“Os Caras†chegaram por volta das três da tarde, ambos com aquela cara inchada de sono, de quem acabou de acordar. Samuel, o baterista, foi visto de longe: era gordinho, de pele extremamente branca, e estava usando um boné vermelho para proteger a cabeça raspada. Fausto Henrique era mais baixo, tinha cabelos longos no meio das costas, sempre soltos e divididos no meio, sobrancelhas grossas e um cavanhaque de banda de Heavy Metal. Já vinham discutindo algumas coisas desde o portão da entrada:
– Você errou a letra da “Hey Jealousy†de novo! É tão difÃcil decorar?
– Ah, vai dizer que você consegue ouvir exatamente tudo o que eu canto de lá de trás, né, Samuel...
– Eu consegui ouvir perfeitamente você dizendo (e Samuel cantarolou, desafinadamente, mas no ritmo): “If I hadn’t blow the whole things days ago[1]â€... Até o Jimi Hendrix ouviu, pode ter certeza! Você sabe a diferença entre days e years?
– 364 dias, 5 horas, 48 minutos e 46 segundos... – disse Bryan, ainda com olhar distante. Todos pararam para olhar pra ele, que, ao perceber a atenção, complementou: – ... aproximadamente.
Após alguns segundos tentando processar a informação, Fausto Henrique respondeu, virando-se para Samuel:
– Ah, claro... Eu sou professor de inglês, mas não sei a diferença... Acho que você devia prestar menos atenção ao meu inglês e mais atenção aos seus tum-tá-tschhhhhhhhhhhhh...
A coisa estava ficando um pouco pesada, então Anthony teve que intervir:
– Calma, gente... Faz tanta diferença ele ter errado isso na música? É uma palavra, essa música tem uma letra enorme, e é o único cover [2]que a gente toca no show... e mesmo assim, toca de vez em quando... Acho normal esquecer uma palavrinha perdida ali no meio...
– Muda o sentido da música – rebateu Samuel. – Quem gosta dessa música vai perceber a diferença.
– E quem gosta da gente vai gostar da mudança. – disse Fausto Henrique, em resposta. – Vou tentar aprender a letra direitinho, ok? Pra você não ficar mais sensibilizado...
– Coma um amendoim – disse Bryan, tentando acabar de vez com a discussão. – Aproveita que estamos aqui fora, lá dentro não pode comer. Aliás, vamos para o estúdio repassar alguma coisa, ou vamos ficar aqui fora mesmo, só conversando? Não tenho todo o tempo do mundo... eu acho...
Arrumaram algumas partes de música que não estavam ficando boas ao vivo. Muitas vezes, as ideias revolucionárias de Bryan e os arranjos da Inteligência Artificial não combinavam como deveriam, e o que ficava muito bom em uma gravação ou mesmo num estúdio pequeno, se tornava inaudÃvel em ambientes maiores, com gente gritando e sons reverberando. Além disso, a interação com os “músicos convidados†(Jimi Hendrix era o mais pedido, mas muitas vezes aparecia um Jim Morrison ou uma Janis Joplin para ajudar nos vocais) sempre precisava de novas funcionalidades, novas formas de agir, para não atrapalhar a banda “de verdadeâ€. Isso porque o software que dava vida a eles era baseado em inúmeros vÃdeos de entrevistas, atuações no palco, além de áudios gravados. E, nessas gravações, normalmente os astros copiados não estavam em situação de coadjuvantes... bem, pra dizer honestamente, nos shows dos Time Enemies também não: eles sempre eram a atração mais aguardada, e havia até apostas entre os fãs pra saber quem iria aparecer da próxima vez.
Depois do ensaio, “os Caras†foram embora. Anthony também já estava de saÃda, quando Bryan o chamou:
– Você fica e me espera. Vou tomar um banho e a gente vai sair pra conversar algumas coisas.
– Tem que ser hoje? Estou exausto, tive uma reunião cansativa, e nem almocei ainda...
– Já são quase sete da noite. Não é mais hora de almoçar. E eu sei que a reunião não foi cansativa – eu sempre participo delas, lembra? Vamos, a gente sai pra comer alguma coisa.
Bryan estava estranho, então Anthony concordou com relutância. Aliás, já fazia algum tempo que o amigo vinha demonstrando um comportamento diferente; expansivo, contemplativo, perdido em pensamentos. Devia estar com algum problema, e, como não tinha famÃlia por perto (a mãe morava no interior, o pai já havia morrido, não tinha irmãos nem filhos), talvez encontrasse em Anthony um confidente.
