

Edson Basilio @edsonbas
Olhos (Nanoconto)
Aqueles olhos pareciam estar me observando em todos os lugares que eu fosse. Eu tinha essa sensação, mas, por mais que procurasse, não os encontrava. Até que o dia chegou. Ficamos olhando uns dentro dos outros. Será que eram realmente eles? Nunca vou saber. Mas passaram a ser.

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Confusão (Nanoconto)
Me contaram que ontem ao anoitecer eu saí de casa e andei pela noite da cidade. Luzes me rodeavam, estavam nos postes, letreiros e em todos os lugares que eu entrava. Disseram que fiz coisas do arco da velha: bebi, xinguei, briguei. Mas hoje quando acordei estava tudo escuro.

Edson Basilio @edsonbas
Cobertor (Nanoconto)
Meus pés sempre ficam para fora. O frio que eu sinto vem de dentro, do vazio sem tamanho que alguém deixou ao sair. Não existe cobertor interno. Por isso, não importa o quanto eu me cubra, meus pés sempre ficam para fora.

Edson Basilio @edsonbas
Dinossauro (Nanoconto)
Enquanto caminhava, observava a bola de fogo cada vez maior. Uma grande explosão! Tudo ficou gelado. Hoje olha tudo lá de cima enquanto voa.

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Cachorro (Nanoconto)
Já não aguentava mais aquele cachorro, então resolvi dar fim nele.
Tempos depois, enquanto tomava banho, senti uma vontade incontrolável e comecei a latir.

Edson Basilio @edsonbas
Viagem (Nanoconto)
Quando a levamos pela primeira vez à praia, ela era muito novinha. Quando voltamos, todos éramos crianças com mais ou menos a mesma idade.

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Música (Nanoconto)
Ele vivia tocando air guitar e air drums. Nunca pegou num instrumento de verdade. Me apresentou as melhores músicas e partiu com uma marcha.

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Escola (Nanoconto)
No início era só parquinho e brincadeiras. Veio o quadro negro, o giz, o caderno e a mochila, que me acompanhou até o dia do vestibular.

Edson Basilio @edsonbas
Estrela (Nanoconto)
Lá estão elas, Estela e sua estrela. Estiveram juntas desde sua estreia. Hoje, em seu estrelato, ainda estão juntas, assim como sempre estiveram. Estrela e sua Estela estão em um só ser, sendo estrelas. Assim sempre estarão e, mesmo quando não forem mais, ainda serão. Estrelas só são.

Edson Basilio @edsonbas
Pétala (Nanoconto)
Ela tocou meu rosto muito suavemente e ficou presa na minha barba grisalha por fazer. Veio flutuando com o vento, leve, aveludada e de um tom entre o rosa e o vermelho. Beijou minha bochecha como uma boca que ficou no passado costumava fazer.

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Ritual (Nanoconto)
- Senta! Levanta! Senta! Levanta! Amém!
- Senta! Levanta! Senta! Levanta! Amém!
- Graças a Deus!
- Bora tomar café?
- Bora!

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Maternidade (Nanoconto)
Abriram-se as rubras cortinas. Saí. Ela me tomou nos braços, me chamou de filho e me beijou. Depois me alimentou. Comi e bebi amor por anos.

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Vazio (Nanoconto)
Por muitos anos cultivava naquele vaso. Já deu de tudo: mato, plantas, flores, frutos. Era esplendoroso. Colocava tudo o que sentia ali, junto com o que plantava. Vivia o amor de diversas formas, mas, aos poucos, elas se foram. Hoje nem terra mais há naquele vaso.

Edson Basilio @edsonbas
Ninguém (Nanoconto)
Qualquer espaço de tempo, por mínimo que seja, sem ver quem se ama, é muito. Mas no meu caso foi muito mais. Quando voltei, já não havia mais ninguém

Edson Basilio @edsonbas
Corpo (Nanoconto)
O lençol o delineava. Ao mesmo tempo que cobria, revelava, desenhava. Mais curvas que retas. Percorri-o, às vezes com mais ou menos velocidade, mas nunca com pressa. No final, ficou a certeza de que nunca vai acabar.

