Sete da manhã. De novo. Anthony não havia conseguido dormir praticamente nada. Pegou o celular e ligou para a secretária da MyRobot:
– Oi, Angela, aqui é o Anthony. Tem alguma coisa pra mim hoje de manhã?
– Bom dia, Dr. Anthony. A secretária do Dr. Hartmann já ligou duas vezes.
Samantha.
– Olha, se ela voltar a ligar, diga que só vou estar disponÃvel na parte da tarde. Tive uma noite péssima, vou tentar dar uma descansada antes de ir pra aÃ.
– Tudo bem, eu deixo anotado. O Dr. Bryan vai vir?
– Pelo que ele me disse, não.
– Ok, então a gente segue aqui no automático.
O “automático†era a situação em que nem Anthony, nem Bryan, estavam na empresa para resolver os problemas. E isso acontecia de forma assustadoramente frequente, por causa dos shows, viagens e eventos da banda. Quando era possÃvel, Anthony deixava de ir a alguma entrevista e ficava na MyRobot – afinal, todos queriam ouvir Bryan e Fausto, mesmo. Eram os únicos que alguém reconhecia nas ruas. Quando desligou a ligação, percebeu mais oito ligações perdidas. E mais duas mensagens.
“Anthony, por favor... me atende... é muito importante.â€.
“Anthony, estou indo para a MyRobot. Vou ficar lá te esperando. Por favor, não demora. Beijos.â€
Oito ligações? A pegadinha estava indo longe demais. É claro, toda aquela história estava indo longe demais. Mas, opa! Beijos???
Colocou para despertar de novo às 11:30h. Deixou o celular sobre a cama, e caiu em um novo sono, mais profundo.

“Há uma garota... comprando uma escada para o céu
Quando ela chega lá, ela sabe... Com uma palavra ela pode conseguir o que ela veio buscar...â€
Samantha... O que você quer de mim?
“Há um sinal na parede, mas ela quer ter certeza
Porque, você sabe, à s vezes as palavras têm dois significadosâ€
O que tudo isso quer dizer? O que está por trás disso tudo?
“Às vezes, todos os nossos pensamentos são equivocadosâ€
“Ooh, it makes me wonderâ€
Isso me faz pensar... pensar...
Uma escada para o céu? Não, não...
Led Zeppelin ainda tocava na Jukebox da cabeça de Anthony quando ele finalmente acordou, com aquela estranha sensação que se tem quando se sonha estar caindo... mas, no caso de Anthony, os pesadelos vinham subindo as escadas. Essa era uma das razões pelas quais nunca haviam tocado Led Zeppelin, nem quando ainda eram uma banda de garagem desconhecida. Essa devia ser a principal razão para nunca andar de metrô. De onde vinha esse pânico, essa sÃndrome? Não sabia.
Outro banho frio. Outro curativo no braço. Outra hora-e-meia no trânsito.
Mal entrou pelo saguão principal do prédio, Angela veio em sua direção:
– Dr. Anthony, aquela moça americana está aguardando o senhor na sala de reuniões de ontem. Eu disse que aguardasse no saguão, mas, embora meu inglês seja ótimo, ela simulou não estar entendendo nada e continuou em direção à sala... e ameaçou um escândalo quando eu chamei os seguranças... Sinto muito!...
– Relaxa, Angela. Não tem nada pra ela mexer lá.
– Tem sim. A sala foi fechada ontem após a reunião, mas as coisas ainda estão todas lá. Ela estava transtornada e repetia que precisava falar com o senhor com urgência.
– Ok. Ela não tentaria roubar nem quebrar nada. Fique tranquila. Eu vou lá ver o que ela quer.
Samantha estava sentada, chorando, com um copo d’água na mão. O maquinário do holograma, da apresentação e dos notebooks, ainda estavam lá. Ela o viu entrar e se levantou depressa, cruzando a sala em sua direção. Será que tinha uma faca escondida nas costas?