Eram amigos desde a infância. Eram os nerds da turma da escola; não sabiam jogar bola, não sabiam paquerar as garotas, gostavam apenas de ciência e literatura fantástica. Criaram uma banda de rock na adolescência (que se chamava “Inimigos do Tempoâ€, porque não conseguiam acertar o tempo de nenhuma música), o que os ajudou bastante com essa parte de “socializarâ€, mas ainda assim, eram os feios, bobos e nerds. Fizeram todo o colegial juntos, mas na hora de prestar o vestibular, ambos já tinham muito bem decididas as profissões que iriam querer seguir. Bryan sempre quis ser fÃsico – AstrofÃsico, pra ser mais exato. Foi para a Grã-Bretanha e estudou em uma boa Universidade por lá, à s custas do pai. Anthony foi junto, mas para fazer seu curso de Desenvolvimento de Sistemas, com ênfase em Machine Learning e Inteligência Artificial. A princÃpio, sua ideia era desenvolver jogos – um campo em franca ascensão na época – mas Bryan teve a brilhante ideia de unir seus conhecimentos para desenvolver o embrião da empresa MyRobot – o nome favorito era “iRobotâ€, mas teriam problemas tanto com Stevie Jobs quanto com Isaac Asimov – embora ambos já estivessem mortos. Bryan sempre dizia que a pessoa estar viva ou morta é apenas uma questão de ponto de vista dentro do tempo. Bryan sempre dizia coisas que pareciam completamente incompreensÃveis para Anthony, mas que, de certa forma, soavam verossÃmeis.
E foi quando Bryan teve a ideia de retomarem a banda, a princÃpio como um duo: fariam um pop eletrônico andrógino, mexeriam em sintetizadores, seriam os novos Physical Brothers e usariam o mesmo antigo nome, dessa vez em inglês, mesmo perdendo o trocadilho original. Mas a adoração por guitarras e Hard Rock foi se infiltrando no projeto promissor, e acabaram virando um meio-termo. Começaram a trazer referências dos anos 80, de Tears for Fears a New Order, e transformar as músicas com os novos Sistemas que Anthony estava desenvolvendo, como parte dos seus estudos de Aprendizado de Máquina. Você colocava vários sons em um computador, e o computador “aprendia†a criar sons parecidos.
O trabalho de ambos começou a ficar conhecido na Inglaterra. Foi então que Bryan disse: “Hey, já que estamos voltando até os anos 80, por que não voltarmos mais ainda, até os séculos XVIII e XIX? É mais difÃcil sermos acusados de plágio pelo Beethoven do que pelo Chris Loweâ€. E foi então que Bryan começou a estudar mais a fundo o estilo musical daquela época, e compor coisas realmente bonitas para que o computador pudesse aprender. Mas, com a morte do pai de Bryan, o que parecia uma carreira promissora foi interrompida. Bryan foi irredutÃvel em voltar para o Brasil. Já estavam formados e mestrados. Era hora de voltar à s origens.
Uma “dupla de um†não funciona; então, Anthony percebeu que não teria um grande futuro em um paÃs estrangeiro sem seu amigo gênio, e além do mais, o que eles faziam poderia ser feito de qualquer lugar do mundo. E então, voltaram.

Escolheram um barzinho com música ambiente – na verdade, Bryan escolheu, já que morava na região e conhecia os melhores lugares. Bryan adorava esses bares em estilo de pub, talvez porque o lembrasse da época em terras da Rainha. Infelizmente, a comida desses lugares se resumia a petiscos, porções e, no máximo, lanches.
– Tom, já parou pra pensar em como teria sido a sua vida se a gente nunca tivesse ido para a Inglaterra? Se a gente nunca tivesse se conhecido, pra inÃcio de conversa?
– O que é isso? Filosofando a essa altura da vida?
– Não, Tom – Bryan continuou – eu só queria saber se você acha que a sua via teria sido muito diferente, se a gente não tivesse sido amigos, não tivesse feito tanta coisa junto... Onde você estaria agora?
– Bem... provavelmente ainda trabalharia com programação, mas nunca seria o que sou, nunca teria conseguido ir pra Inglaterra, nunca teria conseguido o meu mestrado... Acho que seria um desenvolvedor de alguma firma, um funcionário público, sei lá. Nesse sentido, eu acho que você é a pessoa mais importante da minha vida...
Bryan retrucou:
– A vida mais importante é sempre a sua, nunca se esqueça. A gente é o que a gente pode ser.
– Eu sei, eu sei. Mas todos sabem que você é o gênio da turma. Você mesmo sabe. E, se não fosse a sua genialidade, a gente nunca teria chegado nem perto de onde chegou, seja na banda, seja na MyRobot – porque tudo depende das suas equações.
