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Ativo Questionador

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wilcipolli @wilcipolli

O viaduto — Travessia entre mundos. (Parte II)

(…)

Até que, um dia, a angústia que Pedro sentia, dividindo-se entre dois mundos, explodiu.

Pedro ficou em silêncio. E num devaneio teve uma revelação. Algo que ele começava a compreender, mas que ainda parecia distante, como uma verdade difícil de encarar. Aquele pensamento, por mais desconfortável que fosse, traduzia uma verdade que ele não queria admitir: a luta sistemática das elites para "eliminar" a pobreza mais parecia um preconceito disfarçado de bondade. Era como o antigo “compelle intrare” — forçar a entrada dos miseráveis em espaços que não os acolhiam, apenas os disciplinavam. Uma maneira de distanciar o sofrimento dos favelados, tratá-los como um erro a ser corrigido, quando, na verdade, a pobreza era uma realidade perene, tão imutável quanto qualquer outra.

Naqueles dias seguintes, Pedro não conseguia mais olhar para a universidade da mesma forma. Seus prédios imponentes, suas promessas de mudança, pareciam mais distantes, quase utópicos. O que antes lhe parecia uma escada, agora se mostrava mais uma miragem que os eruditos ansiavam, mas que jamais poderia ser alcançada sem entender a realidade crua que ele conhecia. Sua comunidade, com suas feridas abertas e dores imensas, continuava ali, resistindo, assim como ele. E Pedro, finalmente, entendeu que a verdadeira resistência não estava em tentar escapar de sua origem, mas em conter a violência do mundo sem ser consumido por ela.

Aconteceu, então, que Pedro começou a passar mais tempo observando o Sábio, tentando entender a filosofia silenciosa daquele homem, um homem que, em sua simplicidade, parecia compreender mais do que muitos sabiam. Ele queria entender como um ser humano poderia carregar tanta dor e, ao mesmo tempo, mantê-la em contenção, sem ser destruído por ela. Como poderia alguém ser tão sereno diante de um sofrimento que parecia engolir tudo ao redor?

A contenção, Pedro aprendeu, talvez fosse a maior forma de resistência. E, aos poucos, começou a praticá-la. Não mais como uma fuga, mas como uma escolha consciente. Uma escolha de permanecer inteiro, mesmo quando o mundo ao seu redor parecia desmoronar — um gesto de resistência silenciosa contra a violência da existência.

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wilcipolli @wilcipolli

O viaduto — Travessia entre mundos. (Parte I)

Pedro Sales atravessava o viaduto todos os dias, como quem segue um ritual silencioso, um passo após o outro, sem pressa. O som das suas botas sobre o asfalto quente ecoava em um ritmo próprio, como se ele carregasse não só o peso do corpo, mas de dois mundos que se chocavam sob o concreto. De um lado, sua comunidade, a favela, cercada por muros invisíveis de violência, miséria e desilusão. Do outro, a universidade, com seus prédios imponentes e promessas de um futuro melhor — um futuro que, para Pedro, parecia sempre distante, quase inalcançável, como um reflexo distorcido ao fundo de um espelho.

O viaduto era a ponte entre esses dois mundos, mas a cada passo dado sobre o mesmo, a distância entre sua realidade e a daqueles que caminhavam pelos corredores da universidade se ampliava. Acreditar que bastava atravessar o concreto para romper séculos de exclusão era um ledo engano.

O curso em que Pedro se inscreveu era uma tentativa da academia de se estender à classe trabalhadora, uma iniciativa aparentemente generosa, uma escada feita de livros e teorias para os desfavorecidos. A ideia de que o simples ingresso de estudantes periféricos resolveria os abismos sociais era, na verdade, um erro crasso. Pedro agarrou a chance com a força de quem sabe que a educação é, muitas vezes, condição sine qua non para escapar do labirinto da miséria. No entanto, com o tempo, o conhecimento se revelou uma faca de dois gumes. Quanto mais ele aprendia, mais se via aprisionado nas contraditórias paredes de um mundo acadêmico que se afastava da sua realidade. A universidade não oferecia apenas diplomas, mas uma cegueira que o distanciava de sua gente. Para os estudantes, ali era escrito o futuro, já conquistado. Para Pedro, era uma visão nebulosa e sua vida, por mais que ele tentasse, nunca se encaixava naquele cenário.

