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Primavera — Tempo de Recomeçar

Nasci na primavera — e talvez por isso ela desperte em mim a lembrança de que a vida sempre pode desabrochar outra vez.
Essa estação não é apenas um espetáculo de cores: é uma lição silenciosa, uma metáfora viva do que significa recomeçar.
As árvores se desfazem do que já não serve, como quem entende que o passado não pode aprisionar o presente. O velho cai, o novo se veste. Há sabedoria nesse gesto simples: só floresce quem tem coragem de deixar ir. A renovação exige desapego.
Os dias se alongam e a luz se multiplica. Não é acaso: é o tempo nos presenteando com mais energia para criar, arriscar, inventar. A natureza desperta — pássaros, animais, insetos, flores. Tudo conspira para o movimento, convidando-nos a sair da hibernação interior.
Sentada no jardim, vejo um joão-de-barro erguendo sua morada. Ele sente o vento, antecipa a chuva, calcula a direção certa para proteger seus filhotes. Não discute com a Criação, não se rebela contra o destino: age em harmonia com ela.
E me pergunto: por que nós, humanos, resistimos tanto? Por que insistimos em levantar nossas casas — e nossas existências — contra o fluxo natural dos seres, quando poderíamos aprender a dançar com o mundo?
A primavera não é apenas estação: é símbolo. É convite. É espelho.
Cada botão de flor que se abre parece sussurrar que também nós podemos florescer.
O equinócio traz equilíbrio entre luz e sombra. Talvez a lição seja essa: cultivar pensamentos mais iluminados e evitar caminhos demasiadamente escuros.
Despeço-me do pássaro com a promessa de levar sua mensagem adiante. A natureza cumpre seu propósito — e nós, muitas vezes, esquecemos o nosso.
Mas se ouvirmos com atenção, ela nos dirá: o tempo é agora. O tempo é sempre. O tempo é de recomeçar.
Vamos?

