O celular despertou à s 7:00h. Anthony não se lembrava desse toque irritante – normalmente, o celular despertava com uma música agradável e uma voz feminina bem reconfortante dizendo trivialidades, como a temperatura lá fora e as principais notÃcias do dia. Vai ver que é por isso que Anthony sempre ficava um pouco mais na cama, aproveitando o aconchego. Vai ver que é por isso que ele sempre chegava atrasado ao escritório. Vai ver que é por isso que ele deve ter trocado o toque para esse maldito apito pulsante, embora não se lembrasse de tê-lo feito.
Era segunda-feira. Depois de ter tocado quase a noite inteira com os Time Enemies, Anthony precisou de mais de um café para conseguir despertar. Enfiou a cabeça embaixo do chuveiro frio, deixou que a água lavasse os pensamentos de “baixista-de-banda-em-decadência†e trouxesse de volta à sua mente o “programador-de-Inteligência-Artificialâ€, que era quem, afinal, pagava as contas. Deu uma olhada na barba espessa; tirou um ou outro fio mais rebelde. Penteou os cabelos castanhos e lisos, deixados crescer à altura dos ombros. Olhou-se no espelho: apesar das poucas horas de sono, não aparentava cansaço.
O corpo magro, dos seus trinta e poucos anos, recebeu a cobertura de um terno risca-de-giz italiano, com gravata azul. E o terno recebeu a cobertura de uma colônia francesa. Estava pronto. Tentou repassar os principais pontos a serem discutidos na reunião de logo mais, onde fecharia um bom contrato – o maior contrato da história, como eles estavam tratando – com a IncCorp, uma gigante americana.
Anthony, o programador, havia desenvolvido, juntamente com seu amigo Bryan, – que, coincidentemente, era o guitarrista dos Enemies – um novo sistema de reprodução holográfica capaz de recriar, à vista de todos, um modelo em 3D de qualquer pessoa pré-programada. Você apertava um botão no seu pointer do apresentador de slides e a figura histórica, artista ou qualquer outro avatar saÃa da tela, – literalmente – sentava-se na cadeira mais próxima e conversava numa boa com as pessoas reais da sala.
Anthony não sabia exatamente como tudo isso acontecia; essa era a parte de Bryan, que era astrofÃsico e, bem, era o gênio da dupla. A parte de Anthony era criar os simuladores de voz e de interação humana – copiando o modo de falar do personagem, seus trejeitos e expressões, quais os gestos e palavras que o personagem diria, baseando-se nas perguntas e ações das pessoas presentes. Até por não conhecer a fundo os conceitos técnicos, Anthony não era muito bom em fazer essas apresentações – e era por isso que, para a apresentação daquele dia, ele havia escolhido John F. Kennedy para fazer por ele.
Chegou para a reunião com um pouco de atraso. O trânsito em São Paulo era insuportável de manhã. Subiu as escadarias da entrada do edifÃcio de dois em dois degraus. Era um prédio de escritórios de onze andares, dos quais a sua empresa, a MyRobot, ocupava metade, entre escritórios, salas de reuniões, grandes laboratórios e oficinas – a arquitetura moderna de metal aparente e paredes de vidro chamava a atenção mesmo de quem o via de longe. O edifÃcio fora construÃdo em um dos maiores pontos comerciais da capital paulista. A princÃpio, os andares restantes deveriam abrigar grandes estúdios de produção de áudio e vÃdeo, outras empresas de robótica e mais algumas salas comercias, mas este ainda era um projeto em standbye para a MyRobot – a construção dos hologramas acabou tomando todo o tempo das equipes e dos seus idealizadores.