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Desejo (Nanoconto)
Desejando-a, a tive não a tendo. Fomos sem nunca termos sido. Terminamos sem nunca termos começado. Ela nem ao menos desconfiou. Nunca!

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O faroleiro (Nanoconto)
Era só o facho de luz o que se avistava e o que avisava, ao longe, enquanto girava na escuridão, a quem vinha e trazia as coisas novas, que ali estava, ilhado, um coração. Desde o dia em que ele se apagou, para nunca mais voltar a acender, só restou a escuridão das coisas velhas que já estavam ali guardadas, na alma, e que ficariam enterradas para sempre na memória de quem ficou.

Edson Basilio @edsonbas
Nota (Nanoconto)
Viveu pensando apenas em dinheiro, só nisso e em mais nada. Queria gastar o mínimo, guardar o máximo. Deixou todo o resto de lado. Hoje um carro passou lendo sua última nota.

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Carnaval (Nanoconto)
Surdo, tamborim, repinique, uma bandeira, um vestido rodando, o pandeiro em minha mão e a cabeça também. Coração na boca enquanto a cortejo.

Edson Basilio @edsonbas
Enquanto arrumamos as malas para partir, para ir, vamos, também, escolhendo o que queremos levar, o que vai nos trazer lembranças do lar, e, ao mesmo tempo, vamos nos despedindo de tudo o que não vai dar para levar, o que só vai caber na memória. Nunca tem espaço suficiente para tudo nas malas.
Onde quer que a gente vá, tem que levar uma bagagem bem grande, dentro das malas e dentro da gente. Tem coisas que a gente não quer levar, mas não consegue deixar para trás. Também não dá para deixar nos lugares por onde passamos, como se tivesse esquecido por lá. Às vezes a vontade é essa, mas é impossível. Essas coisas vão nos acompanhar sempre. Para onde quer que a gente vá.
Na hora de retornar, vamos juntando as coisas novas, o que queremos trazer de lá, lembranças daquele lugar onde ficamos por algum tempo, ao mesmo tempo vamos nos lembrando de casa enquanto juntamos tudo o que veio e precisa voltar. Temos que apertar um pouco aqui, espremer um pouco alí, senão não cabem todas as coisas.
As malas e o nosso interior voltam mais cheios. Apesar disso, parecem mais leves. É como se o peso extra ficasse no outro prato da balança da vida da gente. O que já carregamos sempre, para onde quer que vamos, parece ficar mais leve na volta.

Edson Basilio @edsonbas
Caneta (Nanoconto)
Correndo pelas infindáveis retas, criando curvas onde não há, deixa a sua e a minha marca. É como se a tinta tivesse saído das minhas veias.

