já tomei metade da água de uma vez só, sem parar para respirar. Deu uma aliviada na secura. Comecei a sentir fome, poderia comer qualquer coisa. Menos aquele biscoito. Argh! Aquele não!
Mais meia hora e só tinha andado mais uns 700 metros. Liguei de novo para ela cancelando o encontro: "- Marcamos para amanhã, pode ser?". Respondeu que tudo bem. A fome foi aumentando, mas aquele biscoito...
Comecei a pensar em tudo o que poderia ter rolado naquele fim de tarde e noite com ela, em como teria sido bom, mas ia ter que ficar para amanhã. Pensei na bebida e nos tira-gostos. Eu tinha comprado tantos tira-gostos gostosos, mas eles estavam tão longe. Aqui o que reinava era só o Biscoito Globo e eu já estava entendendo porque ele era "o maior sucesso". Não tinha escolha, não tinha outra coisa para comer ali a não ser o biscoito do saquinho branco com o desenho do bonequinho com um cabeção redondo. Avistei pelo retrovisor um vendedor passando com um saco transparente lotado desses saquinhos. Ele estava meio longe, então saí do carro e, com as duas mãos em forma de concha em volta da boca, berrei:

- Ô BISCOITO GLOBOOOOOO!!!

O anúncio dizia que era uma quitinete, mas aquilo não era tão grande quanto uma. Na verdade, comparada com aquele cômodo, uma quitinete pareceria mais um apartamento de luxo. Mas eu precisava mudar rápido e tinha pouco dinheiro, ia ter que servir. “A pressa é inimiga da perfeição”. Eu não queria ter pressa, fui obrigado a ter, nem queria nada perfeito, mas aquilo era imperfeito demais.
Quando a situação está insustentável, a convivência está impossível, é melhor mudar. Mudar tudo: a cabeça, a forma de agir e reagir, as pessoas, a mobília, a decoração, o ambiente, os ares, em resumo, TUDO. Não queria mais aquilo tudo que me cercava, me apertava e me limitava. Um espaço só meu, por menor que fosse, não me daria tanta claustrofobia. Mesmo tendo pouco espaço para o ar, ele seria mais puro. Por não caber muita coisa, não teria decoração e nem muita mobília, só o básico, bem minimalista, mas, o mais importante, sem ninguém para dizer como, onde, quando ou porque. Só eu morando ali. Ali e na minha mente.
Aquilo não era uma quitinete, era só um quarto, uma suíte. A porta de entrada não abria por completo, ela batia na cama, e eu, que estou acima do peso, tinha que entrar de lado. Já continuava nessa posição para passar no espaço entre a cama e a única parede na qual ela não estava encostada. Assim, eu chegava num ponto no qual já conseguia sentar, com os joelhos encostando na parede. Se continuasse andando, chegaria ao banheiro: uma privada, um chuveiro, quase em cima dela, e uma mini pia, sem porta. Na outra parede, uma prateleira onde eu deixava, ao lado das minhas roupas, um fogareiro elétrico e uma panela, o suficiente para preparar um miojo e cozinhar uns ovos. Um pouco acima da cabeceira da cama, um basculante bem pequenininho era o meu “ar condicionado”. O vento soprava a cortina na minha cara o tempo todo, precisei comprar uma nova, sou alérgico a mofo.
A minha cabeça também estava mais ou menos assim, parecendo bastante com esse quartinho. Mas, aos poucos, passou a parecer mais com uma quitinete, depois com um apartamento normal e, quando me dei conta, já era uma cobertura de frente para a praia. Eu estava pensando nisso enquanto folheava um jornal. Quando cheguei nos classificados, li um anúncio que dizia: “Você se sente só? Saia da solidão…”. Nem acabei de ler, cortei aquele quadradinho com a mão mesmo, deixando um buraco no jornal, piquei em pedacinhos bem pequenininhos e joguei pelo basculante. Continuei minha leitura.

"- A cigarra é um bicho muito chato, né vô?
- Você acha?
- Eu acho, ela fica fazendo esse barulho chato sem parar.
- Eu gosto. Ela tá anunciando que o verão tá chegando.
- Eu tenho medo dela porque ela é muito grande.
- Ela não faz mal nenhum pra gente, não. Coitada dela, vem pra anunciar que o verão tá chegando e canta até estourar. Você sabia que ela canta até estourar?
- Não, vô! Ela canta até estourar mesmo?
- Aham! É sério, eu mesmo já vi.
- Viu vô?
- Vi. Ela estoura e fica só a casquinha dela grudada na árvore."