Ao passar pela recepção na entrada do prédio, foi recebido por uma moça de uns vinte e cinco anos, mais ou menos, terninho branco, cabelos loiros na altura do pescoço:
– Hi! I’m Samantha Black, the Dr. Hartmann’s secretary. He’s already waiting for you in the main hall, and asked me to put myself at your disposal for whatever it takes. Where will the meeting be held?[1]
Samantha falava em um inglês bastante simpático, com um sorriso encantador no rosto. Anthony, por sua vez, achava que, já que estavam no Brasil, seria muito mais simpático se ele tivesse sido recebido por alguém que falasse português – Ele havia morado e estudado no Reino Unido por vários anos, e dominava o inglês sem nenhum problema, mas... my country, my rules.
– Humm... Eighth floor... on the right… Thank you… – disse, com a voz ainda embargada de sono.
– You’re welcome. I’m going down to the conference room to sort some things out... See you there. Until later![2]
O Dr. Walter Hartmann, representante da IncCorp no Brasil, o aguardava no saguão principal, e o recebeu com um abraço e um sorriso largo, assim que o viu entrar no hall:
– Anthony! Que prazer em vê-lo! Estamos esperando esta reunião há um bom tempo! Finalmente chegou o grande dia, eu quase nem dormi direito, de tão ansioso para a apresentação!
Anthony deduziu que, pela cara de sono do Dr. Hartmann, isso pudesse ser verdade... ou que o representante da IncCorp apenas devia ter dormido demais e perdido a hora, como ele. O Dr. Hartmann olhou para os lados, Ã procura de alguma coisa:
– Onde está Samantha? Ela disse que estaria com o meu notebook...
– Ela já foi até a sala de reuniões, disse que precisava preparar algumas coisas... e acho que estava com o seu notebook.
– Ah, sim, é claro! – o Dr. Hartmann suspirou – ela precisa montar a “nossa parte†da reunião: arrumar as câmeras que vão transmitir tudo para os investidores da IncCorp nos Estados Unidos... aliás, foram eles quem a mandaram para cá. Que garota espetacular!...
E o Dr. Hartmann percebeu que, por um instante, talvez tivesse ficado empolgado demais com a beleza da moça, então complementou:
– Bem, ela é uma graça... mas não me sinto confortável em ter alguém sempre observando tudo o que fazemos... você me entende...
– Eu... imagino. – foi tudo o que Anthony conseguiu articular.
O Dr. Hartmann percebeu a mudança na voz de Anthony, e disse, para mudar de assunto – ou voltar ao que importava:
– Espero que não tenha problema para vocês, filmar a reunião e transmiti-la para os tubarões...
– Ah, não, não... não há problema algum; quer dizer, não do ponto de vista técnico nem nada... Eu só fico um pouco... inseguro... de que talvez eles não gostem muito do que vão ver... – a cabeça de Anthony, imediatamente, tentou vislumbrar como seria a reação dos americanos quando vissem o seu Presidente sentado, sorrindo, falando em português sobre... bem, agora Anthony pensava que havia sido uma péssima ideia ter enfiado o JFK na brincadeira – mas agora era tarde.
– Ah, não se preocupe! – disse o Dr. Hartmann, como se conseguisse ler os pensamentos de Anthony – tenho certeza de que eles vão adorar, assim como nós. Já vi alguns vÃdeos no Youtube, mas assim, pessoalmente... deve ser uma sensação única. Vamos para a reunião? Ou falta mais alguém?
“Falta o maldito do Bryan, mas ele me deixou sozinho nessaâ€, pensou Anthony. Ele não era muito afeito a ser o centro das atenções. Na banda, era o baixista – ficava lá atrás, perto de Samuel, o baterista, que chamava atenção suficiente para que Anthony nem fosse visto. Além disso, normalmente ninguém tirava os olhos do vocalista, Fausto Henrique, nem de Bryan, que era quase tão bom como guitarrista quanto era como fÃsico. Mas, na hora das apresentações, Anthony se transformava, criava um personagem, falava com desenvoltura e humor. Resolvia os problemas, respondia à s perguntas, arrancava risadas e fazia as vendas. E, depois, voltava para a cabine telefônica, tirava a fantasia e voltava a ser o programador nerd.

A apresentação estava caminhando bem, chegando próxima do seu grand-finalle.