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Encontro em Londres

Nos últimos dois anos, ela se entregara ao mundo virtual. As conversas com o brasileiro, regadas a traduções automáticas e confissões noturnas, tornaram-se sua rotina. Ele mexia com seus sentidos e a fazia acreditar em um amor capaz de atravessar oceanos. Gastou economias, tempo e energia para levá-lo a Londres, planejando uma semana de paixão. Mas, às vésperas do encontro, o medo lhe corroía o estômago: e se tudo não passasse de um golpe?
Ele também desconfiava. No táxi, a caminho do ponto de encontro, refletia: “E se for um fake? E se for um macho barbado?” Mas a ansiedade não o abatia. Estava na Europa, passagem paga, hospedagem garantida. Sorte de malandro não falha.
No Hyde Park, o local combinado, ele tentou localizar sua musa entre as pessoas que passeavam pelo imenso jardim. Uma mulher se aproximou e chamou seu nome. Ele olhou para trás, incrédulo, e pensou: “Será um pesadelo? Cadê a louraça show de bola da net?” Hesitou — mas cedeu ao beijo. Apesar da decepção, não desperdiçaria a viagem. Ela, encantada com o físico dele, já sonhava com alianças e lua de mel.
Passearam pela cidade. A caminhada realçava o cheiro da pele dele, e ela não resistiu: convidou-o para o flat. Para retardar o encontro, ele lançou os olhos sobre a imponente London Eye e se disse encantado. Então fitou os dela e sugeriu o passeio.
Ela ficou apavorada com o inesperado convite: tinha claustrofobia. Temia desapontá-lo e decidiu prorrogar o voo. Na tentativa de fazê-lo desistir, apontou para a fila interminável de pessoas que aguardavam para apreciar um dos mais famosos pontos turísticos da Terra da Rainha. Mas ele insistiu. Queria a visão de 360 graus de Londres.
A roda-gigante deslizou suavemente. Para ignorar o confinamento, ela rapidamente colocou os óculos escuros. Mas não adiantou. Apavorada, sentiu pernas e mãos tremerem, o suor escorrer e o coração explodir em batidas descompassadas. A boca seca denunciava o pânico: um medo irracional e uma ansiedade exacerbada a dominavam por completo.
A cápsula atingiu a posição máxima de altura. Lá embaixo, o Tâmisa serpenteava entre castelos, catedrais imponentes e monumentos que imortalizavam cenas perdidas no tempo.
O brasileiro caminhou até o centro da gaiola de vidro e se acomodou no banco estofado, próximo à companheira. Ela ainda tentou disfarçar o distúrbio, mas o estômago enjoado lhe provocou náusea. Tentou se levantar, perdeu o equilíbrio e caiu. Ele, sem entender, olhou assustado.
Não compreendia nada. O pânico começava a dominá-lo. Precisava encontrar uma forma de sair rápido daquela situação. Aproveitou que todos estavam focados nela e, sorrateiro, pegou a bolsa, guardando-a em sua mochila.
Por questões de segurança, o operador interrompeu a rotação da roda-gigante. A cápsula se abriu. Envergonhada, ela desembarcou e foi barrada pela polícia. Procurou pela bolsa, mas não a encontrou. Aliviada ao sair do confinamento, olhou ao redor, tentando localizar seu companheiro. Não o viu. Caiu em si e começou a gritar novamente — agora com raiva — ao perceber que ele já não estava mais ali. Xingou e tentou correr na esperança de alcançá-lo. Policiais a seguraram pelo braço, tentando impedir a fuga. Ela gritava, alegando ter sido enganada e roubada. Mas os guardas ignoraram seu pedido e seguiram escoltando a maluca.
Algumas quadras dali, o brasileiro seguia tranquilamente. Levava na mochila libras suficientes para aproveitar mais alguns dias daquela primavera. Entrou em um pub. Diante de uma caneca de cerveja, o malandro segurou a medalha de metal barato que trazia no pescoço e, seguro de si, agradeceu a Zé Pelintra pela sorte que nunca o abandonava.

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Um adeus ao Parque Caboclo: memórias de infância, saudade e a reflexão sobre o que chamamos de progresso.

Memórias do Caboclo

Vi hoje, por acaso, um anúncio na internet: no próximo dia 30 de setembro, o Parque Caboclo se despedirá da cidade. A manchete era incisiva — "Depois de 30 anos, nunca mais!" — e confesso que algo se apertou dentro de mim. Uma angústia fina, daquelas que misturam saudade com incredulidade.
Passei boa parte da minha infância naquele espaço. Era um refúgio de árvores frondosas, onde as aves faziam ninho e bandos de saguis atravessavam os galhos como acrobatas. Também foi casa para circos itinerantes, que se tornavam parada obrigatória nos domingos e nas férias. Lembro-me com nitidez: os palhaços exagerados, os trapezistas voando no ar, os elefantes imponentes e o globo da morte, que fazia a arquibancada vibrar. Eu dançava sobre a madeira velha, corria até o picadeiro para comprar algodão-doce, quebra-queixo e pirulitos. Voltava para casa melada, risonha, com o coração leve e os olhos cheios de encanto. Era bom. Bom demais.
Outro dia passei por ali, meio sem querer. Ainda havia crianças correndo, rindo, soprando bolhas de sabão que dançavam no ar. Mas o espaço parecia menor do que na minha lembrança. Talvez tenha sido o tempo... ou talvez tenham sido os prédios, que hoje cercam o parque, lançando sombras sobre ele. Uma placa reluzente anunciava a chegada de um novo empreendimento imobiliário, com promessa de “qualidade de vida” e um nome de cidade italiana.
Fiquei ali parada, perguntando em silêncio: qualidade de vida para quem? Para aqueles que nunca pisaram descalços na terra? Que nunca subiram em uma árvore ou provaram uma fruta colhida com as próprias mãos?
Duvido. Desconfiada, observei. Era difícil acreditar que aquele pedaço de verde, um dia declarado Área de Preservação Permanente, pudesse sucumbir à vontade de homens que moldam rios, cortam matas e desdenham da natureza. Homens que semeiam shoppings, erguem monumentos e colhem o que chamam de progresso.
O Parque Caboclo vai morrer. E isso é uma tristeza. Mas o que vivi ali permanece intocado dentro de mim. Talvez eu ainda passe por lá antes do adeus definitivo. Quero prestar minha última homenagem ao velho Caboclo, dar as boas-vindas — ainda que com o coração partido — ao futuro Firenze e oferecer meu lamento àqueles que pensam saber tudo, mas não sabem o essencial: que a vida não cabe em metros quadrados.
Estamos cada vez mais perto de viver em um planeta artificial. E nesse tempo que virá, quando já não houver árvores nativas nem pássaros nas manhãs, talvez alguém perceba — tarde demais — que uma simples sombra natural, o cheiro da terra molhada ou o canto de um sabiá eram, na verdade, os verdadeiros luxos da existência.
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Esta crônica é um retrato do trânsito que atravessamos todos os dias — caótico, intenso, mas cheio de detalhes que muitas vezes passam despercebidos. Um convite a enxergar a rotina urbana com novos olhos.