Edson Basilio @edsonbas
Na época da minha adolescência, quando iam chegando as eleições, as campanhas dos candidatos eram bem diferentes, eles distribuíam todo tipo de brinde: camisas, canetas, lixas de unha, bonés etc. Além disso, davam festinhas nos comitês de campanha com salgadinhos, refrigerante, música e muito bate-papo. O social, a interação, vinha em primeiro lugar.
Outro tipo de evento que a gente gostava muito eram os showmícios: shows de cantores famosos, contratados por um candidato, que fazia um discurso e depois chamava os artistas para o palco. O show começava e, entre uma música e outra, sempre vinha um agradecimento ao candidato que estava patrocinando, um reforço ao número dele e um pedido para voltar nele. Agora não pode mais, é crime.
A gente era adolescente e ainda não votava, mas aproveitava as festinhas e os shows. Dava para fazer novas amizades e conhecer umas meninas da nossa idade. Às vezes já rolava um beijo no comitê mesmo, outras só depois, no showmício. Era tão bom que a gente saía pelas ruas vestindo as camisas com os nomes e os números dos candidatos como se fossem abadás, carregava bandeiras e colava adesivos para todo lado. Verdadeiros cabos eleitorais, só que de graça, ou quase, nosso pagamento era em salgadinhos e refrigerantes. Muito barato para eles.
As camisas viraram pijamas e, depois, panos de limpeza. As canetas foram de grande utilidade para a gente no colégio, para os pais no trabalho e em casa, para deixar junto com o bloquinho de anotações do lado do telefone. Os bonés eram muito feios e, por isso, a gente não usava nem na campanha. As lixas de unha foram tantas que, até hoje, 30 anos depois, minha mãe ainda tem um monte delas presas com um elástico de dinheiro, e olha que ela usa, está sempre puxando mais uma quando a anterior acaba. As festinhas ainda existem, não participo mais, mas ouço falar que agora rola até churrasco. Os showmícios ficaram só nas lembranças. Já as amizades, muitas ainda duram até hoje.

Edson Basilio @edsonbas
Cheguei tarde. Muito tarde. A rua já estava deserta e o porteiro cochilava com a TV ligada passando um daqueles programas que mostram festas de gente rica ou de suas empresas. Continuei até o elevador. Ainda estava quebrado. Cinco andares. Dez lances de escada. Cinquenta degraus. Ainda não sou um idoso, mas também não sou mais um menino. Abri a porta, entrei e sentei no sofá. Fiquei alí por mais ou menos meia hora. Cansado, suado e com dores pelo corpo.
Sempre achei que faltavam quadros nas minhas paredes. Queria ter plantas também, mas nunca deu certo. Tudo acaba morrendo. Não consigo cuidar. Como cuidar de coisas se não estou conseguindo cuidar nem de mim mesmo? O dia-a-dia tem sido muito maquinal, mecânico. Não me sinto mais um ser vivo, nem um robô. Menos que um robô, me tornei um autômato. Sempre a mesma rotina. Esqueci o que sou, o que sinto e o que tenho.
Pensei que seria bom tomar um banho. Me levantei e fui para o banheiro. Tomei. Foi bom. O banho quente ajudou a relaxar o corpo e a diminuir as dores. Me acalmei e a cabeça começou a funcionar melhor, com mais clareza. E a pensar com menos pessimismo. Como estava com fome, fui para a cozinha preparar alguma coisa para comer. Fazer a própria comida é um tipo de terapia também. Descascar, cortar, temperar, esperar o tempo que cada ingrediente leva para cozinhar. E leva muito tempo. O bastante para pensar. Ah! Se eu tivesse todo esse tempo… Tinha que acordar cedo de novo. Fiz um Miojo.

