

Edson Basilio @edsonbas
Caneta (Nanoconto)
Correndo pelas infindáveis retas, criando curvas onde não há, deixa a sua e a minha marca. É como se a tinta tivesse saído das minhas veias.

Edson Basilio @edsonbas
Na época da minha adolescência, quando iam chegando as eleições, as campanhas dos candidatos eram bem diferentes, eles distribuíam todo tipo de brinde: camisas, canetas, lixas de unha, bonés etc. Além disso, davam festinhas nos comitês de campanha com salgadinhos, refrigerante, música e muito bate-papo. O social, a interação, vinha em primeiro lugar.
Outro tipo de evento que a gente gostava muito eram os showmícios: shows de cantores famosos, contratados por um candidato, que fazia um discurso e depois chamava os artistas para o palco. O show começava e, entre uma música e outra, sempre vinha um agradecimento ao candidato que estava patrocinando, um reforço ao número dele e um pedido para voltar nele. Agora não pode mais, é crime.
A gente era adolescente e ainda não votava, mas aproveitava as festinhas e os shows. Dava para fazer novas amizades e conhecer umas meninas da nossa idade. Às vezes já rolava um beijo no comitê mesmo, outras só depois, no showmício. Era tão bom que a gente saía pelas ruas vestindo as camisas com os nomes e os números dos candidatos como se fossem abadás, carregava bandeiras e colava adesivos para todo lado. Verdadeiros cabos eleitorais, só que de graça, ou quase, nosso pagamento era em salgadinhos e refrigerantes. Muito barato para eles.
As camisas viraram pijamas e, depois, panos de limpeza. As canetas foram de grande utilidade para a gente no colégio, para os pais no trabalho e em casa, para deixar junto com o bloquinho de anotações do lado do telefone. Os bonés eram muito feios e, por isso, a gente não usava nem na campanha. As lixas de unha foram tantas que, até hoje, 30 anos depois, minha mãe ainda tem um monte delas presas com um elástico de dinheiro, e olha que ela usa, está sempre puxando mais uma quando a anterior acaba. As festinhas ainda existem, não participo mais, mas ouço falar que agora rola até churrasco. Os showmícios ficaram só nas lembranças. Já as amizades, muitas ainda duram até hoje.

Edson Basilio @edsonbas
Cheguei tarde. Muito tarde. A rua já estava deserta e o porteiro cochilava com a TV ligada passando um daqueles programas que mostram festas de gente rica ou de suas empresas. Continuei até o elevador. Ainda estava quebrado. Cinco andares. Dez lances de escada. Cinquenta degraus. Ainda não sou um idoso, mas também não sou mais um menino. Abri a porta, entrei e sentei no sofá. Fiquei alí por mais ou menos meia hora. Cansado, suado e com dores pelo corpo.
Sempre achei que faltavam quadros nas minhas paredes. Queria ter plantas também, mas nunca deu certo. Tudo acaba morrendo. Não consigo cuidar. Como cuidar de coisas se não estou conseguindo cuidar nem de mim mesmo? O dia-a-dia tem sido muito maquinal, mecânico. Não me sinto mais um ser vivo, nem um robô. Menos que um robô, me tornei um autômato. Sempre a mesma rotina. Esqueci o que sou, o que sinto e o que tenho.
Pensei que seria bom tomar um banho. Me levantei e fui para o banheiro. Tomei. Foi bom. O banho quente ajudou a relaxar o corpo e a diminuir as dores. Me acalmei e a cabeça começou a funcionar melhor, com mais clareza. E a pensar com menos pessimismo. Como estava com fome, fui para a cozinha preparar alguma coisa para comer. Fazer a própria comida é um tipo de terapia também. Descascar, cortar, temperar, esperar o tempo que cada ingrediente leva para cozinhar. E leva muito tempo. O bastante para pensar. Ah! Se eu tivesse todo esse tempo… Tinha que acordar cedo de novo. Fiz um Miojo.

Edson Basilio @edsonbas
O ano era 1996, nós éramos adolescentes e estávamos passando as férias escolares de julho na praia. Era ano de Olimpíadas e dessa vez seria nos Estados Unidos: Jogos Olímpicos de Atlanta. A gente adorava as Olimpíadas, assistíamos todas as disputas de todas as modalidades.
No primeiro dia em que fomos à praia, ao comprar picolés, descobrimos que a Kibon estava realizando uma promoção na qual a gente poderia ganhar réplicas colecionáveis das medalhas olímpicas. Não lembro se o palito vinha premiado ou se tínhamos que juntar alguns palitos e pagar mais uma quantia em dinheiro, só lembro que em 3 dias a gente já tinha tudo o que precisava para trocar por 2 coleções completas.
Um dos vendedores de picolés nos disse que o único posto de troca era uma confeitaria no centro da cidade. Lá fomos nós. Ao chegar, perguntamos aos atendentes qual deles era responsável pelas trocas, nos disseram que só o dono da confeitaria, o Senhor Gentil, fazia as trocas, mas ele não estava no momento, era melhor voltar no dia seguinte.
Foi então que começamos uma caçada épica ao Senhor Gentil. Sei que já faz muito tempo que é difícil achar uma pessoa gentil por aí, mas o Senhor Gentil era mais difícil ainda. Todo santo dia nós voltávamos na bendita confeitaria, perguntávamos pelo bendito Senhor Gentil e ouvíamos a mesma bendita resposta: "- Hoje ele não está, é melhor vocês voltarem amanhã".
Agosto já estava chegando e, junto com ele, o fim da quinzena e das férias, mas a gente não desistiu e, finalmente, no décimo dia, ao chegarmos na porta da confeitaria, antes de entrarmos ou falarmos alguma coisa, uma das atendentes já foi chegando perto da gente e falando toda animada e sorridente: "- Hoje ele tá! Hoje ele tá! Podem subir que ele tá no escritório lá em cima!".
O Senhor Gentil tinha um quê de Papai Noel: era gordinho, simpático e tinha os cabelos bem branquinhos, só faltava a barba e a roupa vermelha. Atendeu a gente muito rapidamente, nos entregou as medalhas, pediu desculpas pela sua ausência nos últimos dias e se despediu com tanta gentileza que fez jus ao seu nome. Agradecemos, descemos, nos despedimos de todo mundo e voltamos para o apartamento onde estávamos hospedados.
Ao final das férias, voltamos para casa, para a nossa cidade, como se fôssemos atletas voltando das Olimpíadas, com as nossas medalhas, conquistadas, merecidas, assim como as deles.

Edson Basilio @edsonbas
Quando eu era criança, o fiambre parecia ter uma certa magia, daquelas que só as crianças são capazes de sentir. Na verdade, essa magia estava na embalagem, mais especificamente na chavinha que a gente usava pra abrir a lata. Todas as outras latas de todos os outros produtos precisavam de um abridor que se compra à parte, mas a do fiambre não, ela tinha a chavinha.
Sempre que o meu pai voltava do mercado, eu já ia correndo para ver nas sacolas se achava aquela latinha. Quando a achava já ia logo pegando e pedindo para que ele me deixasse abrir, mas sempre ouvia que não, pois poderia cortar meu dedo, eu ficava desiludido e doido para crescer e virar adulto logo para poder girar aquela chavinha que ia arrancando e enrolando uma tira de metal da lata e a dividindo em duas partes, uma maior e outra bem menor, parecendo uma tampa. As duas ficavam com as beiradas cortantes, afiadas como facas.
Meu pai gostava de fazer tira-gosto de fiambre, ele abria a latinha, cortava a "carne" em pequenos cubinhos, juntava com uns pedacinhos de queijo, umas azeitonas, ovos de codorna, cebolas e batatas em conserva e um fio de azeite. Com a porção pronta, era chegada a hora de abrir a garrafa de cerveja super gelada e despejar no copo americano, tinha que ser esse copo, ele que era o copo de tomar cerveja, e tinha que ter dois ou três dedos de colarinho. Em seguida, ele me dava a chavinha e eu ficava brincando com ela o resto do dia. Não me lembro quais tipos de brincadeiras criava, mas, com certeza, em pelo menos uma delas, eu abria uma lata de fiambre imaginária. Eu tinha uma coleção dessas chavinhas e as guardava em um daqueles porta treco de plástico em forma de tubo com tampa de rosca e uma cordinha para pendurar no pescoço e que, naquela época era muito comum em praias e piscinas, pois a água não entrava e podíamos guardar o dinheiro, pois ele não iria molhar.
Todas estas lembranças ressurgiram na minha cabeça enquanto eu fazia as compras do mês no supermercado de costume, mais especificamente enquanto eu passava pela seção dos enlatados. Olhei para uma das prateleiras e dei de cara com uma lata de fiambre. Lá estava ela, entre uma lata de feijoada e uma de salsicha Viena, na última prateleira, lá em cima. Fiquei na ponta dos pés, estiquei o braço, a peguei e joguei no meio das compras que já estavam no carrinho. Passei no caixa, paguei e fui para o meu carro.
Ao chegar em casa, retirei todas as sacolas de compras do carro e as levei para a cozinha, fiz umas 4 viagens. Tomei um banho, pus uma bermuda e uma camisa, abri uma cerveja, enchi dois copos americanos, um para mim e outro para a minha esposa, com aquele colarinho de dois ou três dedos, brindamos e demos o primeiro gole. Me lembrei do fiambre e fui procurar nas sacolas para fazer e relembrar aquele tira-gosto que meu pai fazia. Quando a encontrei, fui abrir, mas ela veio sem a chavinha. Abri com um alicate, fiz a porção, comemos e bebemos. Foi uma noite gostosa.

