"Você acredita que toda história de amor tem um final feliz?" A voz dela ecoava, quase como uma canção fantasmagórica entre o caos. O ar era pesado, sufocante, misturado com o cheiro acre de carne queimada e o sabor metálico do sangue. Era o ano de 1347, e Greifswald, na Pomerânia, ardia em chamas. As casas, construções simples de madeira e palha, estavam envoltas em uma cortina de fogo. As chamas lambiam os telhados, iluminando a noite com um brilho infernal, enquanto os gritos desesperados de homens, mulheres e crianças ecoavam pelos becos, saturando o ar com uma sinfonia de agonia. O vento soprava quente, trazendo consigo a fumaça densa e o terror. Dentro das casas, os aldeões derretiam seus preciosos objetos de prata – utensÃlios, joias de famÃlia, até moedas –, transformando-os em lanças, espadas, facas e balas. As forjas improvisadas resplandeciam como brasas vivas, enquanto os homens, com os rostos cobertos de fuligem e suor, trabalhavam freneticamente. Cada golpe nas armas era marcado pelo som metálico, um contraste sinistro contra o rugido das chamas.
"Você acredita que... toda história de amor... merece um final feliz?" repetia a jovem mulher, sua voz agora vacilante, mas ainda carregada de algo profundamente sombrio. Ela estava amarrada a uma estaca no centro da praça da aldeia. Os habitantes, antes seus vizinhos, agora assistiam com os olhos cheios de medo e fúria. O padre, de túnica negra, levantava as mãos ao céu, o fogo refletido em seus olhos como o próprio julgamento divino. “Os lobisomens foram condenados por seus crimes contra Deus, e contra a humanidade. Que o fogo purifique suas almas. Deus seja louvado!â€, bradou o padre, fazendo o sinal da cruz enquanto as chamas subiam ao redor da mulher, começando a devorar suas roupas e pele. Os gritos dela, porém, não eram apenas de dor. Havia uma maldição em seus lábios, uma promessa de vingança além da morte. O caos continuava ao redor. Os corpos de lobisomens, presos entre formas humanas e bestiais, jaziam espalhados pelas ruas, as feridas abertas brilhando com o brilho opaco da prata que os havia matado. Sangue cobria as pedras da praça como uma oferenda aos céus, misturando-se ao cheiro de carne chamuscada. O brilho prateado das armas recém-feitas refletia o desespero e a violência. Homens da Igreja caçavam ferozmente os últimos remanescentes, atravessando corações com lâminas de prata, atirando à queima-roupa com balas forjadas nas horas de desespero.
"Eu perguntei se...você acredita, na porra do final feliz nas histórias de amor?" A voz da mulher ecoou uma última vez, carregada de uma tristeza amarga, um ódio antigo. As chamas a envolveram completamente, sua figura desaparecendo em meio à fumaça. Seu corpo foi consumido pelo fogo, até que restaram apenas cinzas dançando no ar da noite, levadas pelo vento que carregava a destruição da aldeia. E em meio à ruÃna, o som do aço contra o aço continuava, o rugido dos homens e o grito dos monstros se misturando no desespero de um fim que não era nada feliz. Era 2 de junho de 1327, um dia como qualquer outro na pequena vila de Greifswald, na Pomerânia. A aldeia, com suas casas de pedra e madeira cobertas de musgo, estava envolta em um silêncio pacÃfico, quebrado apenas pelo som suave do vento entre as árvores e o ocasional relinchar dos cavalos no estábulo. Mas em uma cabana humilde, naquele dia, a paz seria substituÃda pelo primeiro choro de uma nova vida.
Dentro da pequena casa, uma mulher suava e gemia de dor. A luz fraca da lareira lançava sombras tremulantes nas paredes enquanto ela se contorcia sobre um leito de palha. Sua respiração era ofegante, mas ela permanecia firme, seus dedos apertando com força o tecido da manta. As parteiras ao redor trabalhavam em silêncio, os rostos concentrados e experientes, guiando o nascimento com mãos rápidas e precisas. Finalmente, depois de horas de esforço, um choro cortou o ar. A criança havia nascido. Uma menina. As parteiras sorriram, trocando olhares de alÃvio e alegria. A mulher, exausta, abriu os olhos e estendeu as mãos trêmulas para receber a filha. Com cuidado, uma das parteiras colocou o bebê em seus braços. A pequena menina chorava, com o rosto ainda molhado, mas assim que sentiu o calor da mãe, seu choro diminuiu até se transformar em um resmungo suave. Os olhos da criança, ainda confusos com a luz, piscaram levemente. Eram de um tom encantador de mel, claros e profundos, como se carregassem a luz dourada do sol em seu interior. O cabelo castanho, já cheio e bagunçado, emoldurava o pequeno rosto, onde várias sardas começavam a se espalhar, dando-lhe uma aparência terna e angelical.