Edson Basilio @edsonbas
O ano era 1996, nós éramos adolescentes e estávamos passando as férias escolares de julho na praia. Era ano de Olimpíadas e dessa vez seria nos Estados Unidos: Jogos Olímpicos de Atlanta. A gente adorava as Olimpíadas, assistíamos todas as disputas de todas as modalidades.
No primeiro dia em que fomos à praia, ao comprar picolés, descobrimos que a Kibon estava realizando uma promoção na qual a gente poderia ganhar réplicas colecionáveis das medalhas olímpicas. Não lembro se o palito vinha premiado ou se tínhamos que juntar alguns palitos e pagar mais uma quantia em dinheiro, só lembro que em 3 dias a gente já tinha tudo o que precisava para trocar por 2 coleções completas.
Um dos vendedores de picolés nos disse que o único posto de troca era uma confeitaria no centro da cidade. Lá fomos nós. Ao chegar, perguntamos aos atendentes qual deles era responsável pelas trocas, nos disseram que só o dono da confeitaria, o Senhor Gentil, fazia as trocas, mas ele não estava no momento, era melhor voltar no dia seguinte.
Foi então que começamos uma caçada épica ao Senhor Gentil. Sei que já faz muito tempo que é difícil achar uma pessoa gentil por aí, mas o Senhor Gentil era mais difícil ainda. Todo santo dia nós voltávamos na bendita confeitaria, perguntávamos pelo bendito Senhor Gentil e ouvíamos a mesma bendita resposta: "- Hoje ele não está, é melhor vocês voltarem amanhã".
Agosto já estava chegando e, junto com ele, o fim da quinzena e das férias, mas a gente não desistiu e, finalmente, no décimo dia, ao chegarmos na porta da confeitaria, antes de entrarmos ou falarmos alguma coisa, uma das atendentes já foi chegando perto da gente e falando toda animada e sorridente: "- Hoje ele tá! Hoje ele tá! Podem subir que ele tá no escritório lá em cima!".
O Senhor Gentil tinha um quê de Papai Noel: era gordinho, simpático e tinha os cabelos bem branquinhos, só faltava a barba e a roupa vermelha. Atendeu a gente muito rapidamente, nos entregou as medalhas, pediu desculpas pela sua ausência nos últimos dias e se despediu com tanta gentileza que fez jus ao seu nome. Agradecemos, descemos, nos despedimos de todo mundo e voltamos para o apartamento onde estávamos hospedados.
Ao final das férias, voltamos para casa, para a nossa cidade, como se fôssemos atletas voltando das Olimpíadas, com as nossas medalhas, conquistadas, merecidas, assim como as deles.

Edson Basilio @edsonbas
Quando eu era criança, o fiambre parecia ter uma certa magia, daquelas que só as crianças são capazes de sentir. Na verdade, essa magia estava na embalagem, mais especificamente na chavinha que a gente usava pra abrir a lata. Todas as outras latas de todos os outros produtos precisavam de um abridor que se compra à parte, mas a do fiambre não, ela tinha a chavinha.
Sempre que o meu pai voltava do mercado, eu já ia correndo para ver nas sacolas se achava aquela latinha. Quando a achava já ia logo pegando e pedindo para que ele me deixasse abrir, mas sempre ouvia que não, pois poderia cortar meu dedo, eu ficava desiludido e doido para crescer e virar adulto logo para poder girar aquela chavinha que ia arrancando e enrolando uma tira de metal da lata e a dividindo em duas partes, uma maior e outra bem menor, parecendo uma tampa. As duas ficavam com as beiradas cortantes, afiadas como facas.
Meu pai gostava de fazer tira-gosto de fiambre, ele abria a latinha, cortava a "carne" em pequenos cubinhos, juntava com uns pedacinhos de queijo, umas azeitonas, ovos de codorna, cebolas e batatas em conserva e um fio de azeite. Com a porção pronta, era chegada a hora de abrir a garrafa de cerveja super gelada e despejar no copo americano, tinha que ser esse copo, ele que era o copo de tomar cerveja, e tinha que ter dois ou três dedos de colarinho. Em seguida, ele me dava a chavinha e eu ficava brincando com ela o resto do dia. Não me lembro quais tipos de brincadeiras criava, mas, com certeza, em pelo menos uma delas, eu abria uma lata de fiambre imaginária. Eu tinha uma coleção dessas chavinhas e as guardava em um daqueles porta treco de plástico em forma de tubo com tampa de rosca e uma cordinha para pendurar no pescoço e que, naquela época era muito comum em praias e piscinas, pois a água não entrava e podíamos guardar o dinheiro, pois ele não iria molhar.
Todas estas lembranças ressurgiram na minha cabeça enquanto eu fazia as compras do mês no supermercado de costume, mais especificamente enquanto eu passava pela seção dos enlatados. Olhei para uma das prateleiras e dei de cara com uma lata de fiambre. Lá estava ela, entre uma lata de feijoada e uma de salsicha Viena, na última prateleira, lá em cima. Fiquei na ponta dos pés, estiquei o braço, a peguei e joguei no meio das compras que já estavam no carrinho. Passei no caixa, paguei e fui para o meu carro.
Ao chegar em casa, retirei todas as sacolas de compras do carro e as levei para a cozinha, fiz umas 4 viagens. Tomei um banho, pus uma bermuda e uma camisa, abri uma cerveja, enchi dois copos americanos, um para mim e outro para a minha esposa, com aquele colarinho de dois ou três dedos, brindamos e demos o primeiro gole. Me lembrei do fiambre e fui procurar nas sacolas para fazer e relembrar aquele tira-gosto que meu pai fazia. Quando a encontrei, fui abrir, mas ela veio sem a chavinha. Abri com um alicate, fiz a porção, comemos e bebemos. Foi uma noite gostosa.