– ... E esta nova tecnologia vem para substituir tudo o que vocês conhecem sobre Inteligência Artificial, Machine Learning e qualquer outro modelo de simulação. Esqueçam Chat-bots, emuladores de fala, criadores automáticos de conteúdo. Elevamos tudo isso a um outro nÃvel, onde você pode realmente interagir com seus Ãdolos – e Anthony deu o comando no pointer, quando a tela apresentava uma fotografia de John F. Kennedy sentado em uma cadeira no Salão Oval.
Como num passe de mágica, o sujeito da fotografia se levantou da cadeira, saiu da tela, e, como se fosse um humano real (bem, talvez um humano um pouco pixelado e cheio de luzes saindo de dentro de si), foi sentar-se na cadeira ao lado da mesa de apresentação.
– Ufa! Ainda bem que você me tirou daquela tela, Anthony! – disse um JFK sorridente e brilhante – e em português nativo – Aquela cadeira não era tão confortável quanto esta.
Ouviram-se interjeições e exclamações de espanto na penumbra da sala, ouviram-se “oh!s†e “ah!s†e sussurros de incredulidade. Anthony já estava acostumado com isso. Era sempre assim, seja quando fazia as apresentações para grandes empresas, seja quando traziam o Jimi Hendrix para o palco, nos shows dos Time Enemies.
– Eu sei, eu sei... Vocês estão espantados com tanta tecnologia – ou seria apenas pela minha beleza? – e JFK deu aquele sorrisão de Presidente que todos conheciam – mas quero dizer que consigo interagir com qualquer um de vocês, em tempo real, como se eu ainda estivesse aqui neste mundo. E tudo graças ao Anthony e ao Bryan... a propósito, onde está o Bryan?
Uma das coisas que Anthony mais tinha orgulho de ter programado era essa ação baseada no ambiente. O simulador percebia tudo à sua volta e conseguia, com naturalidade, direcionar a conversa para coisas que não seriam previsÃveis de antemão, como o fato de Bryan não estar na sala no momento. Tudo ainda precisava de alguns ajustes, mas, na maioria das vezes, funcionava perfeitamente bem.
– Bryan teve um pequeno contratempo, e não pode estar aqui conosco, Senhor Presidente... – disse Anthony, com um sorriso. Qual o melhor pronome de tratamento para um holograma?
– Oh, que pena... gosto daquele sujeito. Bem, estou disposto a interagir com qualquer um de vocês, em tempo real. Posso fazer tudo o que qualquer um de vocês acreditarem ser possÃvel – e, em seguida, fez uma pequena pausa, dando um sorriso malicioso para Samantha – ou quase tudo, senhorita Monroe...
“É, definitivamente precisa de uns ajustesâ€, pensou Anthony imediatamente. Já estava pensando em como se desculpar, quando viu o sorriso estampado no rosto da garota. Certamente, ela não havia entendido nada do que o holograma havia lhe falado, apesar de estar acompanhando a apresentação também pelo notebook, onde a transmissão para os Estados Unidos contava com um sistema de legendas automático. Se entendeu, não ligou para o gracejo, ou então estava impressionada demais por ver seu ex-presidente ali, na sua frente, falando em uma lÃngua que ela não entendia. O Dr. Hartmann, entretanto, estava entusiasmado:
– É impressionante!... Eu nunca poderia imaginar que parecesse tão real! Quer dizer, é óbvio que há uma luz fantasmagórica nele, e, bem... é um cara que morreu há mais de 70 anos, mas mesmo assim... E ele interage com a gente como se realmente pensasse no que vê e ouve, e reagisse... Meu Deus!
– Na verdade – continuou Kennedy – eu realmente faço isso. Tenho uma programação que me permite avaliar os movimentos, as ações e as palavras de vocês todos, e criar em tempo real a melhor reação para cada situação. Podemos dizer que eu penso por mim mesmo, embora eu sempre tenha que tomar cuidado com o que diga e faça, senão o nosso amigo Anthony pode me desprogramar... – e outra risadinha elegante e sedutora. Depois dessa, o contrato estava ganho.