A mãe, cansada, mas transbordando de amor, sorriu ao ver sua filha pela primeira vez. Suas mãos ásperas, calejadas pelo trabalho no campo, agora acariciavam suavemente a pele delicada do bebê. "Catarine..." murmurou a mulher, sua voz carregada de emoção e uma doçura que raramente se via em tempos tão difÃceis. "Seu nome será... Catarine." Ela apertou a filha contra o peito, seus olhos brilhando com lágrimas de felicidade. Naquele momento, o mundo ao redor parecia se desvanecer. O frio do lado de fora, as dificuldades da vida cotidiana, tudo desaparecia diante da perfeição daquela nova vida em seus braços. Catarine, com seus olhos de mel e sardas que já cobriam seu pequeno rosto, era um milagre nascido de um lugar tão modesto. A mãe fechou os olhos por um breve momento, sentindo a respiração suave de Catarine contra sua pele. E naquele instante, soube que, apesar das incertezas da vida, o futuro de sua filha carregava uma promessa especial, algo que a pequena vila de Greifswald talvez nunca pudesse entender completamente.
A mãe de Catarine, uma mulher forte e resiliente, se chamava Elisabeth Schmied. Seus cabelos castanhos, presos em uma trança longa e simples, caÃam sobre seus ombros enquanto algumas mechas soltas moldavam seu rosto angular e ligeiramente pálido, marcado pelo trabalho árduo e pelas dificuldades da vida camponesa. Seus olhos eram de um mel profundo, serenos, mas com um brilho de determinação que mostrava a dureza de sua existência. Embora as linhas finas ao redor de seus lábios denunciassem os anos de sacrifÃcio, ela ainda mantinha uma beleza natural, realçada pelas sardas leves que salpicavam seu nariz e bochechas. As mãos, calejadas e ásperas, denunciavam seu trabalho no campo, onde cuidava da terra e dos animais, plantando e colhendo, dia após dia. Elisabeth era uma agricultora, dedicada à vida simples e ao sustento da famÃlia. Ao seu lado, o pai de Catarine, Johann Schmied, era um homem imponente, com a pele bronzeada pelo calor da forja. Seu corpo musculoso era marcado por anos de trabalho duro como ferreiro, forjando ferramentas, ferraduras, e armas para a aldeia. Johann tinha cabelos escuros, curtos e ligeiramente desgrenhados, com mechas de cinza começando a aparecer nas têmporas, sinal dos anos passados no calor da forja. Seus olhos castanhos escuros refletiam a seriedade de um homem acostumado ao trabalho manual, mas havia um calor neles, especialmente ao olhar para sua esposa e agora para sua filha recém-nascida.
Seu rosto quadrado era marcado por cicatrizes leves, pequenos cortes e queimaduras que acumulou ao longo dos anos. Usava uma barba curta e bem aparada, que acentuava ainda mais suas feições duras, mas havia uma suavidade em seu sorriso que apenas Elisabeth conhecia bem. Ele vestia uma túnica simples, coberta por um avental de couro manchado pelo uso, e suas mãos eram grossas e poderosas, acostumadas a segurar o martelo e moldar o ferro incandescente. Quando viu a pequena Catarine nos braços de Elisabeth, Johann se aproximou, sua postura geralmente rÃgida amolecendo à medida que contemplava sua filha. Com um gesto cuidadoso, ele acariciou a cabeça da criança, sentindo o cabelo suave como seda. "Ela tem seus olhos," ele murmurou, com um sorriso tÃmido. Embora fosse um homem de poucas palavras, o orgulho e a ternura em seu olhar falavam por si. Johann e Elisabeth Schmied, unidos pelo trabalho e pela vida dura de uma aldeia medieval, agora tinham uma nova razão para perseverar: sua filha, Catarine, que trazia consigo a promessa de um futuro, mesmo que incerto, em um mundo implacável. O primeiro ano de vida de Catarine foi marcado por desafios constantes para seus pais, Johann e Elisabeth Schmied. Eles eram pobres, como a maioria das famÃlias camponesas da vila de Greifswald, na Pomerânia, e viviam na tênue linha entre a sobrevivência e a miséria. Cada dia era uma batalha, e a chegada de Catarine, embora uma bênção, aumentava o peso das responsabilidades sobre seus ombros já sobrecarregados.
A casa onde viviam era modesta, feita de pedra e madeira, com um telhado de palha que precisava de constantes reparos. O interior era escuro, com poucas janelas pequenas que mal deixavam a luz do sol entrar. As paredes eram grossas, mas mal isoladas contra o frio cortante dos invernos rigorosos da região. Um fogão de barro, construÃdo no canto da sala principal, era o coração da casa, onde Elisabeth preparava as refeições e mantinha o pouco calor que podiam conservar. As chamas do fogão eram um sÃmbolo da vida na casa, pois sem ele, o frio e a fome os teriam vencido. O chão de terra batida era coberto apenas por alguns trapos velhos, e os móveis eram simples e feitos à mão por Johann. Um banco tosco, uma mesa com pernas irregulares, e duas cadeiras compunham o parco mobiliário. No canto, havia uma cama feita de feno, coberta por mantas de lã ásperas, onde Elisabeth dormia com Catarine. Johann, por sua vez, dormia em um pequeno catre ao lado, para deixar a filha mais próxima da mãe. Os dias de Johann eram passados na forja, onde o calor intenso contrastava com o frio constante da aldeia. Ele moldava ferro em ferramentas e armas para os outros aldeões, mas raramente era pago com moedas. Em vez disso, recebia trocas – sacos de grãos, pedaços de carne, ou à s vezes até roupas usadas. As mãos de Johann estavam sempre machucadas, cobertas de queimaduras e calos, e seu corpo, embora forte, começava a mostrar sinais de desgaste. Ele saÃa de casa antes do nascer do sol e só retornava à noite, exausto, muitas vezes incapaz de conversar ou brincar com Catarine, que o aguardava com seus grandes olhos cor de mel.