Edson Basilio @edsonbas
Sonhei com Clarice
Acordei assustado de novo. Daquele jeito que a gente acorda quando sonha que está caindo de um prédio. O corpo deu um salto e caiu novamente na cama. Estava muito escuro, só um amarelado que vinha da luz do poste lá fora interrompia um pouco a escuridão. Olhei para o lado, no relógio já era madrugada. A manhã estava distante. Amanhã estava distante.
Virei para um lado e para o outro da cama por incontáveis vezes, mas não consegui pegar no sono novamente. Fiquei pensando na vida, na passada e na presente. Pensei principalmente nela. Sim, nela! Sonhei com ela novamente. Nunca a esqueci. Nunca! Quase uma vida juntos, mesmo estando separados. Tínhamos, e continuamos tendo, uma relação muito íntima, do "de dentro" dela para o meu "de dentro". Muito de mim é ela. Mas do meu jeito. Às vezes acho que, na verdade, sou eu mesmo, mas do jeito dela.
Quis ir à cozinha tomar um café. Era requentado, mas iria servir. Não consegui me levantar. Meu corpo não respondia. Toda vez que sonho com ela é a mesma coisa. Fico estático, imóvel. Engessado. Mas a cabeça a mil. Fervilhando de ideias, sem ter como tirá-las de lá. Se conseguisse me mexer, pegaria uma caneta e pronto. Com muito custo e suor frio consigo. A caneta funciona como um canudo com o qual eu sugo minha mente. O volume é tão grande que me engasgo, tenho uma crise de tosse e regurgito um pedaço dela.

Edson Basilio @edsonbas
Toda vez que a gente ia beber naquele boteco da esquina, a esposa do dono marcava algumas cervejas a mais na comanda. Ela ficava no caixa porque o marido só confiava nela. Os dois contratavam funcionários apenas para trabalhar na cozinha ou como garçons, eles não podiam nem chegar perto do caixa. De vez em quando, um deles via que ela estava na janelinha passando pedidos para a cozinha e o chefe não estava olhando, parava em frente ao caixa, dava uma reboladinha com as mãos na cintura e saía correndo. A gente morria de rir.
As asinhas de frango com o molho especial da casa eram o carro-chefe. Realmente era um tira-gosto delicioso, mas ninguém sabia o que aquele molho levava e a maioria dos frequentadores preferia nem saber. Outros bares até tentavam copiar, mas ninguém conseguia fazer igual, não acertavam o ponto na hora de fritar e muito menos na hora de preparar o molho.
Quando chegávamos lá, de cara já sentávamos na mesa de ferro forrada com uma toalha de pano em xadrez vermelho e branco, pedíamos uma cerveja super gelada e uma porção de asinhas. Nossas mãos ficavam todas engorduradas e sujas de molho, assim como a boca e em volta dela, mas não existia nada igual. Depois era só nos lavarmos naquela pia minúscula na qual nossas mãos quase não cabiam direito e ficavam esbarrando no fundo. Para usar a torneira, tínhamos que segurá-la com uma mão e abrir com a outra, senão ela rodava junto e a água ia direto para o chão. Ela ficava acima do mictório e a água que descia pelo ralinho já caía dentro dele, era a "descarga". O banheiro era muito estreito, nem dava para virar lá dentro na hora de sair, tínhamos que ir andando para trás mesmo.
Era o típico boteco que nós brasileiros gostamos de frequentar, bem simples, um clássico 100% nacional. O que incomodava era a mania que aquela mulher tinha de "errar" na hora de fechar a conta. Sempre vinham 2 ou 3 cervejas a mais do que a gente tinha consumido. Da primeira vez, ela disse que tínhamos perdido a conta porque bebemos demais. Passamos a guardar as tampinhas das garrafas no bolso para mostrar na hora de pagar, mas ela falava que a gente podia ter jogado algumas fora e que, assim como desconfiávamos dela, ela também tinha o direito de desconfiar da gente. A solução foi impor como condição para continuarmos a frequentar o bar que ela deixasse um engradado debaixo da mesa e as garrafas que fossem esvaziando seriam colocadas nele para conferir no final. Ela nunca mais errou na conta.
A gente até poderia ter trocado de boteco, afinal de contas, existiam dezenas de outros no mesmo estilo espalhados pela cidade, mas aquelas asinhas de frango...