Edson Basilio @edsonbas
Sonhei com Clarice
Acordei assustado de novo. Daquele jeito que a gente acorda quando sonha que está caindo de um prédio. O corpo deu um salto e caiu novamente na cama. Estava muito escuro, só um amarelado que vinha da luz do poste lá fora interrompia um pouco a escuridão. Olhei para o lado, no relógio já era madrugada. A manhã estava distante. Amanhã estava distante.
Virei para um lado e para o outro da cama por incontáveis vezes, mas não consegui pegar no sono novamente. Fiquei pensando na vida, na passada e na presente. Pensei principalmente nela. Sim, nela! Sonhei com ela novamente. Nunca a esqueci. Nunca! Quase uma vida juntos, mesmo estando separados. Tínhamos, e continuamos tendo, uma relação muito íntima, do "de dentro" dela para o meu "de dentro". Muito de mim é ela. Mas do meu jeito. Às vezes acho que, na verdade, sou eu mesmo, mas do jeito dela.
Quis ir à cozinha tomar um café. Era requentado, mas iria servir. Não consegui me levantar. Meu corpo não respondia. Toda vez que sonho com ela é a mesma coisa. Fico estático, imóvel. Engessado. Mas a cabeça a mil. Fervilhando de ideias, sem ter como tirá-las de lá. Se conseguisse me mexer, pegaria uma caneta e pronto. Com muito custo e suor frio consigo. A caneta funciona como um canudo com o qual eu sugo minha mente. O volume é tão grande que me engasgo, tenho uma crise de tosse e regurgito um pedaço dela.

Edson Basilio @edsonbas
Toda vez que a gente ia beber naquele boteco da esquina, a esposa do dono marcava algumas cervejas a mais na comanda. Ela ficava no caixa porque o marido só confiava nela. Os dois contratavam funcionários apenas para trabalhar na cozinha ou como garçons, eles não podiam nem chegar perto do caixa. De vez em quando, um deles via que ela estava na janelinha passando pedidos para a cozinha e o chefe não estava olhando, parava em frente ao caixa, dava uma reboladinha com as mãos na cintura e saía correndo. A gente morria de rir.
As asinhas de frango com o molho especial da casa eram o carro-chefe. Realmente era um tira-gosto delicioso, mas ninguém sabia o que aquele molho levava e a maioria dos frequentadores preferia nem saber. Outros bares até tentavam copiar, mas ninguém conseguia fazer igual, não acertavam o ponto na hora de fritar e muito menos na hora de preparar o molho.
Quando chegávamos lá, de cara já sentávamos na mesa de ferro forrada com uma toalha de pano em xadrez vermelho e branco, pedíamos uma cerveja super gelada e uma porção de asinhas. Nossas mãos ficavam todas engorduradas e sujas de molho, assim como a boca e em volta dela, mas não existia nada igual. Depois era só nos lavarmos naquela pia minúscula na qual nossas mãos quase não cabiam direito e ficavam esbarrando no fundo. Para usar a torneira, tínhamos que segurá-la com uma mão e abrir com a outra, senão ela rodava junto e a água ia direto para o chão. Ela ficava acima do mictório e a água que descia pelo ralinho já caía dentro dele, era a "descarga". O banheiro era muito estreito, nem dava para virar lá dentro na hora de sair, tínhamos que ir andando para trás mesmo.
Era o típico boteco que nós brasileiros gostamos de frequentar, bem simples, um clássico 100% nacional. O que incomodava era a mania que aquela mulher tinha de "errar" na hora de fechar a conta. Sempre vinham 2 ou 3 cervejas a mais do que a gente tinha consumido. Da primeira vez, ela disse que tínhamos perdido a conta porque bebemos demais. Passamos a guardar as tampinhas das garrafas no bolso para mostrar na hora de pagar, mas ela falava que a gente podia ter jogado algumas fora e que, assim como desconfiávamos dela, ela também tinha o direito de desconfiar da gente. A solução foi impor como condição para continuarmos a frequentar o bar que ela deixasse um engradado debaixo da mesa e as garrafas que fossem esvaziando seriam colocadas nele para conferir no final. Ela nunca mais errou na conta.
A gente até poderia ter trocado de boteco, afinal de contas, existiam dezenas de outros no mesmo estilo espalhados pela cidade, mas aquelas asinhas de frango...

Edson Basilio @edsonbas
Acho que o “Professor” nunca havia dado aula, simplesmente se autodenominava assim.
Ele apareceu um dia na cantina da faculdade e se tornou frequentador. Ficava o dia quase todo por lá, tomava café, almoçava e jantava. Não tinha nenhuma educação para comer, às vezes uma parte da comida que havia acabado de pôr na boca caía de volta no prato e na mesa, enquanto mastigava com a boca aberta e com aquele roach que subia e descia. Já conversei com ele por um bom tempo observando um fiapo de couve que estava pendurado no canto de sua boca, até cair e ficar pendurado no bolso da sua camisa. Tinha uma conversa envolvente, falava sobre tudo quanto é tipo de assunto e, embora emitisse uns assobios por causa do roach mal encaixado, conseguia prender a minha atenção. Andava mancando e levava na mão um livro escrito em alemão com um marcador de página que estava sempre na mesma posição. Gostava dos Beatles também.
Um grupo considerável de pessoas, às quais chamava de “alunos”, parava para ouvi-lo. Enquanto falava, ia tomando água na pequenina tampa da garrafinha de plástico, entre uma tragada e outra num cigarro que sustentava uma torre de cinzas que nunca caía. Quando chegava no filtro, usava o finalzinho da brasa para acender o próximo cigarro. Não me lembro de tê-lo visto sem um cigarro na mão. Não bebia refrigerantes, sucos, nem bebidas alcoólicas, apenas água.
De vez em quando, surgia com um esboço de alguma “invenção” sua rabiscado entre manchas de sujeira num pedaço de papel amassado e esfarrapado. Certo dia trouxe um pequeno instrumento, parecido com um compasso, que serviria para medir qualquer coisa, mediria comprimento, largura, espessura, profundidade, altura etc. Nunca explicou como funcionava. Tudo era misterioso, como se apenas ele dominasse o funcionamento daquelas coisas e o conhecimento sobre os assuntos dos quais falava. Era um “professor” que não ensinava, apenas expunha.
Da última vez que conversamos, o “Professor” prometeu levar, na semana seguinte, um disco raríssimo dos Beatles que havia conseguido comprar após anos e mais anos procurando em todas as lojas, inclusive em outros países. O disco se chamaria “Cucumber Castle”. Ele nunca mais voltou à cantina, desapareceu no mundo da mesma forma que havia aparecido.
Curioso sobre o tal disco raro, fui fazer uma pesquisa e descobri que, na verdade, ele não era nada raro, nem dos Beatles. Era dos Bee Gees e poderia ser comprado em qualquer loja de discos.

Edson Basilio @edsonbas
O clube abandonado é o ponto de encontro da molecada no final de semana, para entrar é só pular o muro. É um pântano, mas é o único clube que eles podem frequentar. E eles adoram.
Já fazia bastante tempo desde que as contas ficaram impagáveis, a administração declarou falência e fechou as portas. As piscinas viraram criadouros de mosquitos, com o fundo escorregadio, coberto de lodo e a água muito suja e marrom.
Numa cidade longe do litoral, não é fácil encontrar lazer que seja refrescante para a família no verão quando se é pobre. Morar perto da praia e ter isso tudo de graça é um privilégio para poucos. Já para quem só tem por perto clubes com mensalidades que não pode pagar, é muito mais difícil.
Rios, lagos e cachoeiras também ficam longe demais para quem mora na cidade e não tem como ir para a zona rural. Na maioria desses lugares, o ônibus, que é a única opção para quem não tem carro, um luxo que está ao alcance de poucos, não vai.
Observar tudo da sacada de um apartamento faz a gente refletir. Costumamos achar que é pouco todo o conforto e aconchego que temos, mesmo que não seja muito, mas o suficiente. Alguns de nós até podem frequentar um clube com os filhos e viajar de vez em quando para o litoral ou interior. E ainda achamos pouco.
Aqueles garotos, que só querem se divertir, como todos querem na infância, voltam para as suas casas sujos, mas felizes, levam uma bronca da mãe, têm que tomar um banho bem rápido para se limpar e, depois, não têm nem um biscoito para lanchar. O jeito é esperar a janta, a sopa diária. Outra água suja. E eles se lambuzam de novo.