Elisabeth, por sua vez, cuidava da pequena Catarine durante o dia, enquanto trabalhava incansavelmente nos campos ao redor da casa. Plantava e colhia vegetais, cuidava das poucas galinhas e ovelhas que tinham, e fazia o possÃvel para manter o sustento da famÃlia. Quando Catarine chorava, Elisabeth a carregava consigo, amarrando a filha nas costas com um pedaço de pano enquanto usava as mãos para puxar ervas daninhas ou cortar lenha. Cada pedaço de comida era racionado com cuidado, e muitas vezes Elisabeth passava fome para garantir que a filha tivesse o suficiente. A pobreza era uma presença constante. O inverno trouxe fome e frio, forçando-os a queimar pedaços de madeira velhos ou até mobÃlia para manter o fogão aceso. As roupas eram sempre remendadas, e o couro das botas de Johann já estava tão gasto que ele sentia o frio da terra nos pés. Catarine, embora jovem demais para compreender a dureza da vida ao seu redor, era uma criança alegre, com risos que preenchiam a casa sombria, trazendo um sopro de esperança aos pais.
Elisabeth, apesar do cansaço que a dominava, passava horas balançando Catarine nos braços, cantando-lhe canções antigas enquanto o vento uivava do lado de fora, tentando entrar pelas rachaduras das janelas. Quando Johann chegava da forja, muitas vezes sujo de fuligem e carregando o peso do mundo em suas costas, ele sentava ao lado do fogo, segurando a filha por breves momentos, antes que o sono o vencesse. O primeiro ano de Catarine foi um testamento à resiliência de Johann e Elisabeth. O trabalho duro, a fome e o frio os acompanhavam todos os dias, mas o amor por sua filha lhes dava forças para continuar. A pequena casa, embora simples e sempre necessitando de reparos, era um abrigo seguro, onde cada sacrifÃcio era feito para garantir que Catarine tivesse o mÃnimo que uma criança precisava para sobreviver. Mesmo em meio à pobreza e ao trabalho exaustivo, os pais a olhavam com a esperança de que, um dia, ela poderia ter uma vida melhor do que a deles. Catarine tinha apenas dois anos, mas sua inocência foi brutalmente interrompida em uma noite sombria e tensa. O ar estava pesado com o cheiro do feno, e a casa, que costumava ser um refúgio de calor e amor, agora pulsava com a tensão de uma tempestade prestes a se desatar. Johann havia voltado da taverna, e os ecos de risadas e conversas logo se transformaram em murmúrios indesejáveis, misturados com o barulho de passos pesados na porta.
Quando ele entrou, o brilho de seus olhos estava nublado, e o odor de álcool pairava ao seu redor. Elisabeth, cansada após um dia de trabalho no campo e ainda sem conseguir preparar a refeição, parou ao vê-lo, o coração acelerado. A falta de comida não era apenas uma questão de nutrição; era um gatilho para a raiva dele, e ela sabia disso. "Por que não está a comida pronta, mulher?" Johann gritou, sua voz rouca reverberando nas paredes. "De novo você me decepcionou!" Catarine, que brincava com uma boneca de pano no canto da sala, ergueu os olhos, sentindo a mudança no ar. O sorriso que iluminava seu rosto infantil se desfez, substituÃdo pelo medo. As palavras do pai a cortavam como lâminas. Ela mal entendia a gravidade da situação, mas o tom de voz dele e o jeito como seu corpo se movia a deixavam petrificada. Johann parecia um gigante, e o olhar que lançou a Elisabeth a fez sentir um frio na barriga, como se a casa estivesse se encolhendo ao seu redor.
"Você é um fardo, uma desgraça!", Johann vociferou, dirigindo sua raiva não apenas a Elisabeth, mas também a Catarine, que sentia um desespero crescente. As lágrimas brotaram em seus olhos, enquanto a pequena se encolhia no chão, o corpo tremendo ao ouvir as palavras cruéis. O que era uma casa segura e calorosa agora se transformava em um lugar de terror, e o medo permeava cada canto. Elisabeth, em um impulso protetor, correu em direção a Catarine. Seus instintos de mãe a guiaram em meio ao caos, e ela se posicionou entre o marido e a filha. "Johann, não! Não a machuque!" Ela implorou, a voz trêmula, mas decidida. Seus olhos eram um misto de amor e pavor. "Ela é só uma criança!" A expressão de Johann estava distorcida pela raiva, e a presença de Elisabeth não fazia diferença em seu estado de embriaguez. Ele levantou a mão, pronto para acertar. "Ela é um fardo para nós! Deixe-me em paz!"
Catarine, com o coração acelerado, via sua mãe posicionada na sua frente, uma barreira de amor e proteção, mas também de vulnerabilidade. Os gritos ressoavam, e o ar parecia ficar mais denso. O medo a envolvia como uma coberta fria, e, enquanto observava o rosto de sua mãe se contorcer em preocupação, o desespero crescia dentro dela. O que era uma brincadeira inocente agora se tornava um pesadelo, e a linha entre segurança e violência era tênue, quase invisÃvel. "Por favor, Johann, não!" Elisabeth exclamou, seu olhar se fixando no marido, tentando apaziguar a tempestade que havia se instalado na casa. "Ela não merece isso! Ninguém merece!" O espaço entre eles era carregado de tensão, enquanto Catarine se encolhia ainda mais, procurando um lugar seguro no mundo que se desmoronava ao seu redor. Ela não entendia tudo, mas sentia que algo terrÃvel estava prestes a acontecer.