Edson Basilio @edsonbas
Acho que o “Professor” nunca havia dado aula, simplesmente se autodenominava assim.
Ele apareceu um dia na cantina da faculdade e se tornou frequentador. Ficava o dia quase todo por lá, tomava café, almoçava e jantava. Não tinha nenhuma educação para comer, às vezes uma parte da comida que havia acabado de pôr na boca caía de volta no prato e na mesa, enquanto mastigava com a boca aberta e com aquele roach que subia e descia. Já conversei com ele por um bom tempo observando um fiapo de couve que estava pendurado no canto de sua boca, até cair e ficar pendurado no bolso da sua camisa. Tinha uma conversa envolvente, falava sobre tudo quanto é tipo de assunto e, embora emitisse uns assobios por causa do roach mal encaixado, conseguia prender a minha atenção. Andava mancando e levava na mão um livro escrito em alemão com um marcador de página que estava sempre na mesma posição. Gostava dos Beatles também.
Um grupo considerável de pessoas, às quais chamava de “alunos”, parava para ouvi-lo. Enquanto falava, ia tomando água na pequenina tampa da garrafinha de plástico, entre uma tragada e outra num cigarro que sustentava uma torre de cinzas que nunca caía. Quando chegava no filtro, usava o finalzinho da brasa para acender o próximo cigarro. Não me lembro de tê-lo visto sem um cigarro na mão. Não bebia refrigerantes, sucos, nem bebidas alcoólicas, apenas água.
De vez em quando, surgia com um esboço de alguma “invenção” sua rabiscado entre manchas de sujeira num pedaço de papel amassado e esfarrapado. Certo dia trouxe um pequeno instrumento, parecido com um compasso, que serviria para medir qualquer coisa, mediria comprimento, largura, espessura, profundidade, altura etc. Nunca explicou como funcionava. Tudo era misterioso, como se apenas ele dominasse o funcionamento daquelas coisas e o conhecimento sobre os assuntos dos quais falava. Era um “professor” que não ensinava, apenas expunha.
Da última vez que conversamos, o “Professor” prometeu levar, na semana seguinte, um disco raríssimo dos Beatles que havia conseguido comprar após anos e mais anos procurando em todas as lojas, inclusive em outros países. O disco se chamaria “Cucumber Castle”. Ele nunca mais voltou à cantina, desapareceu no mundo da mesma forma que havia aparecido.
Curioso sobre o tal disco raro, fui fazer uma pesquisa e descobri que, na verdade, ele não era nada raro, nem dos Beatles. Era dos Bee Gees e poderia ser comprado em qualquer loja de discos.