O Dr. Hartmann, então, continuou:
– Como vocês sabem, a ideia da IncCorp é criar um ambiente de aprendizagem virtual, com grandes personalidades ensinando os alunos em tempo real, em diversas Universidades dos Estados Unidos e, posteriormente, do mundo. Não sabÃamos que a apresentação seria com o Presidente; na verdade, esperávamos o Stevie Jobs... – deu um sorriso envergonhado, e depois prosseguiu – Nós trouxemos um pequeno texto para que fosse lido, mas acredito que ler ainda está acima da capacidade do holograma...
De fato, ainda não era possÃvel fazer o holograma “ler†da maneira tradicional, embora fosse muito simples inserir o texto no sistema para que ele reproduzisse. Mas JFK teve outra ideia:
– Vocês podem reproduzir o texto através de um leitor de voz, como o Google mesmo. Assim que eu o escutar, poderei reproduzi-lo na lÃngua que vocês quiserem. É claro, não posso repetir qualquer coisa: fui programado com base em questões éticas, e há coisas que não é de bom tom serem ditas por um presidente morto... – outra risadinha. O público adorou, como sempre, mas Anthony fez uma anotação mental: “Não permitir que esses avatares idiotas fiquem o tempo todo com tiradinhas sarcásticasâ€.
O Dr. Hartmann virou-se para Samantha e disse, em inglês, para que colasse o texto no tradutor do Google. Em poucos instantes, o texto foi ouvido por toda a sala, na voz monofônica utilizada pelo site:
O holograma do Presidente ouviu, simulando atenção com o queixo pousado sobre a mão. Depois de alguns segundos, quando parecia pensar na frase, certificando-se de que não haveria nada constrangedor ou impublicável (na verdade, era apenas uma “pausa dramática†pré-programada, porque o sistema já havia considerado tudo isso em frações de segundo), ouviu-se da voz de John Kennedy, num inglês perfeito, com todas as nuances e trejeitos do seu sotaque de Massachusetts:
“Our appliances are state-of-the-art, he will be well taken care of. We cannot know how long he will need our assistance, but rest assured, because we will always have someone to accompany him.â€
O que se seguiu foi um silêncio pesado, quase constrangedor. Demorou alguns segundos até que o Dr. Hartmann, olhando pela tela do notebook, pôde perceber os olhares dos magnatas americanos, do outro lado da América.
– Impressive... Play it again, Sam.
A moça tornou a reproduzir o áudio gravado. Ao fim deste, houve um pequeno burburinho entre o pessoal da sala e os chefões online. Foi quando Anthony percebeu seu celular vibrando. Era uma mensagem de Bryan:
Não era comum que Anthony mexesse no celular durante reuniões, mas a mensagem o deixou preocupado.
“Aconteceu alguma coisa? Estou com os americanos.â€
“Esqueça os americanos. Preciso que venha até a minha casa assim que eles forem embora.â€
“Ainda preciso ter certeza de que eles aceitarão o nosso contrato. Tem cláusulas que acho que podem prolongar a discussão.â€
“Eles já aceitaram. Vem logo. Pode deixar o resto para eles responderem depois de amanhã, e diga que todas as cláusulas são inegociáveis.â€
Quando Anthony levantou a cabeça, encontrou o olhar atento do Dr. Hartmann, que aguardava para continuar a conversa. Um pouco constrangido, Anthony tentou se desculpar, mas nem foi preciso.
– O que vocês têm aqui é realmente inovador, Anthony. Uma coisa é ver um vÃdeo do Youtube, outra coisa é poder presenciar in loco essa maravilha da tecnologia. Os acionistas não veem a hora de poder desfrutar do que eu e Samantha pudemos ver aqui, ao vivo – levantou-se e esticou a mão para um cumprimento – Eu quase poderia cumprimentar o Presidente, mas acho que não chegamos nesse nÃvel... ainda. Sei que, com gênios como você e seu amigo, isso será questão de tempo. Samantha irá redigir o contrato conforme suas orientações, e assim que for possÃvel, vamos nos reunir novamente para assiná-lo.