– Samantha, vamos até minha sala, a gente pode convers...
Não conseguiu terminar. Os lábios de Samantha já estavam colados aos dele, o corpo perfeito dela empurrando o corpo dele contra a porta. Por um instante, o ar lhe faltou aos pulmões, sentiu-se quase nas nuvens, como se estivesse beijando os céus. O coração disparou como um bumbo duplo da bateria de Samuel. E, quando o ar estava prestes a ir embora de vez, um arrepio de dor brotou do seu braço – a picada de abelha estava latejando novamente. Então, uma frase de Samantha o trouxe volta:
Ela o soltou e se virou, procurando novamente a cadeira para se sentar, em meio a lágrimas:
– Eu não sei mais o que eu estou fazendo... Jogando minha carreira fora? Acho que estou louca.
“Uau! Pois continue assim, bem louquinha!â€, pensou Anthony. Mas o que disse foi só:
– Espera! Desde quando você fala português?
– Desde os quinze anos. Só que o Hartmann não sabe. E deve continuar sem saber, ok?
Caramba! Ela entendia tudo! Obviamente não era brasileira, tinha um sotaque caracterÃstico, mas falava português melhor do que muita gente!
– Calma, menina... Você pode começar me explicando de onde saiu esse português quase perfeito. Depois, me dê outro beijo igual a esse. E depois, se eu ainda não tiver perdido a cabeça, me explica que história é essa de jogar a carreira fora.
Samantha colocou a mão no peito enquanto arfava. Procurava respirar como se o ar da sala fosse o último sopro de ar do planeta. Depois de alguns instantes, como se estivesse voltando a si, disse, casualmente, como se fosse a coisa mais óbvia do mundo:
– O meu português... ah... claro... Não, eu não sou brasileira. Vim dos Estados Unidos, mas sou formada em Bachelor of Arts in Portuguese, o curso de LÃngua, Cultura e Literatura da Universidade da Califórnia. A matriz americana da IncCorp me mandou como secretária do Dr. Hartmann, para que eu ficasse de ouvidos bem atentos a tudo o que eles dissessem. Quando a pessoa acha que não pode ser compreendida, é normal deixar escapar uma ou outra informação valiosa... Bem, essa estratégia é utilizada em quase todos os grandes negócios, e nem sei como o idiota do Hartmann não percebeu isso. Tenho que fazer o papel de “gringa que não entende nada do que ele falaâ€, para que ele se sinta confiante em continuar falando. E isso é fácil porque... bem, ele fala demais.
Pegou mais um copo da água que estava sobre a mesa, e continuou:
– A intenção da IncCorp é usar seus hologramas para treinamento acadêmico; essa parte é verdade. Mas o treinamento acadêmico será feito em escolas militares, treinando soldados para combate, usando hiper-realismo para praticar pelotões. A ideia é que, tendo acesso à tecnologia que vocês desenvolveram, será fácil transformar os avatares em soldados “reaisâ€, ou, pelo menos, algo que os inimigos vejam como tal. E ontem à noite eu ouvi o Dr. Hartmann dizer umas coisas que pretendem incluir no contrato... e precisava falar com você... Eles querem não só os hologramas, mas querem a sua empresa...
Ela olhou para Anthony, agarrou a sua mão entre as dela e disse, com paixão e lágrimas nos olhos:
– ...E eu não quero isso, porque só comecei a estudar português por sua causa... Você é meu Ãdolo desde que eu vi os Time Enemies pela primeira vez, ainda na Inglaterra... Eu ia nos shows que vocês faziam. Eu sou apaixonada por você há muito tempo, Anthony, e não quero que eles...
Parou de repente, como se estivesse falando demais. Anthony ainda tentava juntar os pontos, a sua mão bem segura em meio às mãos dela. Em que momento ele deixou de ser “o baixista que fica no fundo†para virar um sex symbol? E ser o crunch de uma garota dez ou quinze anos mais nova, que teria qualquer homem aos seus pés? Que sentido tinha tudo isso?