– Pois eu tenho uma visão diferente. Você é o gênio. Você é que inventou tudo isso.
As palavras de Bryan ficaram vagando na cabeça de Anthony, “procurando um lugar para se ancorarâ€, como um trator amarelo. Tentou pensar em que situação aquilo faria sentido. Anthony sabia que não era “o caraâ€, que apenas era o amigo que punha as ideias “do cara†pra funcionar – e, muitas vezes, era até mesmo um agente dificultador das ideias do amigo. Qualquer um percebia que Anthony era o Barney enquanto Bryan era o Freddy, que Anthony era o Catatau enquanto Bryan era o Zé Colmeia. Isso sempre esteve claro na cabeça de Anthony, e, tudo bem, ele nunca se sentiu diminuÃdo por isso – ao contrário, sempre teve orgulho de ser “o amigo do gênioâ€. Por fim, falou:
– Isso que você disse não faz sentido em nenhuma realidade alternativa que eu possa conceber.
– Rááá! Realidade Alternativa! Você tocou no ponto certo! – exclamou Bryan – Imagina o que sua vida teria sido em uma realidade alternativa, onde o Bryan não existisse... ou melhor: imagina o que eu faria se o Anthony não existisse?
– Bem, você ainda seria o gênio, ainda seria o FÃsico, e encontraria outro cara esperto pra fazer as coisas que você inventa. Eu não sou exatamente necessário na sua trajetória, embora me sinta muito feliz de fazer parte dela.
– Você estava com fome, então coma, você vai ficar melhor. Coma seu mega-lanche de três andares. Ele está esfriando e as fritas estão ficando murchas. – disse Bryan. Depois, comentou – Ouça, está tocando As Time goes by... sempre quis tocar essa música...
– Bryan, isso não tem nada a ver com o nosso repertório... Como você pretende encaixar essa velharia no show?
– Ué, Mozart também não tem nada a ver com o repertório, e, no entanto, seus programas de computador encaixaram ele em quase tudo.
– É diferente. Pra começar, não é Mozart. É “Bryan-fingindo-ser-Mozartâ€. Você estudou música pra caramba pra chegar nesse nÃvel. E depois, a gente nunca toca a versão “originalâ€. Nosso único cover é “Hey Jealousyâ€. Então, o que você está me sugerindo é que eu pegue essa música e repasse nos algoritmos, e altere até ficar irreconhecÃvel. Qual a utilidade disso tudo? No fim, depois de a música passar por todas as transformações no computador, a gente vai continuar sem estar tocando essa tal de goes by... o quê, mesmo?
– As Time goes by.
– Isso aÃ. Esquece essa ideia. Guarde uma versão bonita dela para o seu futuro álbum solo.
– Agora ouça – Bryan apontou o dedo para Anthony, para que o que iria dizer soasse mais sério – Primeiro, eu estudei música por causa das ondas. Eu sou um fÃsico, não um músico. Segundo, você está errado se pensa que o que eu trago para você não é Mozart. Terceiro, tudo o que você acha que sabe sobre a sua vida, a minha, o nosso futuro e passado, tudo isso é uma grande bobagem, e eu pretendia te provar na hora certa, mas acho que a hora certa já passou, então vou ter que dar uma atropelada nas coisas.
Opa!
Isso não havia sido nada do que Anthony esperava ouvir do amigo em uma conversa filosófica. Arriscou um palpite:
– Isso tem alguma coisa a ver com a pergunta que você me fez hoje à tarde, sobre viagens no tempo?
– Tudo a ver – rebateu Bryan – e você não me respondeu. Acredita?
– Você sempre disse que estamos viajando no tempo o tempo todo, a uma velocidade constante.
– Eu sei o que eu disse – insistiu Bryan – e aliás, essa nem é uma citação minha. Você entendeu o que eu quero saber.
Anthony respondeu com uma gargalhada. Tomou um gole da cerveja pra ajudar a descer o lanche. Depois, olhou fixamente para o amigo e perguntou:
– Isso já é sinal de demência? Os grandes gênios ficam assim antes de morrer; será que a sua hora está chegando?
– Sim, minha hora está chegando, e não, não é sinal de demência. – respondeu Bryan, antes de olhar para os lados e complementar – Termina logo esse lanche aÃ, tá complicado conversar em locais públicos.
Ah, pronto. Um gênio psicótico agora.