Anthony apertou novamente o botão do pointer. A reunião estava encerrada. John Kennedy deu um leve aceno de mão, disse “Bye!â€, e se apagou, sumindo das vistas de todos.
– Gostaria de convidá-los para um almoço no restaurante do primeiro andar, mas, infelizmente, surgiu um imprevisto de última hora – disse Anthony, arrumando e desligando todas as coisas – Mas aconselho que comam a costela suÃna ao molho de barbecue deles, vocês não irão se arrepender.
– Samantha é vegana, então não vai aceitar a sua sugestão. Mas eu vou comer, com muito prazer! – respondeu o Dr. Hartmann – E, a propósito, o show de ontem foi espetacular. Vocês estão cada vez melhores.
– Não acredito! O senhor estava lá?
– Claro! Samantha havia chegado mais cedo dos Estados Unidos, então quis que ela visse uma avant-premiére da sua genialidade. Ela ficou encantada!... Estávamos conversando após o show, e nem eu, nem ela, conseguimos entender por que vocês não estão mais em turnês internacionais, por que não vivem mais da música... a banda é ótima, as músicas são simplesmente... originais! E ainda tem a presença do Jimi Hendrix!
O que o Dr. Hartmann não sabia – ou talvez soubesse, mas preferiu não considerar na conversa – é que o trabalho de Inteligência Artificial que eles haviam criado tinha potencial de ganhos muito, mas muito superiores a qualquer Rockband. A banda, que havia tido sucesso nos seus tempos de glória e que ainda gozava de atenção da mÃdia, acabava servindo de chamariz, de propaganda para o que realmente dava dinheiro: os sistemas como o que acabavam de ver. Os Time Enemies tinham um estilo que combinava harmonias que pareciam barrocas e clássicas, com elementos extremamente atuais, à s vezes andróginos, criando uma massa sonora atemporal – daà o nome “Inimigos do Tempo†– um trocadilho que só fazia sentido em português, mas que o mundo todo (ou, pelo menos, seus milhões de fãs) compreendia perfeitamente. Eram especialmente famosos por suas músicas que pareciam ter saÃdo das partituras de Mozart, mas com uma pegada Hard Rock e uma sonoridade bastante moderna, até futurista.
É claro, este estilo revolucionário ganhou admiração e crÃticas. Alguns blogs e perfis do Youtube e Instagram eram ácidos: “Tentam fingir conhecimento musical, se camuflando numa carcaça erudita, mas não há nada de erudito ali. Mozart e Bach jamais teriam composto melodias tão sem-graça.†Disse um professor de música de um Conservatório renomado. Outros eram ainda mais radicais: “Inimigos do Tempo: uma banda que mal sabe fazer pop básico, mas que se acha capaz de inserir elementos clássicos. Seriam eles os Inimigos da Música?â€. Mas as maiores crÃticas vinham do fato de que todas as músicas passavam por Inteligência Artificial. “Quem faz a música? O Computador? Onde está a arte? Onde está a sensibilidade? É evidente que um código de software jamais conseguirá entender toda a genialidade de Beethoven ou Haendel; o que fazem é reduzir o seu legado a simples lixo comercialâ€, disse, certa vez, um blogueiro famoso.
Apesar disso, o público adorava, seja por conta da qualidade da música, ou da originalidade, ou do vanguardismo... ou só pela presença de um músico famoso, já morto, mas participando do show através dos hologramas. Quem via uma vez, queria ver mais e mais. E foi assim que, no seu auge, a banda esteve presente nas paradas de sucesso britânicas, fazendo shows em estádios e casas de shows lotadas, até que o negócio de tecnologia se sobrepôs ao sonho juvenil de “ser uma estrelaâ€. Bryan e Anthony foram ficando velhos, cansados de noites em claro e farras, e cada vez mais interessados nos hologramas que haviam concebido... e a banda, embora nunca tivesse parado de fato, foi aos poucos fechando menos shows, mais selecionados, e saindo um pouco dos holofotes.