A batalha entre amor e raiva, entre proteção e agressão, estava prestes a explodir, e a pequena menina, com seus olhos de mel, tornava-se espectadora de uma cena que nunca deveria ter presenciado. A noite que deveria ter sido tranquila se transformava em um pesadelo, e a inocência de Catarine começava a desvanecer sob a sombra do medo. Elisabeth se colocou entre Johann e Catarine, seu coração batendo acelerado enquanto tentava manter a calma em meio ao caos. O olhar de Johann, repleto de frustração e raiva, se fixou na esposa, como se ela fosse a responsável por tudo o que o incomodava. Ele avançou um passo, e Elisabeth sentiu um frio na barriga. "Ela é só uma criança, Johann! Olhe para ela!" ela implorou, sua voz tremulando. "Ela não tem culpa do que estamos passando."
Mas Johann não queria ouvir. O álcool havia nublado seu juÃzo, e a raiva o tornava surdo à s súplicas da mulher. Ele passou a mão pelo cabelo, tentando conter a fúria que o consumia. "Eu não quero mais ouvir você me protegendo, Elisabeth! Não preciso de você me dizendo o que fazer!" Catarine observava, petrificada. Ela não compreendia completamente o que estava acontecendo, mas sentia a tensão no ar. O corpo da mãe, embora frágil, era uma fortaleza em sua mente, uma proteção que a deixava um pouco mais tranquila. Mas o medo a dominava, e as lágrimas escorriam pelo seu rosto, enquanto ela soluçava em silêncio. A mente de Elisabeth estava em frenesi, buscando desesperadamente uma maneira de acalmar Johann antes que ele fosse longe demais. Ela sabia que precisava ser firme, mas também compreensiva. "Johann, lembre-se do que está em jogo aqui. Não podemos deixar que isso destrua nossa famÃlia! Pense na Catarine. Ela precisa de você." As palavras dela pareciam ter algum efeito, embora momentaneamente. Johann hesitou, a raiva começando a dar lugar à confusão. Mas, em vez de recuar, ele voltou-se para a filha, os olhos cheios de frustração. "Ela não é mais que um peso, uma responsabilidade que não pedi! Se você não tivesse ficado grávida, nossa vida poderia ser diferente!"
O eco do desespero na voz dele cortou o coração de Elisabeth. Ela deu um passo à frente, desafiando a fúria do marido. "E se eu não tivesse feito isso? TerÃamos algo? Não! Essa criança é a única luz que temos agora! Olhe para ela, Johann! Olhe!" Johann parou, a fúria na face dando lugar a um conflito interno. Ele olhou para Catarine, que agora se escondia atrás da mãe, com os olhos grandes e assustados. O choque na expressão de sua filha parecia finalmente quebrar a barreira de raiva que o envolvia. Mas, em um movimento instintivo, ele deu um passo para o lado, como se estivesse prestes a explodir novamente. "Você é uma desgraça, Catarine! O que você trouxe para nós?" Johann gritou, sua voz ecoando pela pequena casa. O desespero na voz dele reverberava pelas paredes, misturado ao medo que se apossava de Catarine. "Não, Johann! Não faça isso!" Elisabeth gritou, sua voz agora uma súplica. Ela se lançou para frente, segurando firmemente a mão da filha e a puxando para mais perto. "Catarine, venha aqui!" O corpo de Elisabeth estava tenso, um escudo protetor entre o marido e a filha. O silêncio parecia eterno, o ar carregado de tensão, enquanto Johann parava e, pela primeira vez, via o que sua raiva havia feito.
Nesse momento de fraqueza, Elisabeth aproveitou para falar com mais firmeza, como se cada palavra fosse uma flecha certeira. "Se você não pode ser o pai que ela merece, então não seja um monstro! A escolha é sua, Johann! Você pode mudar, pode ser melhor do que isso!" A expressão dele começou a mudar, a confusão se transformando em culpa, e a raiva, em dor. Ele fechou os olhos por um instante, como se estivesse lutando contra uma tempestade interna. A imagem de sua filha assustada, com os olhos de mel brilhando de medo, finalmente penetrava a névoa que o cercava. Com um gemido de dor, Johann se afastou, passando as mãos pelo rosto, como se quisesse esfregar a realidade de volta. "Desculpe... eu... não sei o que estou fazendo." As palavras saÃram roucas, quase um sussurro, enquanto ele se virava, incapaz de olhar para a filha ou para a esposa. Elisabeth, embora ainda tremendo, aproveitou o momento. Ela puxou Catarine para mais perto, envolvendo-a em seus braços. "Está tudo bem, meu amor. Estou aqui com você." O calor do abraço lhe dava alguma segurança, mas a sombra da violência ainda pairava no ar. "Por favor, Johann, se você se importar com nós, busque ajuda. Você precisa lutar contra isso," Elisabeth disse, a voz suave, mas firme. "Nós podemos superar isso juntos, mas precisamos de você."