Edson Basilio @edsonbas
Sou uma pessoa que tem medo de dentista. Até o barulho da broca, mesmo fora da boca, já faz os meus dentes doerem. Enquanto estou na sala de espera, fico inquieto, não folheio revistas, não aceito copo d’água e, cada vez que escuto aquele barulho, quase vou embora. Algumas vezes já fui. É psicológico isso, não tem explicação.
Quando finalmente sou chamado, primeiro finjo que não escutei, mas na segunda ou terceira vez não dá mais para fingir, tenho que ir. Antes de sentar na cadeira, puxo tudo quanto é tipo de assunto, elogio a decoração, pergunto pela família etc, até que o dentista quase me empurra na cadeira e diz: “- Então vamos lá, né?!”.
Assim que me sento, meu corpo começa a ficar todo duro, um calafrio passa pela minha espinha e todos os pelos do meu corpo ficam arrepiados. Mas é quando o encosto vai abaixando e a cadeira vai subindo que as mãos se travam nos braços dela e o suor começa a escorrer, parecendo que eu acabei de sair do banho e ainda não me enxuguei.
Foi então que surgiu a pergunta que mudou tudo:
- O que você quer assistir?
- Como assim?
- Na TV, enquanto a gente faz o seu tratamento.
- Que TV?
- Aquela ali no teto.
- Você tem uma TV no teto?!
- Sim, agora todos os consultórios de dentista têm.
- Tem tanto tempo que não vou num dentista que nem sabia, isso pra mim é novidade.
- Então, o que vai querer assistir?
- Nada. Nada não. Obrigado.
Pronto! Agora eu tinha um novo medo: o de a TV cair em cima de mim. Tentei aparentar naturalidade enquanto a gente estava conversando, mas não sei se consegui disfarçar. Acho que quanto mais a gente tenta, mais a gente acaba demonstrando.
Desse momento em diante, eu já não conseguia pensar nem enxergar outra coisa a não ser a TV. Era como se eu estivesse dentro de um quarto totalmente vazio onde só tinha eu, deitado na cadeira, e a TV, no teto, pronta para cair. Às vezes até parecia que ela dava umas balançadas, como se fosse uma pessoa ameaçando me dar um soco.
Uma voz disse: “- Prontinho, acabou!”. Era o dentista. Ele já tinha terminado o meu tratamento e eu não tinha percebido. Não senti nada. Não escutei nada. Nem a broca!

Edson Basilio @edsonbas
Não sei como um homem daquela idade aguentava ficar tanto tempo agachado. Quando alguém perguntava quantos anos tinha, ele mandava contar quantas rugas tinha na cara que só assim iria conseguir saber. Ele nunca falava a sua idade, mas dizia que tinha muita experiência, que a saúde estava em dia e que ainda "comparecia com a patroa" e que isso era graças a uma garrafada que preparava com uma mistura de plantas e raízes que aprendeu com o pai e que "dotô" nenhum conhecia, mas que se a gente quisesse comprar, ele vendia os ingredientes certos e ainda ensinava a preparar.
Aos sábados, quando andávamos pelo centro da cidade e passávamos pela praça principal, já ouvíamos logo aquela voz meio metálica que vinha do alto falante, um daqueles antigos que eram mais comuns de se ver no alto de um poste ou em cima da kombi que vende ovos, que funcionava ligado a uma bateria de carro e a um microfone que ficava preso no grosso fio de energia que foi entortado para formar um pequeno círculo em volta dele e outro maior que era encaixado no pescoço do anunciante. A voz dizia: "- Psiu! Ei, você!", e continuava, ora oferecendo a solução para diversos problemas de saúde, ora garantindo que só ali se encontrava o verdadeiro "Viagra Natural".
Da primeira vez que comprei uma planta para fazer chá, foi um pacová. Eu estava com uma azia que não passava nunca, e como se tivesse adivinhado, foi exatamente o que o velho raizeiro anunciou no alto falante naquele dia, exatamente na hora que eu estava passando. Achei tão curiosa a coincidência que acabei comprando o seu produto. Durante uma semana eu tomei aquele chá e finalmente me vi livre da minha queimação. Meu ceticismo em relação à medicina popular havia acabado.
Da segunda vez, minha esposa passava por uma das piores cólicas de sua vida e eu enfrentava a pior TPM de todos os tempos. O velho "receitou" carapiá, um "santo remédio" que a avó e a mãe dele usavam quando estavam "naqueles dias" e era a única coisa que funcionava, elas ficavam bem, cheias de disposição para o trabalho na roça e "calminhas, calminhas". Comprei uma sacola lotada até a boca daquilo e levei para casa.
O preparo do chá era bem simples: ferver, coar, esperar esfriar e tomar. Segui os passos, pus em um copo e ofereci à minha esposa, que já foi logo dando uma golada e, logo em seguida, cuspindo tudo no chão: "- Credo! Que troço horrível! Amarga igual a um não sei o que!". Falei para ela que remédio não é para ser gostoso, é para curar e que o meu também não era bom, mas funcionou. Ela tomou aquele chá todos os dias até o final "daqueles dias". Como não há nada tão ruim que não possa piorar, piorou. O mau humor não passou, pelo contrário, agora havia se juntado com a raiva por ter tomado aquele chá amargo que não funcionou. Sobrevivi, mas nunca mais volto naquele raizeiro.

Edson Basilio @edsonbas
Na minha infância, no auge da minha inocência, eu pensava que antigamente tudo era preto e branco, porque é assim que a gente vê tudo nas fotos daquela época.
Na verdade, de acordo com o que os mais velhos contam, ao contrário disso, tudo era colorido: as roupas, os carros, as casas e a natureza, que convivia com tudo e todos. Muito mais colorido que nos dias de hoje.
Mais gente trabalhava no campo ou em espaços abertos, hoje trabalhamos fechados sem ver nada além de paredes. As poucas cores que vemos chegam pelas telas dos computadores ou celulares.
Para qualquer lado que olhamos, tudo é asfalto e concreto, ruas e mais ruas, prédios e mais prédios. As casas foram diminuídas e empilhadas. Carros pretos, brancos e cinza, soltando uma fumaça cinza. Quase não sobrou mais espaço para a natureza.
Eram tantas cores… mas as câmeras não conseguiam capturar. Agora temos câmeras capazes de capturar muitas cores, mas a vida não tem mais a mesma cor que tinha antes.

Edson Basilio @edsonbas
Entrei no ônibus, minha poltrona era a da janela, coloquei minha bagagem de mão no bagageiro que fica acima das nossas cabeças e sentei. Hoje em dia as janelas dos ônibus não abrem mais, a gente pode até viajar curtindo a paisagem, mas faz falta sentir os cheiros e ouvir os ruídos dos lugares por onde passamos e a sensação gostosa do vento refrescante batendo na cara, estamos presos numa caixa hermeticamente fechada, com um ar condicionado sempre mais frio do que o necessário e um silêncio absoluto.
Uma senhora que aparentava ter acabado de entrar na terceira idade subiu os degraus, passou pela porta que levava da cabine do motorista ao interior do ônibus, olhou para o bilhete de passagem, depois para as plaquinhas que ficam no bagageiro indicando o número das poltronas, voltou a olhar para o bilhete, depois para mim, balançou a cabeça afirmativamente, me pediu licença e se sentou. Me desejou boa viagem e foi pegando seus fones de ouvido, respondi desejando o mesmo enquanto ela os colocava. O motorista passou pelo corredor conferindo se o número de passageiros à bordo batia com o número de bilhetes de passagem que foram entregues a ele, voltou, nos instruiu sobre o uso do cinto de segurança (que ninguém usa), falou das paradas que seriam feitas durante a viagem, nos desejou boa viagem, entrou na sua cabine, fechou a porta, deu a partida no ônibus e começou a nos conduzir ao nosso destino.
Assim que pegamos a estrada, comecei a ouvir um barulho como se alguma pessoa estivesse tentando abrir uma embalagem, olhei para o lado, era a minha vizinha de poltrona tentando abrir uma bala, mas suas unhas excessivamente compridas a atrapalhavam nesta difícil tarefa, pois a bala era muito pequena diante daquelas enormes espadas vermelhas. Voltei a olhar para a estrada, mas continuava a ouvir aquele barulhinho, era uma situação um tanto quanto engraçada. Algum tempo se passou e finalmente o barulhinho cessou, pensei comigo mesmo: "Que luta, hein?! Como a busca pela 'beleza' é capaz de transformar uma tarefa tão simples literalmente em uma peleja". Foi então que a situação começou a perder a graça. De início era só mais um barulhinho como o da embalagem sendo aberta, só que este se parecia mais com o barulho de um botão daqueles que a gente fecha apertando, mas em meio a todo aquele silêncio o ruído foi se transformando em um estrondo, como se fosse um bate-estacas. Fiquei prestando atenção para ver se descobria de onde ele vinha. Era a bala que aquela senhora estava chupando, ela não a deixava quieta, fazia com que rodasse a boca toda e ficasse batendo nos seus dentes, eles eram as "estacas". É o tipo de coisa que normalmente a gente deixa para lá, nem presta atenção, mas no contexto em que eu estava não havia como não ouvir. Mesmo assim, deixei para lá, uma hora aquela bala iria acabar mesmo.
Passados uns 10 minutos, o silêncio voltou a reinar. A bala acabou, eu sabia, e nem demorou muito. Não demorou muito também para eu começar a ouvir novamente o barulhinho da embalagem de mais uma bala sendo aberta. Mais 10 minutinhos daquele barulho chato da bala batendo nos dentes? Dá para aguentar, passa rápido, tiro de letra. Só que não foi bem assim, não passou tão rápido, pois agora o bate-estacas se intercalava com uma pistola de rebite. Cada vez que a bala era pressionada no céu da boca e chupada, a língua produzia um som como um tiro ao se desgrudar de lá, era o vácuo que se formava. Estes 10 minutos foram mais longos que os primeiros. Então, aquela mão com longas unhas vermelhas se enfiou na bolsa e sacou mais uma bala, depois outra, e mais outra. Acho que ela tinha um saco de balas lá dentro. Sempre que eu achava que estava acabando, ela abria outra e enfiava na boca, cada vez com mais destreza. Parecia que ela havia aprendido um macete para abrir as embalagens, as unhas não atrapalhavam mais.
Aquilo estava virando uma tortura, mas eu não podia mudar de assento, muito menos sair do ônibus. Deu vontade de tomar o saco dela e jogar pela janela, mas os ônibus de hoje em dia não têm janela. Depois deu vontade de jogar aquela mulher pela janela, mas os ônibus de hoje em dia não têm janela. Deu até vontade de pular pela janela, mas os ônibus de hoje em dia não têm janela.