“Onde você está?â€, era a nova mensagem de Bryan.
“No trânsito. Calma.â€
“Trânsito?? Por que não deixou seu carro no estacionamento do prédio e veio de metrô?â€
Não. Metrô não. Tudo, menos metrô. Anthony não sabia explicar o porquê dessa repulsa, nem mesmo se lembrava de quando começou a ter este asco, mas definitivamente andar de metrô não era uma alternativa. Havia uma estação na esquina do prédio da MyRobot, e, na mesma linha de metrô, outra estação em frente à casa de Bryan, a quatro paradas de distância. Em menos de quinze minutos, o transporte público o deixaria lá – mas, não, não havia a menor possibilidade.
Bryan devia ter criado outra composição original, que Anthony passaria para os softwares responsáveis por dar a roupagem nova. Era assim que funcionava a dupla: o AstrofÃsico criava as melodias; o programador criava a arte-final. Os outros dois caras da banda, Samuel e Fausto Henrique, faziam o teatro necessário para manter o público vidrado.
Estacionou o carro em frente ao portão da casa. Bryan, como todo gênio excêntrico que Anthony conhecia (na verdade, ele só conhecia um), morava sozinho, em uma casa antiga e avarandada em um bairro nobre da capital paulista, e recebia propostas mensais para vende-la para alguma grande Incorporadora. Bryan tinha indicado, pelo Whatts, que o portão estava destrancado e que Anthony podia entrar direto até o fundo da casa, depois do quintal, onde ficava o estúdio de ensaios.
Entrou pelo portão. Passou ao lado da casa, entre a varanda lateral e a piscina. Através da trilha de seixos brancos, cruzou o extenso jardim de plantas ornamentais que Bryan gostava de cultivar. Passou pelo patamar de concreto, onde havia sido instalado o telescópio que Bryan usava para observar as estrelas. Chegou até o alpendre dos fundos, que dava entrada ao estúdio. Encontrou Bryan sentado em uma poltrona, do lado de fora, dedilhando um violão velho. Bryan tinha a mesma idade de Anthony; cabelos negros e encaracolados, nariz aquilino, pequenos olhos negros e rosto sempre impecavelmente barbeado. Apesar disso, parecia cansado. Tinha olheiras de quem já não dormia bem há alguns dias. Aquela aparência não podia ter sido fruto da noite anterior, porque passar noites em claro já era uma rotina à qual estavam acostumados – e Bryan nunca dormia durante as noites: mesmo quando não tinham shows, o amigo ficava observando o céu através das lentes do seu telescópio.
– Sentiram a sua falta na reunião.
– Mentira. Eles me odeiam.
– Para com isso. O Dr. Hartmann disse que foi ver a gente tocar esta noite. Até o John Kennedy perguntou de você.
– John Kennedy perdeu metade do cérebro num atentado. É por isso que ele ainda dá ouvidos para o que eu digo.
Anthony sentiu um calafrio passar por todo o seu corpo. Não era uma boa maneira de se referir a uma figura histórica do nÃvel de JFK – mesmo que aquele JFK fosse um holograma e não tivesse nem mesmo “meio cérebroâ€.
Esta frase veio à mente de Anthony quase que imediatamente. Mas achou melhor não fazer a citação. O amigo era, afinal, um acadêmico, e certamente lhe responderia com mais umas duzentas citações “de igual intensidade e em sentido contrárioâ€. Nunca era uma boa ideia discutir com Bryan sobre assuntos de ciência. Decidiu ir logo ao motivo da visita:
– Enfim, por que é que você me tirou do almoço com o Dr. Hartmann e sua adorável – e gata – secretária? O que há de tão importante pra ser dito?