– Você não pode estar falando sério.
– Você acha que esse beijo não foi sério? – disse Samantha, se levantando e abraçando Anthony novamente – eu posso te dar outro se você achar que este não foi o suficiente. Aliás, posso te dar quantos beijos você quiser...
Outro beijo de tirar o fôlego. Ela parecia estar aproveitando cada momento – ele, com certeza, estava. Depois, falou:
– Só não posso ser vista a sós com você, senão minha participação na negociação vai por água abaixo. O Dr. Hartmann não pode nem sonhar que estive aqui hoje. Por isso te mandei mensagens de outro número também. Fique de olho naquele número, não salve meu contato nele. Eles querem que vocês não só vendam os hologramas e façam o projeto, mas também que vendam a tecnologia que vai embutida, e passei a noite toda pensando em alguma forma de não incluir isso no contrato. Precisamos encontrar uma solução boa para todos.
– Samantha... eu não sei o que... preciso pensar nisso tudo – Anthony estava perplexo; de repente, sua vida virou de cabeça para baixo – Preciso de um tempo pra pensar nessa história toda.
– Eu sei, eu sei... – disse Samantha, com um sorriso malicioso, enquanto passava o braço por trás das costas de Anthony – Mas, enquanto você pensa, deixa eu me aproveitar mais um pouquinho do meu Ãdolo, vai...

– A equipe de desenvolvedores reportou uma falha operacional de um dos nossos hologramas, que deveria estar apresentando um programa para a TV do Congresso – disse Angela, no fim da tarde, assim que Anthony saiu da sua sala – O senhor resolve, ou repasso para o Senhor Bryan?
– Deixa que eu falo com ele. Mais alguém me procurou?
– O Dr. Hartmann ligou e queria saber se o senhor estava. Eu disse que não, conforme o protocolo. Ele me pediu para informá-lo que seu celular foi roubado, que eu anotasse o novo número. Eu lhe mandei o novo contato, já está salvo na conta corporativa do seu celular. Ele disse que estaria indisponÃvel pelos próximos dois dias, mas que aguardava a sua apreciação do contrato que foi mandado via e-mail. E um tal de Doutor William Jacobs entrou em contato e disse que a consulta está marcada. – Angela esperou que Anthony dissesse algo sobre isso, mas, como ele não disse nada, ela também não perguntou.
– Ok. Estou saindo. Preciso resolver alguns problemas, mas vou falar com Bryan depois. A gente vê o resto das coisas de lá da casa dele. Obrigado!
Ao sair, Anthony procurou no GPS o endereço que precisava ir:
“Doutor William Jacobs. Neurocirurgião e Psiquiatra. Rua dos Cravelhos, 995 – consultório 2â€.
O consultório era em um casarão quatrocentista, que ocupava um quarteirão inteiro de uma rua arborizada e cheia de mansões igualmente centenárias da capital paulista. O cara era um dos mais renomados psiquiatras do Brasil, e não tinha sido fácil – nem barato – conseguir uma hora com ele, assim, tão rapidamente. Mas Anthony precisava fazer alguma coisa por seu amigo, e precisava de uma orientação.
– Boa tarde, Doutor. Agradeço por ter me atendido tão prontamente.
– Sente-se, meu jovem – disse o Dr. William, apontando para uma poltrona confortável. Sua sala era gigantesca, ricamente decorada com itens de colecionador e móveis antigos, tapeçaria fina e obras de arte meticulosamente posicionadas. Havia duas paredes de estantes, repletas de livros do chão ao teto, e uma das paredes opostas era toda de portas de vidro, que davam para um maravilhoso jardim. O Doutor era um senhor de idade, bigodes brancos, óculos finos e pulôver xadrez, praticamente um lorde da Rainha – Você me disse no telefone que o paciente é seu amigo, não? E cadê ele?...