Edson Basilio @edsonbas
Nos anos 90, os bailes para dançar tocavam principalmente Dance Music, mas um outro estilo estava cada vez mais presente, o Freestyle, que também era chamado de Miami Bass. Todo mundo que é dessa época sabe quem são Tony Garcia, Stevie B e Afrika Bambaataa. Mesmo quem não sabe, pelo menos cantarola uma ou outra de suas músicas. Até quem não gostava.
Nessa época, quem era adolescente ficava doido para completar 16 anos e poder sair sozinho (sem os pais) à noite, mas, para isso, era necessário convencê-los a ir com a gente ao Juizado de Menores, preencher e assinar uma autorização. Depois de conferir a papelada, o Juizado confeccionava uma carteirinha com a nossa foto, nossos dados e a autorização. Assim, a gente já estava liberado para ir nos shows e bailes, mas tinha que esperar o dia da mesada e insistir muito para os nossos pais deixarem.
Quando comecei a ir em bailes, eles começavam às 19h e iam até às 22h. Acho que esse horário era por causa da idade da gente, o que, também, não nos permitia entrar na área do bar, que ficava no andar de cima. A gente tinha que beber nos bares pelo caminho para depois entrar e, quando o baile acabava, a gente voltava para os bares.
O que prevalecia nesses bailes ainda eram os cantores internacionais, mas já surgiam os primeiros remixes dessas músicas feitos por DJs brasileiros, como o DJ Marlboro, por exemplo. Depois vieram os primeiros MCs brasileiros, que gravavam suas músicas usando as batidas estrangeiras prontas, algumas eram só versões mesmo. Surgia, assim, o Funk Melody e o Charme, um mais dançante e o outro mais romântico.
Enquanto Latino, Copacabana Beat, MC Marcinho, Claudinho e Buchecha, entre outros, cantavam seus sucessos em todas as rádios e programas de TV, equipes de som, como a Furacão 2000 e a Pippo's, promoviam bailes gigantescos com vários DJs tocando montagens e MCs cantando. Foi assim que surgiram os paredões de som, disputas de Lado A e Lado B, rivalidades e brigas e os bailes começaram a ser proibidos em todo o Brasil.
Os donos das equipes, que agora já eram empresários, lutaram pela liberação dos bailes, com regras para os frequentadores, e por uma legislação. Eles conseguiram voltar a promover seus eventos, mas naquele momento já estava surgindo o Funk Proibidão, que tocava em bailes clandestinos e estava se popularizando. No Proibidão, o que reina são os palavrões e a descrição explícita que o MC faz de sua vida íntima. Acabaram as letras, acabou a melodia e acabou, também, o meu gosto por este estilo musical. Restaram apenas, numa gaveta do guarda-roupa, uns CDs dos anos 90, que às vezes ouço no meu antigo Discman.

Edson Basilio @edsonbas
Ele surgia de repente, assim "do nada", no calçadão da cidade. Trazia toda uma parafernália: uma haste de aço que sustentava um aro de bicicleta com várias facas, uma mão de borracha, um jornal, um saco de pano que parecia um coador de café e uma caixa de madeira com tampa. Com uma garrafa pet cheia de água, controlando a quantidade que saía com o dedão, demarcava um círculo delimitando até onde as pessoas que paravam para assistir, podiam se aproximar.
Todo mundo que passava por ali parava, nem que fosse só para ver o que estava chamando a atenção de tanta gente, mas a maioria ficava por mais de cinco minutos, alguns até se atrasavam para o trabalho, para um compromisso ou para a aula porque ele anunciava que iria pular pelo aro com as facas arriscando sua vida ou que iria fazer uma mágica, mas antes contava umas histórias da época que era criança e a família passava fome ou de como um mágico famoso tinha criado aquele truque que ele iria mostrar.
Um auxiliar ia passando por nós com um chapéu nas mãos: "- Quem puder contribuir, pode dar qualquer quantia, o que o seu coração mandar, porque eu tenho certeza de que Deus vai te dar em dobro. Quem não puder dar nada, não tem problema, não, pode continuar assistindo do mesmo jeito". Quando ele terminava de passar por todos os espectadores, pegava a garrafa pet e novamente fazia o círculo que separava o espaço "deles" do "nosso". Feito isto, ia até a caixa de madeira, levantava a tampa, tirava lá de dentro uma sacola cheia de pequenas latinhas metálicas e abaixava novamente a tampa. Novamente ele vinha passando por nós enquanto o outro anunciava: "- Nessa pequena latinha está um dos remédios mais potentes que existem lá no Norte, é a Banha do Peixe Elétrico. Ela cura dor de barriga, dor de cabeça, dor nas juntas, é bom pra bronquite, asma, tira inflamação do ouvido, trata unha encravada entre outras, é só passar no local da dor ou ferver na água colocar numa bacia e fazer a inalação com uma toalha cobrindo a cabeça". O auxiliar passava um pouco nas palmas das nossas mãos e mandava cheirar do outro lado para sentir o cheiro porque ela atravessava a pele, a gente cheirava e sentia um cheiro parecido com o do Vick VapoRub, que, na verdade, era tão forte que, mesmo estando na palma da mão, dava para ser sentido até de uma certa distância. Era um "remédio" bem caro.
Finalmente, depois de tanta enrolação, ele havia decidido fazer uma mágica: "- Mãozinha! Anda um pouquinho pra mim!", bateu palmas e aquela mão de borracha que estava no chão se movimentou para a frente. Em seguida, pegou o jornal, entornou um pouco de água no meio, o folheou e depois o virou devolvendo a água para o copo. Ao terminar, tirou o relógio do braço, enfiou no "coador de café", pôs no chão e bateu várias vezes com um martelo, depois chacoalhou as peças soltas do relógio no chão, as pegou, pôs de volta no saco de pano falou as palavras mágicas: "- Aite naite fraite, naite fraite de fisolofaite" e eis que lá estava o relógio inteirinho, exatamente como era antes.
Para encerrar, ele disse que faria o número mais perigoso de todos, aquele que poucos tinham coragem para realizar, saltar pelo aro com as facas extremamente afiadas e demonstrou passando uma folha de caderno por uma delas, que a dividiu em duas, e jogando um tomate, que se dividiu em duas metades, que caíram do outro lado. Em seguida, tirou de dentro da caixa de madeira um punhado de pequenos saquinhos de pano branco, cada um costurado com uma linha de cor diferente, os entregou na mão do assistente, ficando com apenas um, que levantou para que todos víssemos enquanto dizia: "- Isto é um patuá, um amuleto pra você levar no bolso, dentro da carteira ou na bolsa pra te proteger e dar sorte. Eu queria distribuir um pra cada um de vocês, mas infelizmente hoje eu tenho poucos aqui e só vou poder dar como agradecimento pra quem der mais de dez reais pra ajudar a gente". Dito isso, se dirigiu ao aro e saltou quase que em câmera lenta e sem esbarrar em nenhuma das facas. Ele realmente era bom, não era só enrolação. Caiu do outro lado dando uma cambalhota e já começou a recolher suas coisas e a agradecer a todo mundo que ficou para assistir o show. Num instante ele já tinha sumido, desaparecia por meses ou anos e, quando menos esperávamos, aparecia novamente "do nada".
Cheguei atrasado de novo.