Entre Buzinas e Semáforos

As cortinas do dia se abrem: 06h30. Saio apressada, mas a manhã ainda sussurra. O perfume das flores invade o carro, a brisa fresca dança entre as folhas, e os passarinhos orquestram uma sinfonia delicada. Pelo retrovisor, a natureza se despede devagar. Um casal caminha com sorrisos largos, alheio ao mundo que me espera.
Meu trajeto é um desfile secreto, visível apenas para olhos atentos. Cada gesto, cada sombra, parece carregar histórias que ninguém percebe.
Subo os vidros. A cidade me engole. Ligo o som: a melodia da natureza se cala. O tráfego explode em buzinas e roncos de motor. Ônibus lotados passam apressados; passageiros exaustos encaram a vida com olhares vazios. Todos em alerta, protegendo-se de desconhecidos, navegando por espaços que parecem invisíveis uns aos outros.
Carros avançam, motos deslizam entre frestas como se desafiassem a gravidade, e o grito de uma ambulância corta o ar, exigindo passagem — talvez levando segundos de vida que ninguém mais pode medir.
À direita, uma vitrine exibe manequins imóveis, vestindo roupas de uma estação que ainda não chegou. Uma loja anuncia liquidação de móveis; outra promete um carro 0 km com parcelas que “cabem no bolso”.
Outdoors piscam promessas: pizzarias, academias, desejos que meus olhos já não alcançam. Um ciclista arrisca-se na avenida sem pista própria. A luz amarela treme. Um pedinte ergue um papelão: o PIX também serve como esmola. Jovens bocejando atravessam a faixa, hipnotizados pelas telas dos celulares, revelando preguiça e desalento diante da jornada que ainda nem começou.
Os carros param. Um flanelinha corre e, sem meu consentimento, joga água no vidro — mais suja do que limpa. Mais à frente, bolinhas coloridas flutuam no ar, girando em mãos habilidosas: um show de malabarismo improvisado.
O sinal verde me chama. Pacotes de balas pendem dos retrovisores como um varal; um moço os recolhe com precisão, recebendo moedas rápidas de mãos apressadas.
Ninguém vê ninguém. Todos enclausurados em mundos particulares que fingem ser globais, mas se fecham a cada toque. A cidade pulsa — ensurdecedora, intensa, viva — e, por um instante, sinto que cada buzina, cada freada, cada sorriso distraído, é uma nota na sinfonia caótica de infinitos personagens.