A favela, por sua vez, parecia imortal, um destino eterno. Nenhuma graduação, nenhum discurso sobre transformação social pareciam capazes de alterar o curso de quem vivia à margem. A dicotomia entre centro e periferia não era apenas geográfica — era histórica, cultural e ideológica. A desigualdade, pesada como uma pedra, era uma herança que se perpetuava sem perdão. Pedro às vezes pensava na antiga plebe romana, nas multidões esquecidas que viviam à sombra do poder e da riqueza. E se perguntava: "Será que a favela é a plebe moderna?" Ele não sabia a resposta, mas sentia que sim, que a história era um ciclo que se repetia — e que ele estava preso em sua espiral.

No final do viaduto, Pedro sempre encontrava o homem conhecido como "Sábio". Ele não era sábio por ter estudado em livros ou por discursar filosofias complexas. Sua sabedoria vinha de algo mais profundo, algo que Pedro ainda não conseguia entender, como uma quietude que surgia de sua aceitação do que era. Todos os dias, o Sábio escrevia uma frase num pedaço de papelão e colocava uma cumbuca ao lado, esperando talvez por algum gesto de compaixão de um transeunte. Pedro nunca tinha moedas para dar, mas sempre parava para cumprimentá-lo. Tentava puxar conversa, fazia um monólogo, mas o Sábio nunca respondia. Ele apenas o olhava com um olhar penetrante, como se visse além da pele, como se fosse capaz de ver o que Pedro ainda não compreendia.

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“Bípede, meu irmão: Eis o fim prosaico de um espermatozóide que, há mais de 80 anos, penetrou num óvulo, iniciou seu ciclo evolutivo e acabou virando carniça. Estou enterrado aqui. Sou o Chico Sombração. Xingai por mim”

(texto da lápide de Francisco Franco de Souza).

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Trecho de minha obra autobiográfica inacabada.

"(...) Nossa casa ficava menos de três minutos de caminhada da residência de minha avó. Minha mãe, meu irmão e eu a visitávamos rotineiramente nas manhãs, um hábito que, na infância, me transmitia uma sensação de estabilidade.

Foi nessa época que o cheiro de um orvalho matinal impregnou-se no meu subconsciente. Um aroma sorrateiro e sinestésico, que não precisava de um dia específico para se manifestar. Bastava um instante qualquer; a falação de uma escola próxima, a calçada sendo varrida pelo vizinho idoso, o sol amarelo das nove, o papagaio falastrão do vizinho, ou o caminhão de gás a tocar Für Elise, de Beethoven. Era a síntese de um contentamento infantil, um símbolo da unidade familiar que, ainda ingênuo, eu acreditava ser inabalável.

Tenho viva a lembrança de desejar que aquele aroma jamais me escapasse. E, para minha angústia, ele nunca escapou.

Imagine você, em seus dias mais cinzentos — na puberdade transbordando hormônios, no luto por um ente querido, no instante exato em que percebe que um sonho fracassou — ser subitamente arrastado de volta para a infância por um odor nostálgico. Uma época que, talvez, nunca tenha sido tão perfeita quanto parece.

Boa recordação torna-se tortura."

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1704

Na busca por sabedoria,

tornei-me conhecedor.

Apenas conheço.

O saber habita em mim,

mas sou só ele —

e nada mais.

O que me faltou?

Livros, não.

Faltou molhar os pés

no rio da existência.

Faltou sentir.

Na busca por sabedoria,

Fracassei.
Como um bom estudioso.

Ouvi o sábio da maçã:

"A luz é uma ponte

entre ti e o mundo.

Ela toca,
reflete,

e retorna aos teus olhos."

Minha visão te tateava,

tanto quanto minha mão.

Mas na busca por sabedoria,

eu não soube te olhar.

Fui tolo —

sábio não.

Por quê?

Porque agora

não posso mais tocar.

Nem minha mão te alcança,

nem meu olhar.


E o rio da existência

segue,
 sem ti.

Sem ti, saudade.

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Espelho, espelho meu

O tempo passa, firme, inexorável,
no espelho, a face se transfigura.
Espreita o vidro, olhar interrogável,
buscando a juventude que foi pura.

A bruxa indaga ao vidro tão cruel,
se ainda reina, jovial, sua nação.
Mas vê no rosto um traço mais fiel,
um sulco fundo em lenta erosão.