Edson Basilio @edsonbas
Há muitos anos eu não ia visitar o sítio da família, mas nesse final de semana, meu pai resolveu reunir a família toda lá. Ele foi antes, na sexta, de manhã cedinho, para garantir que, quando os outros chegassem, tudo já estaria pronto. Ele gosta que as coisas estejam sempre funcionando direitinho e de garantir que não vai faltar nada.
No sábado, logo depois do café, eu, minha esposa e os meninos entramos no carro e partimos para lá também. Quando chegamos no trevo da bica, paramos para beber água. Ah! Aquela água da bica era incomparável, tão fresquinha que era quase gelada. Os meninos não quiseram tomar daquela água, queriam da mineral de garrafinha. Por sorte tinha uma barraquinha por ali que vendia. Aproveitei para comprar também um pacote de mariolas. Liguei para o meu pai para tirar algumas dúvidas sobre o caminho até lá. Ele me explicou e pediu para levar alguns maços de cigarros. Disse que havia uma vendinha no caminho que tinha de tudo. Voltamos para o carro e fomos para lá.
Logo na entrada do velho “secos e molhados” havia um saco de fubá moinho d’água, outro de açúcar mascavo, um de arroz e uma gaiola pequena com umas cinco galinhas espremidas. No teto, um ventilador cinza rodava bem devagarinho. Pendurados numa barra de ferro ficavam algumas linguiças, chouriços e chinelos Havaianas em sacos plásticos transparentes. Nas prateleiras, várias garrafas de cachaça com caranguejos, plantas ou raízes dentro, rolos daquele papel higiênico rosa em embalagens individuais também de papel, detergente ODD, água sanitária, sabão em barra e uma infinidade de outros produtos amontoados e meio empoeirados. A mistura de tudo isso resultava num cheiro muito característico que só quem já visitou um lugar desses conhece.
O balcão de madeira já estava lá há tantos anos que, de tanto debruçarem e apoiarem as mãos, parecia ter recebido uma aplicação de betume. Nele havia uma estufa com salgados, torresmos, ovos cozidos azuis e rosas e um tabuleiro de frissura. Do outro lado, uma antiga balança de ponteiro vermelha da Filizola e um baleiro giratório de três andares todo de vidro e com suas tampas de alumínio. Enquanto eu o girava, ouvia aquele rangido agudo e via a grande quantidade de balas, pirulitos e outros doces que já não via mais desde meados dos anos 90: pirulitos do Zorro, de guarda-chuva, balas Chita, Dadinhos, marias-moles em casquinhas de sorvete (que sempre estavam murchas), suspiros coloridos, balas Soft, pirocópteros, mini-ioiôs, dentaduras de vampiro, apitos, cornetinhas, anéis de plástico e línguas-de-sogra.
O dono da venda me reconheceu e perguntou:
- Como cê tá, rapaz? Cê tá sumido!
- Tô bem. E o senhor?
- Dentro do possível, né? A idade chegou. Tá precisando de que?
- Me dá meia dúzia de maços de cigarro e o troco pode ser uns docinhos sortidos e uns brinquedinhos pros meninos.
- Não vai me dizê que agora cê tá fumando!
- Não moço, é pro meu pai! - respondi como se fosse uma criança.
- Ah, bem! Faz muito bem! Obrigado e boa viagem!
- Obrigado ao senhor!
De volta ao carro, entreguei o saquinho de papel com os docinhos sortidos e brinquedinhos para meus filhos. Um deles pegou, pôs na tampa do porta-malas sem nem olhar o que tinha dentro e voltou a jogar no celular. Pedi que me devolvessem o saquinho. Peguei, enfiei a mão, tirei um pirulito do Zorro, abri e pus no canto da boca. Uma delícia! Quando acabou, fui mastigando o palitinho até chegarmos no sítio.

Edson Basilio @edsonbas
O despertador do celular tocou. Acordei. Levantei e fui desativá-lo. Havia um pequeno besouro pousado nele. O espantei e ele saiu voando iluminado. Era um vaga-lume.
Notei que a bateria do celular estava acabando e o coloquei para recarregar até a hora de sair para trabalhar. Trinta minutos deveriam ser suficientes para que a carga da bateria atingisse um nível que durasse até a hora do almoço, quando eu a completaria.
Nesse momento fui ver quantas horas eram. Ainda faltavam três horas para o horário que eu havia programado o despertador do celular. Achei estranho, mas voltei para a cama, programei o despertador da televisão, virei para o canto e dormi.
Quando a televisão ligou, levantei-me e constatei que, agora sim, eu havia acordado na hora certa. Pensei que após três horas a bateria do celular certamente estivesse completa. Fui verificar. Novamente o vaga-lume estava em cima do celular. O espantei, ele saiu voando. Peguei o celular. Para minha surpresa, ele continuava com a carga baixa, não dava para levá-lo assim para o trabalho. Voltei a colocá-lo para recarregar, só que desta vez em outra tomada, aquela provavelmente não estava funcionando. Fui trabalhar.
Na hora do almoço, fui outra vez verificar a bateria do celular. Mais uma vez me deparei com o vaga-lume sobre ele. O espantei, ele voou. No entanto, agora todo o seu corpo brilhava, uma luminosidade tão intensa que podia ser notada em plena luz do dia. Esse não poderia ser de maneira alguma um vaga-lume comum. Eu nunca havia visto um que emitisse luz de todo o corpo, nem com tanta intensidade.
Novamente a bateria do celular não havia sido recarregada. Nem um pouco. Aquela criatura estava, de alguma forma, absorvendo a energia dele. O vaga-lume saiu voando pela janela do meu quarto.
Alguns dias se passaram. Comentei o ocorrido com meus familiares. O que ouvi foi que eu estava louco, ou que havia tido um sonho maluco que, por ter sido muito realista, me deixou impressionado. Tentei acreditar na ideia do sonho, mas minha cabeça não deixava.
Resolvi procurar um psiquiatra. Marquei uma consulta. O médico, após ouvir minha história, este pelo menos sem rir, diagnosticou uma mania de perseguição, um tanto quanto paranóica e me receitou um medicamento, o qual, disse ele, era apenas um “medicamentozinho light”, só para me ajudar a lidar com a situação. Tarja preta, mas bem tranquilo.
Mesmo não gostando muito da ideia, resolvi tirar a prova e comecei a tomar o tal remédio. Passei a, quando saía de casa, trancar a porta olhando para os dois lados para ver se alguém me observava e conferia várias vezes se a porta estava bem fechada. Na rua, ficava olhando para trás o tempo todo, pensando que estava sendo seguido por alguém. Qualquer pessoa que me olhasse ou andasse atrás de mim por mais de dez segundos já ouvia um grito: “– O que você quer comigo?”. Isso nunca havia me acontecido antes.
Decidi parar de tomar o medicamento. Passadas algumas semanas, o efeito colateral do remédio desapareceu e minha vida voltou ao normal. Agora sim eu sabia o que era mania de perseguição. Uma coisa horrível. Não queria passar por aquilo nunca mais. Eu não estava louco, nem queria ficar. Não podia ficar dando ouvido a essas pessoas, senão iria acabar ficando.
Eu já estava trabalhando a ideia de que o ocorrido não passara de um sonho lúcido ultrarrealístico, mas ainda queria descobrir o que realmente havia acontecido naquele dia. Aquilo havia sido muito estranho. Aquele vaga-lume não saía da minha cabeça. Foi então que ele saiu. Literalmente saiu pelo meu ouvido e voou pela janela afora para nunca mais voltar.
Chamei um eletricista para dar uma olhada nas instalações elétricas daquele velho apartamento. Um curto-circuito provocado por uma infiltração na parede próxima ao banheiro havia queimado quase todos os fios elétricos que levavam energia para as tomadas, só a da televisão e os apagadores das luzes haviam escapado. Notei que a lâmpada que ficava acima da minha cama era tão forte que me fazia enxergar um ponto luminoso por algum tempo.
Aquele remédio realmente havia funcionado.