Com a cabeça baixa, Johann se afastou ainda mais, um homem em conflito. Ele sabia que havia cruzado uma linha, e a imagem de sua filha, tão pequena e vulnerável, o assombraria por muito tempo. As lágrimas brotavam nos olhos de Catarine, e o coração de Elisabeth batia forte, tentando manter a esperança acesa mesmo quando tudo parecia desmoronar. A noite continuava, e, embora o terror tivesse se dissipado, as cicatrizes deixadas por aquele momento não seriam facilmente esquecidas. Na pequena casa de Greifswald, o amor e a dor coexistiam, em um delicado equilÃbrio que exigia coragem e força de todos os envolvidos. E, enquanto o céu escurecia, as sombras das inseguranças e desafios do cotidiano ainda dançavam ao redor deles, esperando para ser enfrentadas no dia seguinte. Com três anos, Catarine era uma criança curiosa, com olhos de mel brilhando de entusiasmo ao explorar o mundo ao seu redor. Elisabeth, sua mãe, reconhecia a necessidade de ensinar a filha sobre a vida e o trabalho desde muito cedo, especialmente em uma época em que a sobrevivência dependia de cada membro da famÃlia.
Em um pequeno pedaço de terra nos fundos da casa, Elisabeth se ajoelhava no solo árido, preparando a terra para o plantio. O cheiro da terra fresca e o calor do sol eram um bálsamo para sua alma. Catarine a observava atentamente, fascinada. "Mãe, o que você está fazendo?" perguntou a menina, inclinando a cabeça para o lado. "Estou preparando o solo, minha querida," Elisabeth respondeu, sorrindo. "As plantas precisam de um lugar bom para crescer. Vamos plantar algumas sementes de cenoura e batata. Se cuidarmos delas, em breve teremos alimento." Catarine se ajoelhou ao lado da mãe, imitando seus movimentos desajeitados. "Posso ajudar?" Ela pegou algumas sementes que estavam em um pequeno saquinho de pano. Elisabeth assentiu, o coração aquecido pela determinação da filha. "Claro! Mas lembre-se, temos que cuidar delas com amor. A terra e as plantas são como nós. Elas precisam de atenção e carinho para crescer." Enquanto trabalhavam, Elisabeth aproveitou para ensinar mais do que apenas agricultura. As lições eram profundas, entrelaçadas com histórias sobre a vida e a importância da famÃlia.
"Você sabe, Catarine," começou Elisabeth, parando para olhar nos olhos da filha, "mesmo quando as coisas ficam difÃceis, devemos respeitar seu pai. Às vezes, ele pode ser um pouco duro, mas ele nos ama. Ele só precisa de um pouco de paciência." As palavras da mãe traziam um peso diferente. Apesar dos hematomas visÃveis em seu braço e do olhar cansado, Elisabeth falava com uma reverência quase automática sobre Johann. A submissão da mulher era uma caracterÃstica comum naquelas épocas, um reflexo de uma sociedade que ainda valorizava a obediência da esposa. Elisabeth tinha aprendido a se manter fiel ao marido, mesmo quando a dor da violência doméstica se tornava uma parte dolorosa de sua realidade. "Mãe," perguntou Catarine, franzindo a testa, "por que ele fica tão bravo? Ele não pode ser feliz como nós?" Elisabeth hesitou, sentindo um nó na garganta. "Às vezes, as pessoas ficam tristes e não sabem como mostrar isso. Seu pai teve um dia difÃcil, mas nós devemos sempre tentar entender, mesmo quando não é fácil." Ela falava com amor, mas também com resignação, como se estivesse tentando justificar o injustificável.
A pequena Catarine, com sua inocência, não entendia completamente o peso daquelas palavras. Ela queria acreditar que o pai poderia mudar, que as coisas poderiam melhorar. Enquanto plantavam as sementes, Elisabeth segurava a mão da filha, os dedos delicados envolvendo os de Catarine, como um laço de proteção em meio à confusão. "Vamos falar sobre as flores," Elisabeth desviou, tentando iluminar a conversa. "Você sabia que as flores também precisam de sol e água? Assim como nós. Precisamos cuidar uns dos outros, não apenas das plantas." Catarine sorriu, aliviada por poder se afastar dos pensamentos pesados. "As flores são bonitas! Vamos plantar flores também?" Elisabeth sorriu, o semblante suavizando ao pensar na possibilidade de um futuro mais leve. "Sim, vamos! Podemos plantar margaridas. Elas sempre fazem o dia parecer mais alegre." Enquanto as duas trabalhavam, Catarine continuava a perguntar sobre tudo. A mãe respondeu com paciência, usando cada oportunidade para ensinar valores que esperava que a filha carregasse consigo ao longo da vida. Mesmo em meio à submissão e à dor, Elisabeth desejava criar um espaço seguro e amoroso, onde o respeito e a empatia pudessem florescer. O trabalho duro na terra se tornava um sÃmbolo de esperança para Elisabeth. Ela acreditava que, mesmo que as dificuldades a cercassem, poderia cultivar algo belo, não apenas nas plantas, mas também no coração da filha. Com o passar do tempo, enquanto o sol se punha no horizonte, mãe e filha se uniam em um vÃnculo de amor e determinação, um testemunho da resiliência que florescia mesmo nas circunstâncias mais desafiadoras.