Bryan encarou o amigo, como se estivesse avaliando se devia ou não falar. Por fim, disse:
– Pra ser sincero, o mais importante era tirar você da presença deles. A Senhorita Samantha não é “uma gata†à toa. E não é nem um pouco adorável.
– Por que você diz isso?
– Eu sei o que eu estou dizendo. Confia em mim. Pega uns amendoins ali na mesa pra gente?
Anthony não entendeu a desconfiança do amigo. Foi buscar o amendoim e voltou com duas latinhas de cerveja, que encontrou no refrigerador da cozinha. “Todo grande gênio é excêntrico, e fÃsicos não são exatamente as pessoas mais comuns do Universo, mas hoje Bryan está estranho-além-do-limiteâ€, pensou Anthony.
– Eles vão assinar a papelada, e isso é o que importa. Os papeis já foram analisados pelos advogados da MyRobot, e não vou assinar nada que não seja exatamente igual ao que eles deram aval. Nosso contato com eles deverá se resumir a isso. Saiba que eles não querem apenas “usar†nossa tecnologia, eles querem “se apropriar†dela. E para fins nem um pouco heroicos. – Bryan tornou a dizer, dando continuidade à conversa.
– Como você sabe disso? Você tinha que ver como ficaram entusiasmados na reunião de hoje. Eles vão fazer tudo o que a gente quiser – seremos conhecidos mundialmente!
– Digamos que eu apenas sei. Ainda não posso te contar tudo, mas uma hora você vai entender. Você é sempre o único que me entende. Esses amendoins estão ótimos! Coma!
– Não, obrigado. Preciso almoçar alguma coisa de verdade. Se eu ficar beliscando essas porcarias, acabo não comendo comida de verdade. Aliás, você também deveria...
– Eu sei, eu sei. Não se esqueça, a garota é perigosa. Os caras vão vir aqui esta tarde?
“Os caras†eram Samuel e Fausto Henrique. Todos os dias após os shows, eles se reuniam para repassar as músicas, os erros cometidos, analisar o que podia ser melhorado e arrumar músicas novas. Era quase um ritual, era a hora em que eles se lembravam de que, no fundo, ainda eram os mesmos amigos de colegial, fazendo música, jogando conversa fora e querendo mudar o mundo. Anthony respondeu:
– Acho que sim. Pelo menos, nenhum deles disse nada sobre... AAAAAAAAIIIIIII!!!!
Foi interrompido por uma dor lancinante. Uma abelha lhe havia picado o braço. Ele ainda pôde ver o inseto se debatendo, o ferrão incrustrado na sua pele. Deu um tapa e puxou o ferrão pra fora – outra dor atravessou seu corpo.
– O que foi? – quis saber Bryan.
– Uma abelha me picou!!! Esse seu quintal vive cheio desses bichos, aranhas, abelhas... Já passou da hora de fazer uma limpeza geral por aqui!!!
– Esses bichos são importantÃssimos para a fauna e para o equilÃbrio ecológico, meu caro – retrucou Bryan. – O que achei estranho é por que ela resolveu picar você. Abelhas normalmente não atacam assim.
– Você é astrofÃsico, não é zoólogo, botânico ou coisa que o valha. Deixe essa preservação da natureza para alguma ONG e acabe com esses bichos pestilentos da sua casa!
Bryan pareceu nem dar ouvidos. Tinha o olhar distante, pensativo, como se o que estivesse por dizer fosse muito mais importante do que abelhas, ensaios ou meios-cérebros:
– Anthony, me diga uma coisa: Você acredita em viagens no tempo?...
[1] Olá! Eu sou Samantha Black, secretária do Dr. Hartmann. Ele já o aguarda no saguão principal, e me pediu para que eu me colocasse à sua disposição, para o que for preciso. Onde será realizada a reunião?
[2] Por nada. Vou até a sala de reuniões para ajeitar algumas coisas... Vejo vocês lá. Até mais!