Bryan continuou, agora falando cada vez mais baixo:
– Desde que voltamos da Europa, eu tenho estudado muito a fundo tudo sobre ondas, dobras nos planos do Espaço-Tempo, paradoxos temporais, etc. Quase tudo o que eu tenho feito desde então é resultado desses estudos. Eu não sou um músico, nunca fiz uma música sequer, sou apenas um cara que teve muito tempo para praticar... e a ajudinha de grandes gênios melhores que eu. Muitas das ideias que os grandes gênios tiveram não puderam ser concretizadas nas suas épocas...
Quando Bryan começava a se empolgar, era melhor sair de perto. Deu uma respirada profunda, para juntar o ar necessário para continuar o que estava dizendo:
– Leonardo Da Vinci criou coisas fantásticas, numa época em que não havia tecnologia para tirá-las do papel. Fermat escreveu nas bordas de um livro: “Descobri uma demonstração maravilhosa para esta proposição, mas, infelizmente, esta demonstração não cabe nas margens desse livroâ€. Acredita nisso? Ele deixou para escrever depois, quando tivesse mais papel, e acabou morrendo, levando com ele a solução. Imagina só o quanto a gente não teria evoluÃdo se ele tivesse um iPad?
– Se ele tivesse um iPad, seria sinal de que a evolução já havia chegado muito antes, e que o Teorema poderia ter sido demonstrado por um computador qualquer. – respondeu Anthony – Não adianta ficar conjecturando sobre “o que teria sido se...â€; o tempo é um trem que viaja em uma direção só. Não é, senhor FÃsico?
– O tempo não viaja. O tempo é um meio. Quem viaja são as coisas. As coisas fundamentais se aplicam com o passar do tempo. Eu estava pensando em como te demonstrar isso, mas infelizmente, também não cabe nas margens da minha história, e, como o Fermat, eu estou morrendo. Calma, calma... Eu chego lá, eu estou super bem de saúde. Mas a coisa toda virou um jogo de caça-ao-tesouro. Por isso eu pedi para que você tenha cuidado com aquele pessoal americano.
– Que coisa toda? Em que a gente está metido? Em que você se meteu?
– Eu? Eu não, quem se meteu nisso foi você. Um dia você vai entender. Nossa tecnologia está chamando a atenção de gente muito perigosa. Ainda é a mesma velha história – Um combate por amor e glória, Um caso de “faça ou morraâ€. E chega uma hora em que a gente tem que sacrificar a nossa vida quando há vidas mais importantes em jogo. Mas fique tranquilo, eu vou continuar te ajudando, Nisso você pode confiar, Não importa o que o futuro traga Com o passar do tempo...
As frases ecoavam na cabeça de Anthony. Sentia-se um pouco inebriado. Algumas frases de Bryan pareciam vir de algum outro lugar... Será que Bryan era um holograma? Não... ele conhecia os hologramas; não tinham chegado nem perto desse nÃvel de evolução. “Não devo atribuir a fatores extraordinários algo que eu possa explicar suficientemente bem com as coisas comunsâ€, foi o que lembrou de repente. E de repente percebeu que já estava na quarta cerveja, e apenas com um lanche e alguns amendoins no estômago.
Bryan também deve ter percebido isso, porque disse em seguida:
– Vamos embora. Você não está bem, e eu não quero falar disso aqui. Vamos para a minha casa, você toma um banho frio, e a gente senta pra conversar. Podemos pedir uma pizza.
Amendoim, lanche, pizza. Se Bryan planejava morrer logo, estava no caminho certo pra isso.

Foi o segundo banho frio do dia. Anthony não estava acostumado a fazer isso. E olha que o dia nem havia sido tão puxado: uma apresentação na madrugada, uma reunião pela manhã, um ensaio no fim da tarde, e as conversas malucas de Bryan. Nada que ele já não tivesse feito zilhões de vezes. A única diferença era que, dessa vez, não tinha se alimentado direito.
Quando chegou na sala, Bryan estava com diversos papeis sobre a mesinha de centro. Papeis muito antigos.
– Você lembra de quando eu consegui o emprego na Biblioteca da Queen’s University de Belfast?
– Claro que lembro. Você praticamente morou lá dentro durante uns bons meses.
Embora dissessem que haviam ido fazer faculdade “na Inglaterraâ€, nem Bryan, nem Anthony ficaram no paÃs. Após um perÃodo de dois anos em Londres, melhorando o idioma e estudando para passar nas provas de admissão, Anthony foi para uma faculdade na Escócia chamada Glasgow Caledonian University, e Bryan foi para a Queen’s University of Belfast, na Irlanda do Norte. A distância entre elas – quatro horas e meia de carro e uma balsa, como Anthony sempre gostava de frisar – nunca separou os dois amigos, mas o perÃodo em que Bryan conseguiu trabalho dentro da Biblioteca o tornou quase tão inacessÃvel quanto as fórmulas que ele escrevia nas paredes da sua casa.