– Este é o problema, doutor. Ele ainda não sabe que entrei em contato com o senhor. Como eu disse no telefone, ele está criando histórias muito irreais, sobre viagens no tempo, teorias da conspiração e, inclusive, já citou algo sobre morrer... Ele é um fÃsico brilhante, mas estou com medo de que esteja perdendo a razão...
– O que você me contou ao telefone se parece muito com um surto psicótico, provavelmente por conta de excesso de stress. Você me disse que estão prestes a fechar um contrato muito valioso, não é?...
– Sim, sim, mas, segundo o meu amigo, a assinatura ou não desse contrato ditará o futuro das nossas vidas, e talvez, da humanidade... Ele teme perder a tecnologia que criamos.
– Isso é bastante comum; para ele, se desfazer de uma empresa ou ser engolido por uma gigante internacional pode ser comparado a perder parte da vida. O que precisamos fazer é conseguir, neste primeiro momento, que ele volte a exercer suas funções na empresa, que saia um pouco de casa. Você disse que ele não tem ido mais ao escritório... Essa volta ao convÃvio com os outros é importante para ele neste momento. Mas enquanto ele não estiver efetivamente se colocando em risco, acredito que não seja o caso de internação nem nada disso.
O Doutor William levantou os braços, como a se esquivar de um problema:
– Eu também não posso tratá-lo se ele se negar a isso, a não ser que ele seja declarado incapaz, o que não é o caso... Vamos combinar uma coisa: assim que você conseguir convencê-lo a voltar aos negócios, me avise, eu vou fazer uma visita a ele no escritório. Mas se ele não voltar ao trabalho em uma semana, nós tentaremos contato direto com ele.
Conversaram por mais ou menos uma hora. Anthony agradeceu pela atenção, pelas instruções e orientações, e deixou a sala com a garantia do Doutor William de que tudo correria bem.
Durante o percurso para a casa de Bryan, Anthony pensava nas coisas que estavam acontecendo na sua vida. De onde saiu aquela mulher linda, misteriosa e... louca por ele? Por ele? E contando segredos de uma empresa gigantesca, apenas por “estar apaixonada pelo Ãdolo de Rockâ€? Não fazia sentido. Entre um sinal fechado e uma parada no engarrafamento, abriu os e-mails no smartphone, e pediu para a assistente de voz ler o contrato nos alto-falantes do carro.
“... aquisição de toda a tecnologia embarcada nos equipamentos...â€
“... a IncCorp se torna proprietária do código-fonte...â€
“... contratação dos envolvidos por trinta e seis meses, a tÃtulo de transferência de conhecimentos técnicos...â€
“... Doze bilhões e seiscentos milhões de dólares pela aquisição da propriedade intelectual da tecnologia...â€
Não, isso não ia ser assinado. Era mais ou menos o que Samantha havia indicado: eles queriam comprar a empresa e não apenas um projeto de implantação. Então ela falava a verdade... pelo menos, nessa questão.
Assim que chegou na casa de Bryan, falou sobre o problema na TV do Congresso.
– Eu já sei, já resolvi daqui de casa.
– Como você sabia que tinha dado problema?
– A Angela me mandou uma mensagem. Disse que tinha falado com você, mas que o problema era emergencial e você ia demorar muito pra chegar até aqui, cruzando a cidade na sua lata-velha. – brincou Bryan.
“Pra que é que eu sirvo nessa empresa, então?â€, pensou Anthony antes de partir para o assunto mais importante:
– Mas aposto que você não sabe da última. Leu o contrato que eles nos mandaram?
– Li sim, – disse Bryan – e já estou redigindo um retorno nem-um-pouco-elegante para eles.
