

fernandopaz @fernandopaz
Silencioso mistério
Pelas linhas converso
Talvez leia meu inverso
Controverso
De um jeito tão seu
que, sem palavras, confesso
Um jeito tão meu
que, ao observa-la, revelo
De querer perto
o que está longe
E de ser diário
o que é só um dia
Nunca é o bastante:
o mundo que não faz parte, mas arrepia
E mesmo sem um pio
faz a alma inteira gritar
Já não posso esconder
que o que não fica, aguarda
E o que se guarda, finca
Criando um furacão no meio do nosso (a)mar
Fernando Paz

fernandopaz @fernandopaz
O menino e o buraco
Era uma vez, um menino. Nasceu como todos os outros, mas tinha uma peculiaridade: um pequeno buraco no peito.
No início, era um buraco muito pequeno, quase imperceptível. Os pais tentaram fechá-lo assim que o perceberam, mas o buraco era tão pequeno que nem uma agulha passou.
Conforme crescia, o buraco crescia com ele.
Era uma criança comum e se divertia com esse pequeno detalhe, como quando a luz passava através dele e formava um arco-íris do outro lado ou quando a brisa o transpassava e ele se arrepiava com cócegas, caindo em seguida na gargalhada. A vida parecia simples e o buraco, um pequeno espaço para muitas brincadeiras.
Até que chegou o tempo de frequentar a escola e lá, o que antes era imperceptível se tornou evidente. As outras crianças apontavam, riam dele e embora não entendesse o que acontecia, começou a se perceber diferente. Ainda tentou se aproximar, mas as respostas eram sempre incisivas: “Aqui só há lugar para pessoas inteiras”. Mesmo sem querer, gradualmente, o menino começou a se afastar e tentar, desesperadamente, esconder o seu buraco, do qual passou a se envergonhar.
Descobriu que tinha habilidade para desenhar e sua primeira ideia foi desenhar um coração por cima. Isso, porque, nem os médicos sabiam como ele vivia, já que o buraco estava posicionado exatamente no lado esquerdo do peito. Embora sem comprovação, acredita-se que seu corpo todo pulsava como um coração e era o que o mantinha vivo.
Essa tentativa despertou alguma curiosidade alheia, mas não durou muito - o papel era muito fino e bastava um vento mais forte para que seu buraco fosse revelado.
Um dia, descobriu o violão. Nele, havia um buraco igual ao seu e ficou surpreso quando percebeu que as cordas faziam ressoar melodias que o acalmavam. Decidiu imitar e amarrou algumas cordas na sua pele e foi uma grande felicidade sentir seu corpo todo vibrar. E isso funcionou por um tempo. As pessoas paravam para ouvi-lo, mesmo que nunca escutassem o que tinha a dizer.
Seu corpo continuou a crescer e com ele, o buraco. As cordas de tão esticadas, não resistiram e se romperam. O menino se deparava, novamente, com o silêncio. Algumas lágrimas escorreram e, por um breve momento, quase soube o que era compaixão. Alguém se aproximou e tentou abraça-lo, mas os braços o transpassaram, fazendo com que a pessoa caísse do outro lado.
Em momentos assim, gostava de olhar o céu. Admirando a lua, como um buraco na noite por onde a luz passava. Sentia que eram feitos do mesmo mistério: ausências que traziam claridade.
Tentou se reinventar muitas vezes, buscando utilidades e formas de usar o buraco. E assim, se forçou a caber em lugares que não pertencia. E o que antes era um buraco, agora parecia um vazio.
Gradualmente, ninguém mais o enxergava (nem ele próprio), o buraco havia se tornado tão grande, que as pessoas viam através dele. O menino com um buraco agora era um buraco com um menino.
Sem saber mais o que fazer, se dirigiu a um abismo. Era um grande buraco também e imaginou que ali houvesse entendimento. Sozinho, gritou e ouviu o abismo responder com um eco. Estranhamente, ao se ouvir em uma resposta, se lembrou o que há muito havia esquecido: quem era. E algo inesperado aconteceu: naquele instante, o buraco se retraiu.
Ele gritou mais uma vez e a cada retorno, o buraco diminuía o suficiente para devolver sua humanidade e assim, decidiu percorrer todo o caminho de volta e a cada passo, seu buraco reduzia relembrando os dias felizes em que a luz formava arco-íris.
Até que em determinado ponto da estrada, uma luz, repentinamente, o ofuscou, fazendo que caísse no chão. Conforme seus olhos iam se adaptando, viu uma silhueta de alguém pela qual a luz transpassava. Nela, para sua surpresa, havia um buraco como o seu.
Ela estendeu as mãos e o levantou dizendo que estava em busca do mesmo abismo, que ele acabava de retornar. Com tantas semelhanças, seus buracos pareceram pequenos e sentaram lado a lado.
Riram juntos daquilo que até então os tinha feito chorar. Se entendiam, mesmo em seus eventuais silêncios até que se abraçaram e seus buracos ficaram sobrepostos como um eclipse, luz e sombra se encontraram naquele lugar.
Decidiram voltar juntos. Não haviam encontrado um ao outro; encontraram a si mesmos naquela surpreendente verdade: um buraco era apenas um lugar de preenchimento.

fernandopaz @fernandopaz
Trauma (Fernando Paz)
É a trave da alma
De um espinho
Perfurante
Que sangra
Mas não coagula
Estrangula a lembrança
Destemperança
De um momento cristalizado
Sentimento pregado
Ecos de uma dor
Silenciosa
E que silencia
É ferida aberta
Da doença que fechou
Então qual a cura?
Amor próprio
Que incinera
O eu que passou
Das cinzas
Abre os braços
E voa
Para uma nova versão
Que faz as pazes
Com a guerra que travou
Entre mortas lembranças
Todas vencidas
Saber que se venceu