Edson Basilio @edsonbas
O clube abandonado é o ponto de encontro da molecada no final de semana, para entrar é só pular o muro. É um pântano, mas é o único clube que eles podem frequentar. E eles adoram.
Já fazia bastante tempo desde que as contas ficaram impagáveis, a administração declarou falência e fechou as portas. As piscinas viraram criadouros de mosquitos, com o fundo escorregadio, coberto de lodo e a água muito suja e marrom.
Numa cidade longe do litoral, não é fácil encontrar lazer que seja refrescante para a família no verão quando se é pobre. Morar perto da praia e ter isso tudo de graça é um privilégio para poucos. Já para quem só tem por perto clubes com mensalidades que não pode pagar, é muito mais difícil.
Rios, lagos e cachoeiras também ficam longe demais para quem mora na cidade e não tem como ir para a zona rural. Na maioria desses lugares, o ônibus, que é a única opção para quem não tem carro, um luxo que está ao alcance de poucos, não vai.
Observar tudo da sacada de um apartamento faz a gente refletir. Costumamos achar que é pouco todo o conforto e aconchego que temos, mesmo que não seja muito, mas o suficiente. Alguns de nós até podem frequentar um clube com os filhos e viajar de vez em quando para o litoral ou interior. E ainda achamos pouco.
Aqueles garotos, que só querem se divertir, como todos querem na infância, voltam para as suas casas sujos, mas felizes, levam uma bronca da mãe, têm que tomar um banho bem rápido para se limpar e, depois, não têm nem um biscoito para lanchar. O jeito é esperar a janta, a sopa diária. Outra água suja. E eles se lambuzam de novo.

Edson Basilio @edsonbas
Sou uma pessoa que tem medo de dentista. Até o barulho da broca, mesmo fora da boca, já faz os meus dentes doerem. Enquanto estou na sala de espera, fico inquieto, não folheio revistas, não aceito copo d’água e, cada vez que escuto aquele barulho, quase vou embora. Algumas vezes já fui. É psicológico isso, não tem explicação.
Quando finalmente sou chamado, primeiro finjo que não escutei, mas na segunda ou terceira vez não dá mais para fingir, tenho que ir. Antes de sentar na cadeira, puxo tudo quanto é tipo de assunto, elogio a decoração, pergunto pela família etc, até que o dentista quase me empurra na cadeira e diz: “- Então vamos lá, né?!”.
Assim que me sento, meu corpo começa a ficar todo duro, um calafrio passa pela minha espinha e todos os pelos do meu corpo ficam arrepiados. Mas é quando o encosto vai abaixando e a cadeira vai subindo que as mãos se travam nos braços dela e o suor começa a escorrer, parecendo que eu acabei de sair do banho e ainda não me enxuguei.
Foi então que surgiu a pergunta que mudou tudo:
- O que você quer assistir?
- Como assim?
- Na TV, enquanto a gente faz o seu tratamento.
- Que TV?
- Aquela ali no teto.
- Você tem uma TV no teto?!
- Sim, agora todos os consultórios de dentista têm.
- Tem tanto tempo que não vou num dentista que nem sabia, isso pra mim é novidade.
- Então, o que vai querer assistir?
- Nada. Nada não. Obrigado.
Pronto! Agora eu tinha um novo medo: o de a TV cair em cima de mim. Tentei aparentar naturalidade enquanto a gente estava conversando, mas não sei se consegui disfarçar. Acho que quanto mais a gente tenta, mais a gente acaba demonstrando.
Desse momento em diante, eu já não conseguia pensar nem enxergar outra coisa a não ser a TV. Era como se eu estivesse dentro de um quarto totalmente vazio onde só tinha eu, deitado na cadeira, e a TV, no teto, pronta para cair. Às vezes até parecia que ela dava umas balançadas, como se fosse uma pessoa ameaçando me dar um soco.
Uma voz disse: “- Prontinho, acabou!”. Era o dentista. Ele já tinha terminado o meu tratamento e eu não tinha percebido. Não senti nada. Não escutei nada. Nem a broca!