– Sabe quem me contou sobre o interesse deles em comprar a nossa tecnologia? Samantha. E tem mais, ela me disse exatamente o que você tinha descoberto: que os propósitos deles são militares. – Anthony achou melhor omitir, por enquanto, toda a parte do beijo e do “I-love-you-em-portuguêsâ€.
– Sei, sei... – disse Bryan, pensativo. – Eles fizeram esta proposta claramente para que nós a rejeitássemos. Mesmo sendo uma quantia absurda de dinheiro, eles sabem que não vai ter acordo nesses termos. Então, ela pode estar só fazendo jogo duplo, tentando ganhar a sua confiança (e seu coraçãozinho mole) para convencer a gente a aceitar um meio-termo, que é o que eles já querem desde o princÃpio. Ou...
Bryan olhava para o chão e coçava o queixo.
– Ou?... – disse Anthony, depois de alguns angustiantes segundos de espera.
– Ou eles conseguiram “ouvir†nossa conversa de ontem, porque tudo o que ela disse soou como uma “resposta†ao que a gente estava falando. E, se for isso, então é sinal de que eles dominam (ou dominarão) a mesma Teoria das viagens no tempo que estamos desenvolvendo. E, se for isso, então quer dizer que eles em algum momento se apropriam de fato da nossa Teoria. E, se for isso, então não temos muito tempo.
Viagem no tempo. Viagem no tempo. Por que é que Anthony começava a ver essa maluquice toda como uma coisa natural?
– Espera um pouco aqui. Preciso me trocar e arrumar umas coisas na sala. Nós vamos no meu laboratório, mas não vamos no seu carro. – disse Bryan, por fim.
Enquanto Bryan se trocava, diversas coisas passavam pela cabeça de Anthony. E se Bryan estivesse certo? Se todo aquele charme de Samantha fosse um golpe baixo, para persuadi-lo a aceitar os termos do contrato? Mas de que adiantaria, se ainda assim, precisariam da aprovação de Bryan? E até onde ela estaria disposta a ir para conseguir persuadi-lo? E como alguém tão gata, inteligente, sexy e simpática ainda consegue beijar tão bem? Algum defeito ela tinha que ter...
– Vamos, dorminhoco! – Bryan disse, estalando os dedos em frente ao rosto de Anthony, como que para acordá-lo do transe em que estava. – Vem, por aqui.
– Mas por aà vamos dar no corredor do quarto de...
– Só vem... – disse Bryan.
Entraram no quarto de hóspedes, – que, na verdade, era um quarto de entulho – e Anthony pode perceber uma porta na parede contrária à janela, que vivia fechada. Essa porta saÃa em um corredor estreito, e, no final dele, chegaram até outra porta, com fechadura de impressão digital. Bryan disse:
– É melhor aproveitarmos e gravarmos a sua credencial. Coloque o dedinho aqui, por favor... isso...
Após configurar a fechadura, a porta se abriu. Dava para o estacionamento do prédio de escritórios que ficava ao lado da casa de Bryan. Lá, Bryan entrou em um Volkswagen que Anthony nunca tinha visto.
– Que diabos é isto?
– Eu fiz um acordo com o dono deste prédio. – disse Bryan, correndo – Ele me deixou construir essa passagem “secreta†e usar esta vaga de garagem do prédio dele, e ainda me deu uma credencial para entrar e sair do prédio – pela saÃda da rua de trás. Em troca, eu assinei um contrato de venda da minha casa para ele. Daqui a dois anos, a casa é dele, e ele vai demolir tudo mesmo, a casa e a passagem secreta.
– E onde você vai morar, depois disso? – indagou Anthony.
– Relaxa. – disse Bryan – Somos milionários, eu posso morar em qualquer lugar do mundo. Além do mais, pra onde eu vou não precisa de casa. Agora eu tenho um carro que ninguém sabe que é meu, saio pela garagem de um prédio que não é meu, pela rua de trás. Meu carro fica na garagem de casa, e há um holograma meu assistindo à TV na minha sala – e se divertindo. Se alguém estiver me vigiando, vai continuar vigiando.