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Nesta crônica, realidade e imaginação se entrelaçam no cenário histórico do Parque do Ipiranga, no Brasil. Entre sombras de estátuas e rajadas de vento, o bronze ganha voz para questionar o presente, lembrando que a independência não é apenas um feito do passado, mas uma construção cotidiana. Um diálogo poético e inquietante com a História, que revela como o silêncio das esculturas ainda guarda ecos que insistem em ser ouvidos.

As Vozes do Bronze
A manhã soprava uma brisa de saudosismo quando decidi caminhar pelo Parque do Ipiranga. De repente, ouvi alguém me chamar. Olhei para um lado, depois para o outro… nada. Apenas silêncio e o farfalhar das árvores.
— Ei, estou falando com você! — a voz insistiu.
Engoli em seco. Para não parecer maluca, calei-me e apenas pensei: quem será?
A resposta veio de pronto:
— Sou eu, aqui na escadaria!
Levantei os olhos. Lá estava ele: Dom Pedro I, em sua estátua monumental diante do Museu do Ipiranga. Sua presença era imponente, como se pudesse realmente descer os degraus e caminhar entre os mortais. Convencida de que talvez tivesse exagerado nos drinks da noite anterior, comecei a me afastar discretamente, torcendo para que ninguém aparecesse e me flagrasse naquela cena patética.
Mas antes que eu desse o primeiro passo, uma rajada de vento arrancou meu chapéu. Corri atrás dele, que rodopiou pelo ar e foi pousar… exatamente aos pés do Imperador.
Foi então que ouvi, claramente:
— Então está tentando me ignorar?
Fiquei paralisada, arrepiada dos pés à cabeça. Algo dentro de mim ecoou forte — afinal, não é todo dia que se tem a chance de conversar com uma celebridade de bronze. Respirei fundo e resolvi entrar no jogo daquele improvável diálogo.
— Ok… está tudo bem com você?
— O que você acha? — respondeu Dom Pedro, com ironia.
— Bem… vejo que está reluzente. Imponente, centralizado no alto da escadaria, espada em riste… uma cena e tanto.
— Pois saiba que, por pouco, não deixo de ser estátua — replicou ele, num tom grave. — Minha vontade é descer estas escadarias e chamar todos os que estão ali no monumento. Talvez assim percebam que não são apenas figuras de bronze enfeitando o jardim.
Eu me virei, olhei para o Altar da Pátria. O ar pareceu vibrar. Ouvi o relinchar dos cavalos, os cascos ressoando contra o nada. Um a um, os personagens ganharam voz.
Os soldados da independência bradaram:
— Lutamos com sangue e suor por um país livre. E hoje? O que vemos é a dignidade acorrentada à ganância!
As figuras femininas ergueram seu grito uníssono:
— Somos o símbolo de uma pátria justa e soberana. Mas olhem ao redor: a corrupção corrói, a desigualdade cresce, e nossos filhos são esquecidos!
Até os cavaleiros se manifestaram:
— Marchamos para abrir caminhos de futuro. Mas o presente anda em círculos, preso a velhas mazelas.
Então, a Liberdade ergueu-se na biga e falou do alto do monumento. O vento carregou suas palavras:
— Vocês celebram, mas ainda há correntes invisíveis que ameaçam a esperança de todos.
Dom Pedro suspirou fundo e murmurou, como quem fala consigo mesmo:
— Às vezes me arrependo de ter dito aquele “Fico”. Será que valeu a pena permanecer para ver o Brasil devastar suas florestas, dizimar seus povos indígenas e poluir suas águas? Olhem para isso… cadê o Rio Ipiranga? Transformaram-no num riacho sufocado pelo concreto.
O chão pareceu tremer. As sombras das estátuas se alongaram, ameaçando se desprender do granito. A espada do Imperador brilhou como fogo quando ele a ergueu ainda mais alto.
Olhando para o parque, sua voz ecoou:
— Estamos irados! Vocês esqueceram que a independência não é apenas um grito no passado, mas uma conquista diária. Não adianta erguer esculturas se o povo continua cego pela ignorância e sem voz diante do poder!
O vento soprou mais forte, fazendo tremer a bandeira nacional ao longe. Eu estava ali, muda, sem saber se fugia ou se aplaudia. Afinal, não é todo dia que a História nos cobra sob a claridade impiedosa do sol.
Saí apressada. Talvez ninguém acreditasse em mim. Talvez nem eu mesma devesse acreditar. Mas uma certeza ficou: a História ainda fala — e grita — quando precisa.
E ao longe, irônico e solene, ecoava o som de uma banda militar, anunciando mais um 7 de Setembro.