Catarine tinha apenas quatro anos, mas a vida em casa já lhe ensinara muito sobre o medo e a dor. Naquela noite, deitada em sua cama, o coração acelerado e os olhos marejados, ela ouviu mais uma discussão entre seus pais, uma cena que se tornara comum em sua pequena existência. Os gritos ecoavam pelas paredes de madeira, uma sinfonia triste que parecia não ter fim. "Você é uma vadia inútil!" Johann gritou, sua voz repleta de desprezo. "Uma mulher não serve para nada além de gerar filhos. Eu queria um homem! Um filho que eu pudesse ensinar a forjar, que pudesse trabalhar comigo na oficina!" Catarine se encolheu sob as cobertas, as lágrimas escorrendo por seu rosto. Ela tampou os ouvidos com as mãos pequenas, tentando se proteger dos ecos cruéis que invadiam seu pequeno mundo. Aquelas palavras eram veneno, e ela sentia o peso da dor da rejeição em seu coração.
Elisabeth, apesar do medo que invadia seu ser, tentou defender a filha. "Johann, você não pode falar assim com ela! Catarine é uma garota inteligente, ela pode aprender qualquer coisa! Você deve dar uma chance a ela." O riso de Johann era seco e amargo. "Uma mulher? Aprender a forjar? Não me faz rir," ele respondeu, sua voz impregnada de desprezo. "O que uma mulher poderia saber sobre o trabalho de um ferreiro? Ela só é uma criança que não serve para nada!"
Catarine, em sua cama, sentia a dor da humilhação. A defesa da mãe não era suficiente para abafar as palavras venenosas do pai. Ele sempre a menosprezava, a fazendo se sentir como um fardo, uma decepção. O desespero crescia dentro dela, como um punhado de espinhos, enquanto ela se perguntava por que não poderia ser digna do amor e respeito que tanto desejava. "Johann, por favor," Elisabeth insistiu, sua voz agora mais firme, mas também cheia de uma tristeza palpável. "Ela é uma criança. Não pode ser culpada por não ser o que você esperava."
Mas, naquela noite, a defesa de Elisabeth não parecia ter efeito. A tensão estava carregada no ar, e Catarine sabia que a situação estava prestes a se agravar. "Cale a boca!" Johann gritou, e o som do tapa ecoou pela casa como um trovão. O coração de Catarine parou por um instante, o medo a engolindo. As lágrimas escorriam pelo rosto da menina, e a dor que sentia não era apenas por sua mãe, mas também pela impossibilidade de ser aceita. A pequena se encolheu ainda mais sob as cobertas, seu corpo tremendo. O som do tapa parecia reverberar em seu peito, e ela soube que aquela noite não seria diferente. "Eu vou ensinar a sua filha a forjar," Johann disse, a raiva em sua voz misturada com desprezo. "Mas se ela cometer um erro, ela vai apanhar igual você." As palavras ressoavam como um eco gelado na mente de Catarine. O que era um sonho se transformava em um pesadelo. A ideia de aprender com o pai, de ser ensinada, agora se tornava uma ameaça. Ela não queria ser como a mãe, que sofria em silêncio, e a ideia de que sua própria vida poderia se tornar um campo de batalha a aterrorizava. Enquanto os gritos continuavam, Catarine se perdeu em um turbilhão de emoções, seus pequenos punhos apertados contra os ouvidos, desejando que tudo aquilo acabasse. A dor da impotência e o desejo de ser vista, de ser amada como merecia, tomavam conta dela.
Naquela noite, enquanto as sombras dançavam nas paredes, a pequena menina chorava baixinho, as lágrimas caindo como a chuva que muitas vezes varria Greifswald. O mundo que a cercava estava cheio de dor e desilusão, e, com cada palavra cruel de seu pai, ela sentia que sua luz estava se apagando lentamente. A inocência da infância estava sendo roubada, e ela não sabia como lutar contra essa escuridão que se aproximava cada vez mais. Na manhã seguinte, o sol mal havia surgido no horizonte quando Johann chamou Catarine para acompanhá-lo até a forja. O dia estava fresco, mas um ar pesado pairava sobre a casa, um pressentimento que a menina não conseguia afastar. Com o coração acelerado, ela se levantou da cama, as lembranças da noite anterior ainda ecoando em sua mente. Sua mãe, com olheiras profundas, a observou partir, mas não disse nada; havia um desespero silencioso em seu olhar, uma resignação que Catarine ainda não compreendia totalmente. Ao chegarem à forja, o cheiro de metal quente e o barulho dos martelos ecoando nas paredes de pedra a cercaram. Johann começou a lhe mostrar os materiais: ferros, minérios, e a diferença entre os metais. Ele explicava com precisão, e Catarine, com seus olhos cor de mel, ouvia atentamente cada palavra, temendo que um deslize pudesse desencadear a fúria dele.
“Você precisa entender a importância do que fazemos aqui,†Johann disse, com um tom de voz que misturava orgulho e desprezo. “Um ferreiro não é apenas um homem que bate em metal; ele molda o destino das pessoas. Cada espada, cada ferramenta que criamos, tem um propósito. E se você quer ser um ferreiro, precisa aprender tudo isso.†Catarine balançou a cabeça, absorvendo a informação como uma esponja. Ele começou dando-lhe tarefas pequenas, como separar os minérios e limpar as ferramentas. Cada movimento dela era observado atentamente, e a pressão de agradar o pai a deixava nervosa. A forja logo ficou coberta de carvão, e a pequena garota se via frequentemente emaranhada na sujeira, suas mãos pequenas se tornando pretas enquanto ela trabalhava.