Desperdiçamos quando ainda jovens,
segundos raros que não retornam.
A eternidade não serve aos homens,
que de tique, em taque, evaporam.

Jamais pedimos para aqui nascer,
mas suplicamos para não perecer.

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A seguir, uma crônica fazendo alusão às constantes críticas que tenho visto nas redes sociais, sobre influencers gravando conteúdos em academias. Uma crônica cômica, irônica e ácida. Aproveite!

Título: “Bia Fit”

Eu só queria treinar em paz. Só isso. Desde que decidi participar do Campeonato Municipal de Agachamento Profundo (sim, isso existe), minha vida se resumia a duas coisas: descer e subir. Joelho flexiona, joelho estende. Nada de firula. Nada de distração.

Até que ela chegou.

Bia Fit. Ou pelo menos era o nome que estampava sua garrafa d’água, seu top, sua toalha, seus stories, sua existência. O problema? Bia Fit não treinava. Bia Fit performava.

Ela fazia do agachamento um evento multimídia. Três takes por repetição. Um filtro para cada gota de suor. Texto motivacional, enquetes, desafios. “Cada curtida, um agachamento!” “Cada compartilhamento, uma superação!”

Para mim, um inferno. Porque, enquanto ela verificava as notificações, a barra de agachamento ficava lá, parada, esquecida, como um figurante de luxo.

Eu podia reclamar? Podia. Mas e se... e se eu desse a ela o que ela queria?

Criei perfis fakes. Vários. A cada postagem dela, eu despejava curtidas e comentários como um algoritmo enlouquecido. "Maravilhosa!" "Inspiração!" "Rainha do agachamento!" Ela queria engajamento? Pois então.

E funcionou. Funcionou bem demais.

Dias depois, a academia estava vazia. Minha barra, livre. Bia Fit sumira.

Foi um alívio. Treinei como nunca. Fiquei forte, veloz. Estava pronta.

Então chegou o dia do campeonato.

E quando anunciam a próxima competidora...

Bia Fit.

Com patrocínio, uniforme personalizado, um treinador particular. Fiquei em choque. Como? Como aquilo aconteceu?

Foi só depois que entendi. Meus perfis fakes não a sabotaram. A impulsionaram. Ela virou um fenômeno. Tanto engajamento atraiu seguidores, que trouxeram patrocínio, que trouxeram dinheiro. Dinheiro suficiente para que ela abrisse sua própria academia.

E enquanto eu me equilibrava sob o peso da barra, vendo aquela mulher agachar como se tivesse molas no joelho, caiu a ficha.

Eu só queria treinar em paz. Ela queria vencer.

Eu odiava a performance. Ela transformou a performance em poder.

Quando anunciaram sua vitória, engoli a frustração.

Aprendi uma lição? Sim.

Mas antes... vou ali criar mais uns perfis fakes. Tem outra competidora que me irrita.

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O Rádio no Deserto

Era uma manhã quente e sem promessas de alívio quando o avião caiu. Um grupo militar em missão secreta foi forçado a fazer um pouso de emergência no deserto imenso após uma pane na aeronave. A situação era desesperadora. No entanto, havia algo que os mantinha vivos: a limitada carga do avião. Comida, água, medicamentos... aquilo era tudo o que tinham. Mas sabiam que não duraria muito. Mesmo com a morte do comandante e do piloto, o grupo ainda era composto por cinco pessoas, e os recursos estavam cada vez mais escassos.

No primeiro dia, o subcomandante assumiu a liderança e ordenou que, em duplas, fizessem patrulhas pelos arredores. A ideia era aumentar as chances de serem encontrados ou, quem sabe, encontrar algum pedaço do avião, que logo seria coberto pela areia. A rotina era exaustiva. As patrulhas se sucediam a cada hora, sempre com a esperança de que, de alguma forma, algo poderia mudar: um sinal de resgate ou, talvez, algum objeto que pudesse ajudá-los.

Foi então que, em uma dessas patrulhas, encontraram algo que parecia um milagre: o rádio portátil do comandante. Ele havia morrido na queda, mas o rádio... ah, o rádio parecia ser a chave para a salvação. Era o único meio de comunicação, o último vestígio de esperança de contato com o mundo exterior.