Edson Basilio @edsonbas
"Fede pra danar, mas é gostoso
O bicho é feio, é cabeludo e malcheiroso
Mas no fundo, bem no fundo é saboroso!
Calma, minha gente,
Eu tô falando do gambá!
Ó o Mate! Ó o limão! Limonada! Matê!"
Ele vinha cantando isso aos berros pela praia enquanto batucava com um isqueiro no galão de mate e com uma moeda no de limonada. Andava descalço naquela areia extremamente quente com a maior naturalidade do mundo, enquanto nós, turistas, dávamos umas corridinhas e uns pulinhos para não queimarmos os pés. Usava bermuda e camiseta laranjadas com o desenho de um leão e com o nome da marca Matte Leão, embora não trabalhasse para eles. Na cabeça, um sassá, também laranjado, já encharcado de suor e um pouco sujo de areia. Uma toalha molhada e dobrada duas vezes ajudava a refrescar e não deixava as alças dos galões machucarem os ombros.
A gente, de férias, distraído, procurando relaxar e esquecer os compromissos do dia-a-dia, só quer ficar admirando a imensidão do mar e acaba não prestando muita atenção nas pessoas e nas coisas que acontecem à nossa volta e, por isso, às vezes, acaba tendo a impressão de que só vê essas pessoas de costas ou de que elas não tem cara, mas esta tinha. O fato de cantar uma música tão alto e com uma letra de dupla interpretação fazia com que nunca passasse despercebido, todos queriam saber de onde vinham aqueles versos e olhavam para ele. Assim que percebia que já tinha a atenção de todos, vinha em nossa direção, já sacando um copinho de plástico, daqueles de café, no qual colocava um pouco de mate para a gente experimentar. Entregava a amostra grátis com sua mão calejada, grossa como uma sola do pé, cheia de cortes feitos pela faca que, vez ou outra, escapulia quando estava cortando limões o mais rápido que podia, enquanto tomava conta do mate que fervia na panela, para garantir que a limonada não faltasse para fazer os "meio a meio" no dia seguinte. Em seguida, abria um enorme sorriso de piano por entre uma circunferência branca de protetor solar e nos olhava com aqueles olhos cheios de veias bem grossas e manchas avermelhadas em cima de olheiras bem pesadas. Quando percebia que reparávamos nesses detalhes, pegava o óculos escuro que levava no pescoço, com as lentes totalmente embaçadas de suor, e colocava dizendo que quase não dormia para não deixar a gente na mão na hora que desse vontade de tomar aquele mate geladinho. Cada um de nós pediu um "meio a meio".
Enquanto ele nos servia, contava as dificuldades que passava para sustentar os cinco filhos e a mulher, que não conseguia mais emprego depois de ter sofrido um acidente. Dizia que conquistou tudo o que tem sozinho, com o suor do seu próprio rosto, sem a ajuda de ninguém, só das pessoas que compravam seu mate. Em tudo tinha o seu suor. Tudo era feito com o seu suor. Na minha cabeça surgiu uma pergunta: "- O mate também?". Paguei, agradeci, esperei que ele tomasse uma certa distância e entornei tudo na areia: "- Comprei só para ajudar, nem gosto de mate".

Edson Basilio @edsonbas
O pessoal lá do bairro adorava o carnaval. Todo ano nessa época era a maior festa, todos se reuniam em uma das poucas casas que tinham uma TV para assistir aos desfiles das escolas de samba de São Paulo e do Rio. Depois vinha a torcida no dia da apuração. Tinha gente que não tinha uma escola preferida, torcia para a que achou mais bonita, tinha quem torcia para essa ou aquela escola, mas a grande maioria torcia para a Mangueira.
O amor por esse período do ano era tão grande que eles até fundaram um bloquinho, que passou a desfilar anualmente pelas ruas do centro da cidade. Os ensaios eram feitos na praça do bairro, cada um trazia o próprio instrumento, que era sempre usado ou improvisado, por causa da falta de recursos, e sem uma boa afinação, pois ninguém entendia muito disso, mas, com toda a vontade e empolgação, acabavam saindo versões meio diferenciadas de sambas e marchinhas clássicos.
Com o passar dos anos, o pessoal foi aprendendo a tocar melhor, a afinar os instrumentos e conseguindo, aos trancos e barrancos, comprar instrumentos cada vez melhores e mais novos. Seguindo por este caminho, foram se organizando cada vez mais, até que um dia o bloquinho virou escola de samba. Escolheram as cores verde e rosa, claro, as mesmas da Mangueira. Ainda ensaiavam na mesma praça, pois ter uma quadra, mesmo que o espaço fosse alugado, ainda estava muito longe daquela realidade.
Ali, naquela praça, começaram também muitos namoros. O pessoal que ia assistir aos ensaios, já tinha até gente que vinha de longe, aproveitava para tomar uma cerveja no bar que ficava do outro lado da rua, para fazer uma fezinha na banca de jogo do bicho, que ficava em uma das antigas casinhas da vila onde antes pessoas moravam, e também para sambar. Enquanto isso, os filhos adolescentes se conheciam, conversavam e trocavam beijos e números de telefone. Várias dessas histórias terminaram em casamento.
Nossa escola de samba também se “casou”. Foi quando a sua maior fonte de inspiração, a Mangueira, se tornou sua madrinha. Daí para frente, vieram vários títulos de campeã, uma sede e a tão sonhada quadra. Enfim, não faltava mais nada.

Edson Basilio @edsonbas
A ideia era comprar alguns pães, presunto, mussarela, maionese e um refrigerante. Nada de sofisticação, apenas um lanche da tarde.
Saí de casa com uma quantia de dinheiro que acreditei ser suficiente e caminhei até o centro da cidade. Não era muito longe, dava para ir a pé.
Chegando lá, entrei numa casa de frios, ou melhor, quase entrei, pois foi só pôr um pé para dentro da loja e já deu para ver as placas com os preços. O presunto e a mussarela não cabiam no meu orçamento. Risquei da lista.
Segui para o mercado.
No caminho, passei por um boteco, um “pé sujo”, cheio daqueles cachaceiros que estão lá todos os dias, da hora que abre até a hora que fecha. No canto havia uma estufa com alguns salgados que já deveriam estar ali há alguns dias, só de olhar para eles dava azia.
Já no mercado, procurando pela maionese, passei pela seção de frios e resolvi dar uma olhada nos preços. A mussarela definitivamente estava descartada, mas quem sabe o apresuntado no lugar do presunto? Não deu também. Ah! A mortadela! Esta sim! Essa não!
Cheguei à prateleira da maionese. Até que não estava tão cara, mas não dava para comer pura. Então me lembrei do pão. Como posso ter me esquecido dele?! Nosso sagrado pãozinho de cada dia, que nunca faltou na nossa mesa. Ali só tinham pacotes de pães de forma, que, por virem com uma quantidade grande de pães, acabavam por custar mais caro do que eu podia pagar.
Resolvi ir a uma padaria.
Passei pelo mesmo boteco “pé sujo”, que continuava com os mesmos cachaceiros e a mesma estufa dos salgados velhos que davam azia.
O cheiro de pão fresquinho quando se entra numa padaria na hora que está saindo uma fornada é incomparável. Nesse momento me deu tanto apetite que a barriga até roncou…. mas o preço do quilo do pão tinha subido de novo.
Conferi novamente o quanto eu tinha de dinheiro no bolso e fiz uns cálculos. Dá! Dá sim!
Entrei na farmácia que ficava ao lado da padaria, comprei um sachê de sal de fruta e enfiei no bolso.
Voltei ao boteco “pé sujo”. Os cachaceiros ainda estavam lá, e os salgados também. Me aproximei do balcão e pedi meia dúzia de empadinhas.
O lanche da tarde estava garantido.

Edson Basilio @edsonbas
Apoie meu livro infantil "Falinfofélis: A plantinha mais triste do jardim)

Edson Basilio @edsonbas
Aquele lugar estava cheio de macas ocupadas por pessoas que pareciam estar doentes, mas ali não era um hospital, era imundo e cheirava como um abatedouro, um cheiro forte, ferruginoso de sangue e de carne podre.
Em uma das macas pelas quais passei, havia um menino negro deitado, imóvel. Ele tinha um risco na testa que ia de uma orelha à outra. Impressionado com aquela visão desagradável, resolvi continuar a caminhar pelo local.
Observei que havia também jaulas ocupadas por cachorros. Mas algo estava errado, os cachorros pareciam ter o corpo de uma raça, a cabeça de outra e as patas de uma terceira raça, todas as partes do corpo de cores diferentes. Ao me aproximar mais, percebi que eles tinham costuras em suas juntas, o pelo ora era liso, ora crespo, e eles espumavam muito pela boca. Perturbados com a minha presença, eles começaram a latir muito alto. Achei melhor não continuar naquela direção.
Voltei na direção das macas. O menino negro virou-se para o lado pelo qual eu me aproximava, porém, a parte de cima de sua cabeça se soltou e ficou em cima do travesseiro, como se fosse a tampa de um pote, deixando seu cérebro à mostra. O risco em sua testa era, na verdade, um corte. Então, o menino olhou dentro dos meus olhos, abriu a boca já pálida e sussurrou bem baixinho, sem força nenhuma em sua voz quase inaudível, enquanto apontava para seu cérebro: “– Tá vendo meu cérebro? Eu tô morrendo. A sensação é horrível.”
Não me lembro como saí daquele lugar, apenas que acordei já na minha cama.
-> Esse texto foi baseado em um pesadelo que eu sonhei.