Por muitos anos da minha infância e pré-adolescência, tudo o que eu sabia sobre cigarras era o que eu tinha aprendido com o meu avô. Para mim, ele era o homem mais inteligente do mundo, sabia de tudo, mas eu, que era criança, não sabia quase nada e queria aprender tudo para ser igual a ele.
Todos os netos adoravam ir na "casa do vô", era um desses lugares que têm uma certa magia para as crianças. Lá a gente mexia em tudo o que ele falava que não era para mexer, subia nos lugares que ele falava que não era para subir e tudo mais que não podia fazer. Na estante da sala, dentro de uma portinha trancada com chave, tinha um pote cheio de balas sortidas que ele comprava para chupar durante o dia e para dar para a gente, a que eu mais gostava era a de coco queimado. No banheiro, um pequeno armário de madeira com a parte de baixo fechada por uma cortininha branca, ficavam guardados rolos e mais rolos daquele papel higiênico rosa. Às vezes todos entrávamos na Brasília azul para ir buscar um dos primos, que morava num bairro mais distante, era a maior festa, a maior bagunça.
Enquanto eu crescia e convivia com o meu avô, fui aprendendo um pouco de tudo, ou quase tudo: marcenaria, alvenaria, instalações elétricas e hidráulicas. Aprendi, também, a não jogar, ele detestava jogos de azar, dizia que se fosse feito para ganhar chamaria "jogo de sorte" e sempre repetia: "- Meu filho, teima mas não aposta". Era o homem mais teimoso que conheci em toda a minha vida, mas só teimava quando tinha razão, quando não tinha, apenas calava, menos quando se tratava de chupar picolés, ele era diabético, mas chupava dois ou três em seguida e dizia: "- Esse médico não sabe de nada".
Uma das coisas que meu avô mais me falava era para estudar muito para trabalhar pouco, porque ele tinha estudado pouco e, por isso, teve que trabalhar muito. Ele sempre falava para eu nunca deixar de ir no “culégio” para não passar pelo que ele passou. Assim eu fiz, e foi numa aula de biologia que descobri que as cigarras são insetos e que, após subirem mais ou menos 2 metros no tronco de uma árvore, abrem uma fenda no seu exoesqueleto, de onde saem, agora com asas, deixando só a sua “casquinha” vazia para trás. Naquele dia a cigarra do meu avô morreu.

Era o último dia de carnaval. Havia ao lado da mesa um engradado cheio de cascos vazios de Malt 90 e mais um que em pouco tempo chegaria na metade. A mesa, na verdade, eram duas que juntaram para caber todo mundo, uma coberta com uma toalha verde e a outra com uma toalha vermelha e, por cima, aquele plástico transparente grosso que ficava colando no braço e às vezes dava umas dobras que deixavam o copo meio tombado. Uma travessa de alumínio, daquelas típicas de bar, com uma porção de jiló frito, outra com uma porção de iscas de fígado com muita cebola e uma terceira com uma boa quantidade de torresmo. Sentados sobre as pesadas cadeiras de madeira, uns usavam calças jeans e camisas desabotoadas mostrando os pelos do peito ou um cordão de ouro, outros ainda usavam a mesma fantasia que já estavam usando desde o primeiro dia, já bem suada, suja, rasgada e faltando alguma parte. Das pequenas caixas de som quadradas penduradas nas paredes vinham, entre chiados, as últimas marchinhas e sambas-enredo daquele ano.
Entrei no bar, cutuquei o ombro do meu pai, ele falou para eu pegar o que quisesse, se virou e voltou a conversar com os amigos. Pedi uma daquelas coxinhas que vêm com osso e um Grapette. Quando acabei de comer, pedi para sentar na mesa também, mas meu pai me disse que ali não era lugar para crianças, pois só tinha adultos e só conversa de adulto, me deu um pouco de dinheiro e falou para eu ir jogar no fliperama do lado. Tá aí uma coisa que eu gostava! Ficava horas jogando sem enjoar enquanto esperava por ele.
Sempre que eu chegava no fliper, já ia comprando um monte de fichas. Entregava o dinheiro todo que meu pai tinha me dado para o homem do caixa e ele me dava uma quantidade tão grande de fichas que os dois bolsos da minha bermuda ficavam cheios e, quando eu andava, elas faziam uma barulheira danada. Eu começava a jogar sozinho, meus jogos favoritos eram os de luta e os de corrida, mas depois sempre encontrava um filho de algum dos amigos do meu pai ou uma outra criança que estivesse querendo jogar na mesma máquina que eu estava e a gente começava a conversar enquanto jogávamos juntos. Fiz muitos amigos assim. Às vezes eles iam comigo até meu pai e ele pagava lanche para todo mundo.
Neste dia, porém, o fliper estava fechado e os meninos estavam todos sentados nos degraus que ficavam em frente. Sentei lá também e fui me enturmando, conversamos por horas. Naquela época as crianças faziam isso, era o nosso buteco.