Os rádios militares funcionam em pares, mantendo uma frequência única que só se conecta entre si. O rádio do comandante estava sintonizado com o rádio de outro grupo, que não havia caído com o avião. No entanto, o problema era que eles estavam fora de área, em um deserto vasto e isolado. O que restava era a procura por algum lugar que conseguisse manter o contato, o que parecia uma missão impossível. O clima estava tenso. Cada um com suas estratégias e formas de lidar com a solidão e o medo, mas sempre fiéis ao subcomandante, que era o único a manter algum senso de ordem.

Durante uma patrulha noturna, o soldado comentou com o cabo que o acompanhava:

– "Um rádio caríssimo, tecnologia de ponta, à prova d'água e inútil. Que decepção."

Após uma breve reflexão, o cabo respondeu:

– "Não é à prova d'água."

A patrulha deles já estava terminando, mas o tempo foi o suficiente para que se estressassem ao ponto de uma discussão acalorada. Gritos e xingamentos se espalharam pelo deserto, reflexo do calor, da desidratação e da falta de qualquer perspectiva de resgate. Quando chegaram ao acampamento, o soldado, ainda em seu ímpeto de provar que o rádio era, sim, à prova d'água, fez o impensável: mergulhou o rádio no último cantil de 5 litros de água. O cantil já estava pela metade, e era a única água que restava. Ao mergulhar o rádio, um pouco da água foi espalhada, deixando quase nada no fundo do recipiente.
Quando percebeu o erro, a lucidez finalmente o atingiu.

Ele retirou o rádio da água, mas foi em vão: as luzes do rádio começaram a apagar lentamente, e a frustração tomou conta do grupo. Todos estavam incrédulos com a atitude. Alguns, tomados pela raiva, cogitaram punições severas, talvez até a morte. Contudo, após uma longa madrugada de discussões, todos seguiram as ordens do subcomandante.

– "Alguém morrer agora será sem necessidade, se todos já estivermos destinados a isso. Não sabíamos se o rádio de fato funcionaria. E, apesar da falha fatal, este asno permanecerá trabalhando conosco. E, se formos resgatados, ele responderá ao setor jurídico da instituição."

Na manhã seguinte, após horas de caminhada, algo apareceu no horizonte. Em meio ao nada, um brilho se destacou na areia. Era uma lâmpada. A patrulha, exausta e cética, levou o objeto de volta ao acampamento. O subcomandante, ao observar a lâmpada, teve uma ideia. Talvez fosse uma chance. Talvez fosse um sinal. Talvez fosse magia.
Sem hesitar, ele esfregou a lâmpada. Como em um conto de fadas, um gênio apareceu diante deles. Era imponente, envolto em fumaça, e sua voz grave e autoritária ecoava no ar. O desespero misturava-se à expectativa. O gênio, com sua presença imensa, ofereceu um único desejo ao grupo.

Todos, então, refletiram. O desejo de salvar-se tomou conta deles. Mas logo perceberam que pedir dinheiro, joias ou até mesmo comida não resolveria. Estavam ali, no deserto, para sobreviver. Precisavam de algo mais significativo.

Foi então que o homem que havia destruído o rádio, tomado pela culpa e agora com os olhos brilhando de uma nova esperança, se adiantou. Ele estava convencido de que algo tão simples poderia ser a solução. Olhou para o gênio e, com voz firme, disse:

– "Quero um rádio!"

O gênio o encarou, surpreso, mas fez um gesto com a mão. Instantaneamente, o rádio apareceu nas mãos do homem. Todos ficaram em silêncio, observando o objeto. O gênio, prestes a desaparecer em fumaça, olhou para ele e, com um sorriso enigmático, fez a pergunta:

– "Mas vai falar com quem?"

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wilcipolli @wilcipolli

"Em um futuro distópico, a sociedade foi moldada para a máxima eficiência, reduzindo cada indivíduo a uma única função, desempenhada mecanicamente ao longo da vida. O sistema, administrado por uma inteligência artificial, mantém a ordem sem o que os habitantes saibam — até que Évora, uma jovem encarregada de passar cadarços em tênis, começa a questionar sua realidade.

Ao inovar na maneira de amarrar os cadarços, desencadeia uma revolução inesperada, despertando nela dúvidas mais profundas. Sua busca por respostas a leva a um grupo rebelde que descobriu a verdade oculta — a IA não somente coordena, mas governa a humanidade."

"Fragmentos", esta é a sinopse da inédita novela de ficção distópica. Aproveite esta curta leitura. A crítica social é mordaz e lhe deixará pensativo por um longo período de tempo.