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Ônibus não é apenas uma crônica sobre transporte público — é um retrato vivo da cidade que desperta e adormece entre buzinas, cheiros, encontros e solidões. Aqui, cada passageiro carrega uma história, cada freada revela uma cena e cada olhar perdido nos lembra de que, mesmo rodeados, podemos sentir-nos ilhas.
Uma viagem breve, mas intensa, que transforma o cotidiano em poesia e nos faz refletir sobre a vida que acontece dentro e fora das janelas de um coletivo.

Crônica – Ônibus

A cidade desperta, sigo pela rua com passos largos, já que hoje estou sem carro. Meu olfato alimenta a imaginação: pão quente e café fresco. Sinto falta de mesa, de família.
Um caminhão barulhento estaciona e garis acrobatas, com meias-três-quartos, saltam e sobem novamente entre uma coleta e outra. Um jornaleiro apressado pilota a moto e atira o jornal na varanda da casa rosa. Chego ao ponto daquele que irá me conduzir até o outro extremo da cidade. Cumprimento o grupo de pessoas e tenho dúvida se me faço visível.
Em instantes, o imponente Mercedes-Benz chega e causa alvoroço. Com sorte, embarco e, sem conseguir avançar, agarro com força o veículo voador, enquanto minha mente acaba de trazer a lembrança de alguns acontecimentos: a colega de trabalho que sofreu um acidente naquela mesma linha. O motorista irresponsável provocou uma freada brusca que luxou o joelho da coitada, deixando-a com a língua partida e o canino na mão.
Aproveito a breve parada; antes que o motorista pise novamente no acelerador, avanço pelo corredor. Seguro a mochila que leva parte da minha rotina e fico admirada com o equilíbrio da galera que consegue se acomodar ao sacolejar desenfreado do veículo, enquanto eu mal consigo atingir a roleta. Agora, sinto um hálito quente no meu rosto e ganho meu primeiro bom dia. As horas passam... Muitos falam ao celular, um homem lê um livro e uma jovem retoca a maquiagem enquanto eu me preparo para saltar em direção ao meu trabalho.
No final da tarde, após cansativa jornada, novamente cumpro meu papel de passageira. Tento me equilibrar dentro da cápsula metálica que faz o caminho inverso, e a cada parada permite que mais e mais pessoas embarquem. O veículo, prestes a explodir, também carrega cestas básicas, que ganham novos formatos a toda freada. Marmitas vazias exalam cheiro azedo, e, sem opção, eu levito. Na esperança de respirar ar puro, tento alcançar a janela e, agora, tenho certeza de que aqui não cabe a lei da física: dois corpos ocupam, sim, o mesmo lugar no espaço.
Um homem levanta o braço para dar passagem a uma velhinha, meu olfato acusa que o perfume perdeu sua validade. Observo que ali laços são estreitados e que a mocinha troca palavras melosas com o cobrador.
Uma moça com o bumbum avantajado entra. Levo uma cotovelada na costela e, antes de esboçar um gemido, meu dedinho é amassado pelo salto da altíssima Anabela. Sem cerimônia, a beldade se acomoda no mínimo espaço que resta entre o banco que eu ocupo. A moça chupa um sorvete e tem fones nos ouvidos, mas o volume da música é tão alto que não há como impedir que todos os passageiros compartilhem de sua trilha sonora. Um homem aproveita a situação para encoxar a popozuda.
A felicidade toma conta da minha alma quando avisto o anjo dourado que toca trombeta no alto da abóbada do templo santo. Meu coração sente o cheiro de verde e sei que meu lar está próximo. É estranho estar só, mesmo entre tantas pessoas, como se eu fosse uma ilha em um mar de rostos desconhecidos. A solidão, mesmo rodeada de corpos, sempre se faz presente. Despeço-me da tarde, a noite chega e traz o frio presente. Desembarco do veículo e me perco na escuridão. A lotação prossegue com meus desconhecidos colegas.