Edson Basilio @edsonbas
Ele era bem pequeno, tanto o corpo quanto os membros. Sua pele era lisa e brilhosa. Parecia um bebê, mas não um bebê de verdade, estava mais para uma boneca daquelas com as quais as meninas brincam. Ao mesmo tempo, ele se assemelhava também a um boneco de porcelana.
Acordei meio tonto, com as vistas embaçadas. O “boneco” tinha em suas mãos uma faca e ao seu lado um galão cheio de um líquido amarelado. Em sua frente havia uma pessoa de pé, estática, a qual, na medida em que fui recuperando a visão, percebi que estava morta e que era segurada por uma estrutura metálica. Aquele ser estava estripando as entranhas do cadáver. Ele o deixou oco.
Ainda sem conseguir me levantar, mas tentando, me esforçando, presenciei aquela carcaça sendo costurada depois de ter sido enchida com algum material que eu não soube identificar. Após tudo isso, seu órgão sexual foi arrancado e o buraco que ficou foi tampado. Subindo numa escada, o serzinho maquiou o “empalhado” e começou a passar, com um pincel, aquele líquido amarelado e viscoso por todo o corpo do morto. Agora o que se via era um boneco de porcelana em tamanho natural.
Comecei a sentir meu corpo e achei que já poderia me levantar e sair correndo. Mas para onde? Virei a cabeça para a esquerda e vi um pequeno corredor com uma escada no final. Levantei-me e, antes que eu começasse a correr, o bebê-monstro gritou algo que não consegui entender e em seguida surgiu um outro ser, só que esse era gigantesco. Saí correndo. O menor deles então gritou: “- Pega ele!”. O maior respondeu: “- Sim senhor, capitão!”. Após dizer isso, ele veio correndo meio desengonçado atrás de mim. Comecei a descer aquela escada correndo o mais rápido que eu podia, de dois em dois degraus, às vezes pulava uns cinco para terminar de descer aquele lance mais rapidamente. Vez ou outra eu dava uma olhada para trás e não o via, mas ouvia seus passos descendo também. Finalmente cheguei à porta do edifício e fugi para a rua.
-> Esse texto foi baseado em um pesadelo que eu sonhei.

Edson Basilio @edsonbas
Há algum tempo, mas nem tanto, quando uma criança estava com anemia, fraqueza, tontura e pálida, os avós e bisavós logo "receitavam" feijão feito na panela de ferro, juntamente com pregos, de preferência enferrujados. Toda família tinha alguém que sempre contava: "- Isso vem de muito tempo, passou de geração pra geração, é a sabedoria dos antigos. Funcionou com todo mundo da família, seu tio mesmo era uma criança cheia de problemas, agora olha o tamanho do homão, olha como cresceu e ficou forte!".
Na minha família, não era diferente, digo, era sim, porque o princípio era o mesmo, mas a receita era bem diferente, nós tomávamos a famosa Sopa de Martelo da família. Todo mundo lá em casa já tinha tomado. Todo mundo conhecia e tinha medo daquele martelo velho que era até alaranjado de tanta ferrugem. Ele ficava pendurado lá no fundo da garagem, era muito antigo e foi passando de geração para geração, “curando” todo mundo.
A receita da sopa não era muito difícil, o martelo e algumas batatas eram obrigatórios, pois ele soltava a ferrugem e elas a "chupavam" e acumulavam para depois serem comidas e levarem o ferro para dentro do organismo, assim como o caldo, que era a água suja de ferrugem. Os demais ingredientes poderiam ser qualquer coisa que tivesse na despensa ou na geladeira: cenoura, cebola, abóbora, carne de ontem, ovo cozido cortado em rodelas. Não tinha restrições, tudo e qualquer coisa que ajudasse a disfarçar aquele gosto horrível era bem vindo, mas não adiantava, nada disso funcionava.
Naquela época não se sabia muito sobre o que causava as doenças e como se prevenir. A friagem, por exemplo, era um dos piores males que existiam. Tudo era causado por ela. Não se podia sair na friagem, muito menos se estivesse com os cabelos molhados, nem andar descalço no chão frio para não gripar, se gripasse, com certeza a culpa era dela e era "bom para aprender a obedecer e não sair na friagem". Tudo era meio que intuitivo, por dedução e por similaridade, por isso, tal como o frio causava uma gripe, a febre era tratada com banho gelado e a falta de ferro era tratada com ferrugem. As pessoas tinham mais medo dos “remédios” do que dos sintomas das doenças.

Edson Basilio @edsonbas
A porta gritou jogando duas moedas sujas no balcão: – Me dá dois cigarros no varejo!
Um cigarro na orelha, o outro na boca: – Tem fogo?
Três puxadas e a ponta já está em brasa. A brasa fica mais forte, mais brilhante – a primeira tragada. A fumaça sai devagar pelas narinas e por entre os dentes. O indicador e o polegar apertam o filtro, tirando o cigarro da boca, o médio bate a cinza – todos eles amarelados nas extremidades, assim como as unhas, essas até a metade. Mãos um tanto quanto nojentas – as palmas suadas e encardidas, uma sujeira preta por debaixo das unhas. Uma ajeitada no boné, que tinha manchas de suor que mais pareciam desenhadas com alguma tinta gosmenta encontrada ao acaso num depósito de lixo. Os dentes, amarelados também da nicotina, após mais uma forte tragada, soltaram uma baforada espessa na cara do balcão, que nela pôde ler com muita dificuldade – uma letra muito miúda e mal escrita – um “obrigado” tão amarelado quanto o recipiente de onde veio. O “obrigado” se desvaneceu com o bater da porta ensebada: – Estranho, não?! Não deve ser dessas bandas... Realmente não é. Nunca foi visto pela vizinhança, quanto menos aqui.
A porta torna a gritar, na mesma altura, no mesmo tom e com o mesmo bafo, que o balcão logo reconheceu: – Me dá um copo de cachaça! Até o risco!
O copo, já pela metade, se dirigiu ao banheiro. Após uns minutos ouviu-se um barulho. A cadeira, que estava mais próxima, levantou-se, toda torta, e entrou no banheiro – as cadeiras costumam ser muito curiosas. Lá dentro podia-se ver que após derramar-se um pouco no vaso brancamarelamarronzado, o copo caiu, bateu a cabeça na pia e se quebrou deixando no chão uma poça de cachaça, que agora já era avermelhada.

Edson Basilio @edsonbas
Já estava pronto para sair.
Abri a porta da sala e vi que a chuva estava pior do que parecia. Com a casa toda fechada, eu estava me baseando só no barulho.
Fui até a janela que ficava do outro lado, pois de lá dava para ver o ponto de ônibus. Estava tudo branco de tanta chuva que caía e ventava muito, o guarda-chuva não iria dar conta. Fiquei quase meia hora olhando e não passou nenhum ônibus.
Resolvi tirar os sapatos, deixar os pés respirando e à vontade. Meu Deus! Como esses sapatos apertam! Assim que a chuva estiar, calço eles novamente e saio.
Olhei pela janela por mais 10 minutos. Nada. Abri a porta novamente. As poças no chão estavam enormes e as enxurradas pareciam as Cataratas do Iguaçu.
Tirei o paletó e pendurei no cabideiro ao lado da porta. Afrouxei a gravata. Respirar, sim respirar.
Liguei o ventilador, sentei no sofá e pus os pés no pufe.
Comecei a pensar se realmente valia a pena ir àquela festa. Eu nem conhecia as pessoas direito.
Lembrei da minha infância, quando minha mãe me levava às festas das suas amigas, nas quais só havia gente mais velha e nenhuma diversão para uma criança. Na maioria das vezes eu saía andando pelas casas à procura de alguma coisa divertida, mas, vira e mexe, quebrava um item decorativo: um vaso, uma xícara ou algo no estilo.
Às vezes íamos a festas de primos que eu nem conhecia. Na maioria das vezes não dava tempo nem de me enturmar. Ficava meio sem jeito de me aproximar e só observava, de longe, os presentes sendo abertos e como brincavam com eles. Alguns salgadinhos, o parabéns, o bolo, os docinhos e já estávamos voltando para casa.
Neste momento, dei uma olhada no relógio e mais meia hora havia se passado. Olhei novamente pela janela e deu para ver a silhueta de um ônibus passando.
Acabei de tirar a gravata, desabotoei a camisa, arregacei as mangas e tirei as meias.
Fui à cozinha tomar um copo d’água. Na mesa havia um último pedaço restante de um bolo que eu estava comendo há dias no café da manhã, dei a primeira mordida e me lembrei do Toddynho do meu sobrinho, que estava na geladeira. Resolvi tomar, depois era só comprar outro, ele só viria aqui em casa de novo na semana seguinte.
Desta vez o saudosismo veio de forma mais agradável. Lembranças boas foram voltando à minha memória. Lembrei de um videogame que estava guardado desde o final dos anos 90, fui buscá-lo no meio dos meus cacarecos.
Voltei para a sala.
Anos atrás, as garrinhas eram conectadas à entrada da antena da TV, mas agora precisavam de um adaptador. Eu tinha. Conectei tudo, liguei o videogame na tomada e apertei o botão “Power”. Ele funcionou direitinho, exatamente do mesmo jeito que funcionava antes.
Achei na caixa o cartucho do jogo que eu mais gostava de jogar na minha adolescência, soprei embaixo e inseri. A manete boa era a que tinha uma marca feita com corretivo. Peguei ela e virei a madrugada jogando, só de samba-canção.