“Não é tão difÃcil, sua vadia inútil!†Johann frequentemente disparava, sua frustração transparecendo em cada palavra. Se um pequeno erro fosse cometido, como deixar uma ferramenta fora do lugar ou não separar corretamente os minérios, a represália era rápida e brutal. Catarine tentava se esforçar ao máximo, mas mesmo a menor falha a fazia sentir que o chão estava se abrindo sob seus pés. O medo de ser batida transformava-se em um peso constante em seu peito, e ela se esforçava para evitar qualquer deslize. Após longas horas, Johann começou a ensiná-la a fazer espadas, um passo mais avançado em seu aprendizado. Ele mostrava como moldar o metal quente, a maneira certa de martelar, a importância de cada golpe. Mas a menina, com seus olhos arregalados, estava tão concentrada que as chamas dançantes da forja pareciam refletir a intensidade do seu medo. “Você precisa ser forte, Catarine! Se não for, nunca será uma boa ferreira,†ele a advertia. A cada batida do martelo, ela sentia que seu destino estava sendo moldado junto ao metal. “Se você errar, se não fizer como eu digo, você será punida,†Johann continuava, sua voz profunda e autoritária, e a menina assentia, o coração apertado. Ela não queria desapontá-lo, não queria mais do que nada ver a desaprovação em seu olhar. Mas, com cada tarefa, a pressão aumentava.
Nas tardes quentes, o suor escorria pela testa de Catarine enquanto ela tentava se manter à altura das expectativas do pai. As mãos pequenas, cobertas de carvão, se tornavam um sÃmbolo de seu esforço, mas também de sua dor. Cada batida errada, cada erro na forja, levava à lembrança de que qualquer deslize poderia custar-lhe mais do que apenas uma reprimenda. Mesmo assim, no fundo de seu ser, a pequena garota ainda nutria um desejo de se provar digna, de mostrar que poderia ser mais do que o que seu pai pensava dela. Em meio ao caos da forja, com o calor do fogo e o cheiro de metal se entrelaçando com sua determinação, Catarine lutava para encontrar seu lugar, mesmo quando o mundo ao seu redor parecia ruir sob o peso de sua luta e medo. Na volta para casa, após um dia exaustivo na forja, Johann e Catarine sempre faziam uma parada obrigatória na igreja local. O edifÃcio de pedra, com sua torre alta e janelas de vitrais coloridos, era um lugar sagrado em meio à vida caótica da vila. O cheiro de cera de vela e incenso envolvia o ambiente, criando uma atmosfera de reverência. Catarine observava com olhos curiosos enquanto seu pai se dirigia ao altar, onde uma pequena caixa de madeira aguardava as ofertas.
Com um gesto respeitoso, Johann colocou algumas moedas na caixa e, em seguida, se virou para o padre, que o aguardava com uma expressão grave. Catarine permaneceu em silêncio, os braços cruzados, sabendo que era melhor não intervir enquanto os adultos conversavam. Ela aprendeu desde cedo a manter a boca fechada, a observar e ouvir. "Johann," começou o padre, sua voz baixa e grave, "precisamos conversar." O tom de urgência na voz do sacerdote fez com que o coração de Catarine disparasse. "A situação na vila está se tornando crÃtica. Precisamos que você faça mais armas." Johann franziu a testa, surpreso. "O que quer dizer com ‘mais armas’? Não há necessidade disso. O que está acontecendo?" Ele olhou ao redor, como se esperasse que mais alguém se juntasse à conversa. O padre hesitou por um momento, olhando em volta como se estivesse avaliando se alguém mais pudesse ouvir. "Lobos," ele respondeu finalmente, a palavra saindo com um peso que pareceu preencher a igreja. "A frequência dos ataques está aumentando." Catarine se encolheu um pouco, o medo começando a se infiltrar em sua mente. Ela lembrava das histórias que os adultos sussurravam, aquelas sobre lobisomens que vagavam pela floresta, atacando ovelhas e, à s vezes, até mesmo pessoas. O padre continuou, sua voz baixa e intensa. "Não é apenas uma história antiga, Johann. Os ataques estão se tornando mais frequentes, e as pessoas estão começando a temer sair à noite. Precisamos nos preparar. As armas são essenciais para proteger a vila."
Johann pareceu ponderar, o olhar concentrado. "Mas armas para quem? Para quê? Estamos a salvo aqui." Ele tentava manter a calma, mas a preocupação estava visÃvel em seu rosto. "Estamos longe de estar seguros," disse o padre, sua expressão ficando mais dura. "Esses lobos não são comuns. Eles estão agindo com uma ferocidade que não vÃamos há anos. Precisamos de espadas, lanças, tudo o que puder nos proteger." Catarine, escutando tudo, sentiu um calafrio percorrer sua espinha. As palavras do padre reverberavam em sua mente, formando uma tempestade de incerteza e medo. A igreja, que sempre fora um lugar de paz para ela, agora parecia um santuário em meio a um crescente caos. "Eu farei o que for preciso," respondeu Johann, a determinação em sua voz um pouco vacilante. "Mas… o que você sugere que eu faça?" "O que você sabe fazer melhor," disse o padre, firme. "Moldar o metal, criar armas. As pessoas precisam de você. Eu precisarei de você." Catarine, com o coração apertado, olhava para seu pai. A responsabilidade dele parecia pesar sobre seus ombros, e a ideia de que a segurança da vila poderia depender de seu trabalho a deixava angustiada. Quando a conversa terminou e eles começaram a caminhar para fora da igreja, o silêncio se tornou opressivo.