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Nesta crônica, convido você a me acompanhar a uma farmácia de hoje — repleta de shakes, esmaltes e promessas de saúde — enquanto minhas memórias me levam às farmácias da infância, com seus cheiros, cores e lembranças marcantes. Entre risos e nostalgia, percebo que, às vezes, saímos de um lugar simples levando muito mais do que esperávamos.

Crônica - A Farmácia da Vida Moderna
Juro que não sou frequentadora assídua de farmácia. Só entrei porque arranquei o siso e precisava comprar antibiótico. Mas confesso: assim que atravessei a porta, tive a sensação de ter parado no endereço errado.
Uma geladeira vertical transbordava shakes de todos os sabores e promessas. Ao lado, um freezer abarrotado de sorvetes me chamava; peguei alguns picolés para tentar refrescar a boca em luto.
À direita, um corredor inteiro de esmaltes, hidratantes, batons… tudo quase em promoção. No caixa, barrinhas integrais e proteicas, alinhadas como se vendessem saúde em doses embaladas.
Foi então que a nostalgia me atingiu.
Cadê a farmácia raiz da minha infância? Aquela em que o álcool ardia só de olhar? Onde o merthiolate era vermelho e denunciava a travessura por uma semana inteira? Hoje é incolor, indolor… e, quem sabe, até ineficaz.
Cadê o Neocid, que matava nossos piolhos, mas, vá entender, não nos matava também? E a Emulsão Scott, que tinha gosto de castigo, com aquela figura de bacalhau zombando da nossa careta?
Hoje, farmácia é quase um shopping: a gente entra para comprar remédio e sai com batom vermelho e brinco de argolas nas orelhas.
Talvez a cura esteja nisso mesmo: rir do absurdo moderno enquanto lembramos da violeta genciana que deixava a boca roxa.
Saí daquele espaço levando mais do que um simples comprimido. Levava lembranças… o carinho do Almanaque do Biotônico Fontoura, que prometia nos transformar em Hércules, enquanto histórias do Jeca Tatu se misturavam a passatempos, piadas e previsões astrais. Comprávamos remédio e, de brinde, levávamos cultura.

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Nesta crônica, o cotidiano se transforma em viagem sensorial. Entre palavras, sabores e silêncios, a narrativa percorre caminhos íntimos, revelando que a verdadeira comunicação vai além do que se diz — ela pulsa no corpo, no desejo e na memória.

Crônica - Odisseia da Língua

A manhã fria de junho anunciava que o dia seria agitado. O calor do líquido quente me trouxe aconchego. Senti prazer ao perceber o sabor do café encorpado invadir minhas papilas gustativas. O pão com manteiga tinha uma textura aveludada! Ainda bem que Márcia decidiu quebrar a dieta, pois aquele pão áspero, com gosto de isopor, era horrível!

Meia hora depois, saí para trabalhar dentro do meu refúgio refrescante, mergulhada na fragrância do antisséptico bucal.

Durante o expediente, falo vários idiomas e causo inveja nas vozes robóticas que ecoam pela sala. Sou única: consigo moldar o volume, o timbre e a frequência para tocar a alma daqueles que estão distantes. Arranco suspiros, lágrimas e sorrisos, dependendo do que o momento exige.