Ao sair para a rua, Bryan pegou um caminho diferente do que deveria pegar para ir até o prédio da empresa, onde ficava o seu laboratório. Enquanto dirigia, falava:
– O processo de viagem no tempo, no estágio em que me encontro hoje, consiste em modular frequências e pulsações. Como fazemos para deixar uma música mais lenta?
– Colocamos uma pulsação menor no metrônomo. – disse Anthony, quase mecanicamente.
– Isso. – disse Bryan – O conceito de viagem no tempo segue o mesmo padrão. Primeiro, eu sincronizo uma frequência de onda com os batimentos cardÃacos do seu coração, digamos, 90 batidas por minuto, ou bpm. Tudo bem até aqui?
– Sim, estou acompanhando. – disse Anthony.
– Então, – continuou Bryan – com a tecnologia que eu desenvolvi, se eu ajustar o metrônomo para 75 bpm, seu coração irá acompanhar essa frequência. E você vai voltar ao passado. No entanto, se eu aumentar para 105 bpm, seu coração acelera e você viaja para o futuro. Deu pra entender?
– É pra entender? Você quer me convencer de que isso funciona?
– Não preciso te convencer de nada, bobalhão. – disse Bryan – Eu pretendia nunca meter você nessa, mas... lamento, não vai ter outro jeito. Você vai fazer um test-drive e comprovar por si mesmo.
– Eu não vou fazer nada! – disse Anthony, aos gritos. Aquela paranoia já estava passando dos limites – Você não vai mexer nos meus batimentos cardÃacos, seu louco!
– Tom, eu queria muito poder fazer isso da forma mais suave e paulatina possÃvel... – disse Bryan, com calma – mas não vou não, porque nosso tempo é curto. Tudo o que eu posso te dizer é que não dói, a não ser que... bem, é melhor não comentar. Chegamos.
Era um prédio de escritórios comerciais. Bryan entrou com o carro no estacionamento e foi até o terceiro subsolo. Lá, estacionou o carro encostado a um caminhãozinho amarelo e pequeno, com baú de lona, numa vaga ao lado da parede.
– Esse caminhão também é meu. O que eu faço com ele? Nada, ele fica aà só para tampar a visão. A vaga atrás dele vira uma zona de sombra, e nenhuma câmera de segurança consegue ter acesso. – disse Bryan, num sorriso.
Atrás do caminhão tinha outra porta. Mesma fechadura.
– Espero que esteja em forma, porque o caminho agora é meio comprido.
A porta dava para um corredor, assim como aquele que ligava a casa de Bryan ao prédio vizinho. Mas esse corredor era muito, muito comprido.
Chegaram até uma outra porta, que tinha a mesma fechadura que as anteriores.
Quando Bryan abriu, Anthony ficou espantado com o que havia ali: era um laboratório com pelo menos o dobro do tamanho do que tinham na empresa; máquinas hospitalares por todos os cantos, bancadas cheias de frascos e experimentos, mesas repletas de papeis, computadores do chão ao teto. Seguia o mesmo design futurista da empresa: luzes fluorescentes e neón, paredes de metal escovado e vidros translúcidos, cheios de fórmulas, sinais e... poemas, escritos em diversas cores.
– O que é isso? O escritório do Homem-de-Ferro? – Anthony perguntou, perplexo.
– É... – Bryan disse, num sorriso triunfante – É bem por aÃ, mesmo...
– Bryan, você não acha que está indo longe demais com essa história toda? Digo, criar um enredo de filme de suspense para compor... sei lá, pode até ser inspirador, mas isso já está passando dos limites... – na verdade, Anthony já sabia que tinha passado dos limites há muito, muito tempo. – Você não acha que já está na hora de se tratar?