Só de olhar para aquilo já me embrulhava o estômago. Enquanto aquela pessoa almoçava, tomando junto uma lata de cerveja em temperatura ambiente, um líquido viscoso e azedo ia subindo pela minha garganta. Me dava ânsia de vômito.
Uma parada que o ônibus faz no meio de uma longa viagem é importante porque ali a gente desce, estica as pernas, vai ao banheiro, come alguma coisa, alguns fumam um cigarro etc. Mas tem gente que prefere ficar lá dentro mesmo, uns dormindo, outros escutando música, mexendo em seus celulares ou comendo algo que trouxeram de casa. Nem sempre dá tempo de terminarem a refeição e, quando retornamos, acabamos presenciando, de camarote, o grotesco espetáculo.
Era uma colherada, com uma daquelas colheres de plástico, na comida já fria dentro do marmitex, seguida de uma golada na cerveja. E eu imaginando o arroz com feijão se misturando com a espuma morna, com um pouco do gosto do alumínio da latinha, e virando uma massaroca que parecia descer, pelo menos um pouco dela, direto pela garganta, sem nem ao menos ser mastigada. Às vezes escorria um fio da bebida pelo canto da boca e a língua, coberta por um pouco daquilo que estava dentro da boca, logo ia buscar de volta.
Por mais que a gente tente, não consegue parar de olhar para essas coisas. Não sei o que é isso, mas eu virava a cabeça para o outro lado e quando me dava conta, já estava encarando aquela cena de novo. Parece que esse tipo de coisa atrai nossa atenção, é irresistível, é como um imã. Será que o ser humano, por natureza, gosta de se torturar?
Passei todo o restante da viagem suando, com azia e mal-estar. Aquela imagem não saía da minha cabeça. Quando desci do ônibus, peguei minha mala no bagageiro e fui direto ao guichê da empresa para comprar a passagem de volta. Pedi pelo amor de Deus uma poltrona na janela. No corredor, nunca mais!

Um senhor que aparentava já passar dos 60 anos estava agachado em frente à porteira de madeira, de onde partia e retornava uma grande cerca de arame farpado. Levava um cigarro de palha mal enrolado, meio frouxo e torto, no meio do seu bigode amarelado, que deixava subir um fiapo bem fino de fumaça, em contraste com a nuvem espessa que saía pelo canto da boca em longas baforadas intercaladas com pigarros. Usava uma camisa xadrez meio encardida do trabalho na roça, uma calça jeans amarrada com uma corda que servia de cinto, tão apertada quanto nas vezes em que foi usada para fechar um saco no transporte das colheitas, uma bota muito larga para o seu pé, com o cano cortado, toda suja de barro e um chapéu de pescador bem velho e já desfiando. Me aproximei e dei um "boa tarde" que foi respondido com um preguiçoso "taaarde".

- Tudo bem com o senhor?
- Bããão.
- Tô procurando o tio Joãozinho, ele tá?
- Tá.
- Posso ir falar com ele?
- Vai lá.
- O senhor abre pra mim?
- Sim sinhô.
- Ele tá aonde?
- Dendi casa.
- Obrigado! Toma um trocado pra você tomar uma branquinha. O senhor gosta?
- Ô!

Enquanto tratava de alguns assuntos de família com o meu tio, vi que aquele senhor se levantou e foi andando bem devagar na direção do horizonte até sumir. Tomamos café da tarde e nos despedimos. Dessa vez, fui eu mesmo quem teve que abrir e fechar a porteira. Dei umas voltas pela vizinhança, mas não achei mais o "porteiro" da fazenda para me despedir dele também.
Na manhã seguinte, acordei com o telefone tocando na minha cabeceira. Atendi. Era meu tio Joãozinho:

- O faz-tudo da fazenda sumiu. Cê num deu dinheiro pra ele não, né?