A tensão no ar era palpável, e a pequena menina sentia que algo estava mudando. As histórias sobre lobisomens deixavam o vilarejo em um estado de alerta, e agora, mais do que nunca, ela sabia que precisava permanecer forte e atenta. Enquanto passavam pelas portas da igreja, o som das preces ecoava em seus ouvidos, mas o medo do desconhecido ainda a acompanhava, como uma sombra persistente na escuridão. Com cinco anos de idade, Catarine já era uma presença constante na forja. Seus pequenos braços, ainda frágeis, se esforçavam para segurar ferramentas que, para ela, pareciam pesadas demais, mas a determinação em seus olhos cor de mel era evidente. A cada dia, ela ajudava o pai mais intensamente, limpando as ferramentas, recolhendo os minérios e observando cada movimento dele com uma concentração feroz. Johann não demonstrava afeto ou orgulho. Para ele, Catarine não era mais que uma aprendiz, alguém que ele poderia usar para aliviar a carga do trabalho. Nas últimas semanas, os pedidos por armas haviam aumentado de forma alarmante. Espadas, lanças e, principalmente, facas de prata. O material era escasso, mas Johann fazia o possÃvel para atender à crescente demanda. As noites de lua cheia haviam se tornado eventos de horror na pequena cidade de Greifswald, na Pomerânia. Cada mês que passava trazia consigo mais vÃtimas, e as histórias sobre lobisomens deixavam de ser apenas lendas contadas ao redor da lareira.
Os rumores cresciam. Pelas ruas de pedra, nos becos mal iluminados, as pessoas sussurravam entre si, sempre com medo de que ouvidos indesejados pudessem escutar. “Os lobos estão ficando mais ousados,†diziam alguns. “Já não atacam apenas o gado. Agora vêm por nossas mulheres e crianças.†As palavras causavam arrepios nos moradores. As vÃtimas mais comuns eram sempre as mais indefesas: mães, filhas, meninos que mal haviam crescido. E, inevitavelmente, a lua cheia se tornava um sÃmbolo de desespero.
Catarine ouvia os murmúrios com um nó na garganta. Toda vez que a lua cheia se aproximava, o medo na cidade se tornava palpável. Os homens se armavam, as mulheres e crianças se trancavam em suas casas, mas ainda assim, a cada mês, o número de mortos aumentava. Uma noite, enquanto trabalhava com o pai, o som de sinos distantes ecoou pela vila, o sinal de que mais um ataque havia ocorrido. Johann ergueu os olhos brevemente, sem interromper seu trabalho. “A lua está cheia,†ele murmurou, mais para si mesmo do que para Catarine. “Hoje será uma noite longa.†A menina, já acostumada ao terror que a lua cheia trazia, permaneceu em silêncio, segurando firme uma faca de prata que seu pai acabara de forjar. Sentia o peso dela em suas mãos pequenas, ciente de que, naquele mundo, a sobrevivência dependia de força e de armas. Mais tarde naquela noite, o padre da igreja local veio até a forja, sua expressão sombria refletindo a gravidade da situação. “Johann, estamos perdendo a batalha,†disse ele, a voz carregada de pesar. “A cada lua cheia, mais inocentes morrem. Precisamos de mais armas. Os lobos... eles estão nos cercando.â€
Johann, que há tempos deixara de acreditar em contos de fadas, parecia cada vez mais desconfiado das histórias que se espalhavam pela vila. “Lobos? Isso parece coisa de gente supersticiosa,†ele respondeu, mas havia um tom de incerteza em sua voz. Ele sabia que os ataques eram reais, os corpos mutilados não mentiam. O padre suspirou, o rosto envelhecido iluminado pelas chamas da forja. “Não são lobos comuns, Johann. Algo os controla. Algo maligno.â€
Enquanto os dois homens conversavam, Catarine permanecia atenta, absorvendo cada palavra. Sua mente jovem estava cheia de medo e confusão, mas também de uma estranha fascinação pelos mistérios que cercavam os ataques. As mulheres da vila falavam sobre maldições antigas, sobre criaturas que caminhavam entre os vivos e a luz da lua cheia. E agora, mais do que nunca, ela sentia o peso de viver em um lugar onde o perigo se escondia nas sombras. Nas noites seguintes, quando a lua cheia brilhava no céu, os uivos dos lobos ecoavam pela cidade como um aviso sinistro. As portas se fechavam com pressa, e até os mais valentes evitavam as ruas. Johann trabalhava sem descanso, e Catarine, mesmo exausta, permanecia ao seu lado, forjando, moldando e afiando as armas de prata que, nas palavras do padre, eram a única salvação da vila. Mas enquanto o medo crescia entre os moradores, uma pergunta rondava a mente de Catarine: E se as armas não fossem o suficiente?