– Anthony... – Bryan disse, pausadamente, com uma tristeza sincera no olhar – Você é a pessoa mais importante que eu tenho na vida... bem... tirando minha mãe, que mora lá no fim-do-mundo, está senil e nem lembra que eu existo. Eu jamais colocaria você em risco. E tudo o que eu menos quero nesse mundo é te deixar com medo ou preocupado comigo.
Colocou a mão no ombro de Anthony e continuou:
– Você imagina o quanto eu tenho tentado salvar as coisas? Você faz ideia de tudo o que eu estou fazendo para que você termine bem?
– Cara, mas pra que fazer isso aqui? Nosso laboratório na empresa é excelente... pra que construir outro desse jeito, escondido no meio da caverna do Batman?
– Na verdade – prosseguiu Bryan – Este aqui veio antes daquele. Este veio antes de praticamente tudo. Foi aqui que eu criei os primeiros protótipos e os primeiros teoremas. Isso aqui está no subsolo, abaixo da subestação de energia que construÃram recentemente – com o dinheiro que eu doei. Eu preciso de muita energia para fazer as coisas funcionarem. Vamos, ali está a aparelhagem que nos permite viajar no tempo... em consciência.
Era uma cadeira que parecia de dentista, um pouco mais larga. Ao lado dela, muitos equipamentos, cabos e fios, computadores, maquinário hospitalar... e alto-falantes, muitos deles, direcionados para onde ficaria a cabeça do... da... bem, da cobaia. Anthony sentiu um calafrio ao ver tudo aquilo. Bryan começou a explicar:
– Eu preciso ligar todos os sensores e medidores em você, e...
– Não, meu camarada... em mim, não... Não mesmo! – protestou Anthony.
– Ah, se você soubesse a sensação que é!... – sorriu Bryan – Acredite, há pessoas no mundo que dariam a vida literalmente para ter essa oportunidade... Vamos fazer o seguinte: eu vou primeiro, você vê como é, e depois você faz sozinho. Só não posso pegar na sua mão...
– Bryan, isso é loucura!... Vamos parar com isso... vamos pra casa, é sério... Vamos procurar ajuda... – disse Anthony, quase à s lágrimas. Era tão difÃcil ver uma pessoa que ele considerava um irmão, alguém da sua famÃlia... assim!...
– Eu sei que você já procurou essa ajuda, meu querido... – respondeu o fÃsico – Eu consigo ver tudo o que aconteceu daqui, indiretamente, é claro... Eu estive lá quando você contou para... deixa pra lá. Eu pude ver você falando as coisas que fizemos, pude ver o que você fez... Agora eu vou sentar-me aqui e aguardar que você termine todas as suas considerações e apelos, e isso vai demorar uns trinta e cinco minutos. Pode começar.
Bryan sentou-se em uma cadeira, esperou calmamente que Anthony parasse de protestar. Cerca de trinta e cinco minutos depois, disse:
– Terminou? Nós dois sabemos que você já se decidiu a testar a viagem. Nós podemos ficar aqui discutindo pelo tempo que você quiser, mas o final dessa conversa é você sentando-se naquela cadeira e experimentando o meu invento. E digamos que eu não tenha todo o tempo do mundo...
O que fazer depois disso? Não era sequer possÃvel dar meia-volta e ir embora, porque Anthony não fazia ideia de onde estava. E, de mais a mais, não iria deixar o amigo ali, sozinho, pronto para se enfiar em uma geringonça cheia de eletrodos e sensores – embora, Anthony desconfiasse, ele já fizera outras vezes. Seus argumentos haviam se esgotado. Era isso, ou chamar a equipe de médicos do Doutor William e interná-lo à força. Em meio a tudo isso, uma frase lhe veio à mente, de forma automática e clara:
Não tinha jeito. Anthony olhou para o amigo e disse, enxugando os olhos:
– Se você me matar com essa coisa, volto pra puxar o seu pé.