Agora, por exemplo, na reunião com o diretor da empresa, sou responsável pela conquista de Márcia. Ela irá receber o prêmio de melhor vendedora. A formação dos fonemas permitiu que os clientes “caíssem na lábia” da corretora, que conseguiu bater a meta de vendas do ano em apenas seis meses.

Logo mais, é hora do almoço! A refeição colorida e saborosa me deixa feliz! Pena que Márcia não lambeu o prato desta vez! O garçom surge com a sobremesa. O umami ativa minha salivação quando a taça de mousse de maracujá é colocada sobre a mesa. Sem resistir à tentação, deslizo sobre o creme açucarado, e meus receptores provocam uma deliciosa sensação de prazer.

Mas no final da tarde, a Márcia vai à dentista. Ainda meio adormecida, descanso após o trabalho árduo de falar o dia todo. A doutora Margarete havia exagerado. A dose cavalar de anestesia, os empurrões para cima, para baixo, para os lados e aquele ácido fosfórico com gosto amargo de veneno me deixaram estressada.

Vou para a universidade. Durante a aula de física, fico passeando pelo céu da boca, chupando balas, imitando lápis quando contorno os lábios sem me expor demais, para não parecer maluca e ser confundida com a língua de Albert Einstein, que, depois de anos, ainda permanece estampada na mídia.

A sirene anuncia que é hora de recolher os livros. À noite sigo pelas ruas da cidade. Márcia vai encontrar suas amigas no bar badalado da esquina. O som anima o ambiente e eu aprecio vários sabores: o salgado da batata frita, o amargo da cerveja, o azedo do limão e o doce do ketchup.

A mesa ao lado revela muitos sorrisos jovens, e um deles chama a atenção de Márcia, que tenta provocar um moreno de óculos fundo de garrafa e cara de intelectual. Entre lábios vermelhos e carnudos, vou me preparando. Aproveito as risadinhas para surgir devagarinho, fazendo cenas pelo canto da boca de Márcia. Às vezes, permaneço no centro, me revelando por inteiro, em outras, escorrego pelo sorvete de forma sensual.

Márcia está realizada. Conseguiu conquistar Leonardo, o maior “nerd” da Unicamp. Está feliz pelo empenho na conquista. É óbvio que fui eu quem verbalizou e trouxe à tona sentimentos que nem a própria Márcia sabia que existiam dentro dela.

O romance entre Márcia e Léo me trouxe novas experiências. Descobri sensações inéditas e atingi o clímax ao encontrar, dentro da boca do estudante, um órgão igual a mim: macio, carinhoso, mutável e com sabor de hortelã. A semelhança nos uniu e, entrelaçadas, vivemos uma sensação inexplicável. Então fascinada percebi que não é apenas a boca que fala, mas todo o corpo, todo o ser. Nossa dança sensual e delicada, transmite o que palavras jamais conseguirão. E, na união de dois seres, encontro o verdadeiro poder da comunicação, aquele que vem do coração e se traduz em um beijo.

Depois de momentos únicos, Márcia caminha pela noite, enquanto eu, revestida de mucosa, me abrigo em minha morada. Me calo diante das lembranças que não podem ser expressadas em frases. Márcia oculta o sorriso apaixonado.

E assim, eu, a língua de Márcia, sigo minha jornada de palavras não ditas, de carícias e segredos revelados. Entre o silêncio e o som, entre os beijos e as risadas, continuo a contar a história que não se escreve, mas se sente. Sou o elo invisível entre os corações, moldando desejos e revelando os mais profundos anseios.

E, enquanto a noite se estende e Márcia adormece, eu, a língua, permaneço em meu refúgio, entre os dentes que guardam meus segredos e os lábios que os revelam. O amor está presente, acolhido entre os tecidos macios das gengivas, enquanto eu repouso diante das muralhas de porcelana. Somos ciclos que se repetem, momentos que se completam, como um beijo que começa e acaba, mas deixa uma marca eterna na memória. Aqui, dentro desta boca, sou o que não se diz, o que se sente.