Edson Basilio @edsonbas
A raquete de matar pernilongo me proporciona um certo prazer. Confesso que acho esse prazer um tanto quanto estranho, mas sei, também, que o compartilho com muitas outras pessoas. Lá no meu prédio mesmo, já ouvi aquele estalo que ela produz quando algum inseto encosta na sua trama eletrificada vindo de janelas de diversos apartamentos. Tem dias que parece até que estou jogando tênis com um dos meus vizinhos, eu dou uma raquetada de cá e escuto o estalo da raquete dele de lá. Outros dias tenho a impressão que estou ouvindo metralhadoras.
A responsável pelo desenvolvimento dessa raquete deve ser a indústria do entretenimento, que quis trazer a emoção dos videogames para a vida real. Eles pensaram em tudo: elementos do esporte, de jogos de estratégia e de guerra. Caçamos sem precisar de uma licença, nem curso para aprender a utilizar uma arma de fogo. É uma "diversão" que ajuda a descarregar nossa raiva, sede de vingança e a suar um pouco, assim como no esporte.
Existe um ditado que diz que "a vingança é um prato que se come frio", mas quando se trata de pernilongos, a minha vingança é em forma de churrasco. Já disse que eu mesmo acho estranho, mas o prazer de ver aquele mosquito agarrado na raquete enquanto a gente segura o botão e ele vai torrando, deixando subir uma fumacinha, inseticida nenhum é capaz de proporcionar.
Sou sádico? Sou! Mas esse bicho também é. A gente acaba de espantar e ele volta para a nossa orelha. Uma picada na perna ou no braço é ruim, coça, mas o zumbido na orelha é só para atrapalhar a gente a dormir mesmo, ele nem pica ali. Só estou jogando o jogo dele.

Edson Basilio @edsonbas
Não me lembro bem se o meu primeiro contato com o álcool foi através do Biotônico ou do mimeógrafo. Eu era muito novo e algumas memórias do início das nossas infâncias acabam se perdendo. Ficam só alguns fragmentos e as histórias da família.
Minha mãe conta que eu era “ruim de comer”, por mais que ela tentasse, nunca conseguia me fazer comer nada. A solução foi apelar para o Biotônico. Era só tampar o nariz e enfiar goela abaixo para abrir o apetite. O gosto era meio estranho e forte, mas com o tempo fui me acostumando e depois passei até a gostar e já pedia: “- Manhê! Me dá cachacinha?”. Esse apelido era muito comum, algum adulto lá em casa experimentou e falou, mas depois descobri que as outras crianças também chamavam ele assim. Mais tarde, cheguei pessoalmente à conclusão de que o gosto era bem parecido mesmo. Assim como um dia eu descobri que o Biotônico tinha aquele gostinho de cachaça e passei a desconfiar que tinha álcool alí, os órgãos de fiscalização também desconfiaram, fizeram testes e descobriram que realmente tinha. A fórmula teve que ser mudada para poder continuar vendendo.
Já no caso do mimeógrafo, este não me foi apresentado em casa, foi na “rua”, ou melhor, na escola. Os professores pegavam um pacote de Chamequinho, que os nossos pais tinham que levar todo início de ano letivo, e uma garrafa de álcool, colocavam cada um no seu devido compartimento, o “original” da prova na bandeja e começavam a girar a manivela, por isso diziam que iam “rodar” a prova. A folha entrava branca e saía uma cópia quase perfeita daquele “original”, só que da cor azul e com um cheiro muito forte de álcool. Descobrimos que cheirar aquelas folhas “dava onda”, a gente ficava meio tontinho, era o “barato” da molecada. Com o tempo, o mimeógrafo foi sendo superado pela tecnologia, principalmente quando ela começou a baratear. As cópias ficaram mais fiéis aos originais, inclusive a cor preta dos textos das provas. O cheiro já não fazia mais parte do processo e não se fala mais em “rodar” as provas, agora elas saíam automaticamente e numa velocidade muito maior.
Na minha memória ficaram gravadas aquelas sensações da minha infância: o gosto, o cheiro e a “onda”. Quando cresci, as encontrei de novo em um bar qualquer, dentro de um copo. Foi como ter nas minhas mãos a nostalgia em forma líquida para beber. E ainda tem gente que pergunta: “- Por que você bebe?”.

Edson Basilio @edsonbas
Toda vez que pego um ônibus, para qualquer bairro que seja, sempre tem alguém comendo uma coxinha ou um pastel num saco de papel pardo com uma mancha úmida de gordura. A pessoa abre o saco, puxa o salgado um pouco para fora, dá uma mordida, passa a língua entre os lábios para tirar os farelos, enfia o salgado de volta no saco e começa a mastigar, tampando a boca com umas das mãos. Tudo isso com uma postura encurvada, quase corcunda, e um olhar desconfiado para os lados, como se estivesse comendo escondido, com medo de alguém pedir um pedaço. Eu que não seria. Nem aceitaria se me oferecesse. Mas só pelo egoísmo, fico desejando que tenha uma baita duma azia.
Acho que nem todo mundo pára para pensar com mais frieza nos detalhes da forma que deveria. Além do ônibus não ser o local mais indicado para se fazer um lanche, por causa da quantidade enorme de gente que colocou as mãos no mesmo lugar que você, pessoas de higiene duvidosa, por exemplo, não se pode esquecer que você pegou no dinheiro para pagar o salgado e a passagem. Qual foi a mão que segurou aqui e ali? Qual foi a que pegou no dinheiro? Qual vai segurar o saco engordurado? Qual vai puxar e enfiar o salgado de volta no saco?
Quando vejo uma pessoa comendo naquele lugar, tudo isso passa pela minha cabeça e meu estômago já fica embrulhado. Se estiver com fome, perco o apetite na hora. Mas ela, não! Ela está lá, com aquela mão suja, se deliciando com aquele salgado como se ele fosse a refeição mais deliciosa desse mundo, tão gostosa que vai mastigando, mastigando, mastigando e nunca engole. Na maioria das vezes demora uns 10 minutos para dar mais uma mordida. Sempre deixando cair um monte de farelos na blusa que, se for de lã, que é a que agarra mais, acaba virando uma árvore de Natal de casquinhas de pastel, pedacinhos de carne moída, fiapinhos de frango, entre outros “enfeites”.
Mas o pior de tudo mesmo é a pessoa ser egoísta. Apesar de estar comendo um lanche gorduroso, sujo e babujado, ela acha que todos os outros passageiros do ônibus estão mortos de fome a ponto de não conseguir esperar chegar ao destino para comer alguma coisa e cobiçam seu salgado como se ele fosse a última comida disponível na face da Terra. Cada vez que o ônibus pára em um ponto, parece que dá para ver escrito na cara dela: “menos um” ou “menos dois”.
Chega uma hora que, por estar satisfeita, ou por estar com muito medo de dividir, a pessoa simplesmente pára de comer, guarda o restante no saco, dobra ele várias vezes e guarda dentro de uma bolsa ou mochila para terminar mais tarde. O que acontece depois, nunca vou saber. Eu sempre desço antes.

Edson Basilio @edsonbas
Já repararam na quantidade de gente que desmaia em pontos de ônibus? A pessoa está parada, às vezes até conversando com outra, e simplesmente, do nada, cai no chão.
Por diversas vezes perguntei a conhecidos meus se eles já repararam nisso, mas a resposta sempre foi negativa. Nunca presenciaram sequer um desses casos. Fico com a impressão de que isso só acontece perto de mim, como se fosse uma perseguição. Sempre estou por perto e me pedem ajuda. Ajudar como?! Tem que abrir espaço para deixar a pessoa respirar e ligar para uma ambulância! Em vez disso, ficam todos em cima da pessoa, nessa hora aparecem curiosos de todos os cantos, e pedem ajuda para levantar a pessoa e sentá-la no banco. Para que?! A pessoa está desmaiada, inconsciente, ela tem que ficar deitada, com o corpo relaxado. E a gente ainda vai ter que ficar escorando para ela não cambalear e cair. Mas se falar isso, começam a achar que você está de má vontade, que não está querendo ajudar.
Às vezes fico tentando imaginar como foi o dia daquela pessoa ou o que houve com ela para que isso acontecesse. Será que foi uma rotina estressante de trabalho? Uma caminhada muito longa? Muitas horas sem comer? O sol muito forte? Acho que nunca vou descobrir. Não dá para saber o que se passa na cabeça de outra pessoa ou qual foi a sua rotina naquele dia. Também não vou ser invasivo ao ponto de esperar ela acordar, me aproximar e perguntar, não sou tão intrometido. Confesso que até fico tentado, mas me seguro. Ah! Se curiosidade matasse...
Certa vez aconteceu algo parecido comigo. Após um dia inteiro numa rotina estressante de trabalho, tive que fazer uma caminhada longa, estava sem comer há algumas horas e o sol bem forte. No meio dessa caminhada, comecei a me sentir mal, um pouco tonto e achei que fosse desmaiar. Mas foi no meio da caminhada! Por que essa gente deixa para desmaiar do meu lado, ali no ponto de ônibus, depois de já ter chegado e já ter parado, quando já está descansando? Vai saber.