– Naquela época – continuou Bryan – eu estava estudando muito sobre ondas. Todo o meu interesse por FÃsica Ondulatória vem do fato de que, se pudermos controlar isso, poderemos nos tornar senhores do Tempo. Veja bem: eu disse controlar, e não simplesmente alterar. E lá na Biblioteca, encontrei muito material realmente antigo, de grandes mentes, que me ajudaram a ter uma... digamos... epifania.
– Viagem no tempo. De novo. – Anthony estava cansado demais para conversas metafÃsicas.
– Xiu. Fica quieto e escute! – Bryan interrompeu – Não estou perguntando se você acha que é possÃvel. Isso eu já provei ser possÃvel, e não me interessa a sua opinião.
– Você o quê?! – de repente, Anthony começou a perceber que aquela conversa mole não era mais umas das tantas que Bryan puxava para se inspirar. Ele costumava criar situações bizarras e colocar para discussão, apenas para que, das ideias que surgiam, ele encontrasse um fio condutor para inspirar suas composições. Não; dessa vez, parecia que a conversa seria mais séria.
Bryan continuou:
– Mas uma coisa é fazer uma viagem no Tempo, e outra coisa bem diferente é construir uma Máquina do Tempo. Então, depois de muito enrolar, vamos voltar para a pergunta que te fiz hoje à tarde. Você acha que é possÃvel construir uma máquina do tempo?
Era uma pergunta retórica? Era um teste? Anthony não estava entendendo. Pensou por uns minutos.
– Não. Máquinas do tempo não existem. Para levar uma máquina de um lugar ao outro é preciso uma quantidade enorme de energia. Um carro moderno pesa quase uma tonelada e meia. Se o tanque estiver cheio, só de combustÃvel tem mais de 70 quilos. Ou seja: se uma pessoa estiver sozinha em um carro abastecido, vai gastar mais combustÃvel para levar o próprio combustÃvel do que para levar a si mesma. E olha que o carro nem é uma máquina do tempo... Quanta energia não seria necessária para arrastar uma máquina, não através dos quilômetros, mas através dos dias?
Bryan pareceu concordar com a resposta. Anthony comeu mais alguns amendoins que tinham ficado na mesa, murchos. Depois, prosseguiu:
– Então, não, não acho que seja possÃvel quebrar uma barreira tão rÃgida quanto o tempo. As Leis da FÃsica sempre existiram e vão continuar existindo, e – graças a Deus – não há muito o que possamos fazer para destruir alguma delas.
Meu Deus! Estava explicando Leis da FÃsica para um... AstrofÃsico?!
– Ninguém quer destruir ou modificar Lei fÃsica alguma. – respondeu Bryan – A gravidade continua existindo, mesmo depois de inventarmos o avião. Não distorcemos a regra. Não suspendemos seu efeito. O que fizemos foi usar a regra a nosso favor. Voar é tão possÃvel hoje quanto era na época de Cristo, porque a gravidade de hoje é a mesma de outrora. O que eles não tinham é o conhecimento técnico para desenvolver a teoria e os cálculos, nem a tecnologia necessária para construir o aparelho. Então, pelo conhecimento técnico que as pessoas do século I possuÃam, também diriam que a fÃsica não permitia que se construÃssem aviões – e, no entanto, você voltou da Europa pra cá em um.
Respirou. Continuou:
– A ciência continua evoluindo diariamente. Veja como coisas que eram inimagináveis há cem anos hoje estão nas salas, nos bolsos, até dentro do corpo de cada um de nós... Será que não é plausÃvel imaginar que, em algum momento, atingiremos a tecnologia necessária para criar uma máquina que viaje através do passado e do futuro?
– Isso é uma utopia. Demoraria milênios até que se atingisse esse patamar. Isso não é para o nosso nÃvel de evolução.
– Então você admite que, um dia, poderemos ter conhecimento e tecnologia para chegar a esse nÃvel, mesmo que demore milênios, como você mesmo disse.
Anthony parou pra pensar. Como terminar logo aquela baboseira?
– Bem, sim, pode até ser, mas pensar nisso hoje em dia é infrutÃfero.
– Meu querido... se você está me dizendo que, daqui a mil anos, poderá haver uma máquina do tempo, na prática está admitindo que esta máquina exista hoje... que sempre existiu, desde os primórdios. Uma vez que se construa uma máquina dessas, é como se sempre tivesse havido uma, porque o tempo passa a não fazer mais diferença.
Essa parte da história pegou Anthony de surpresa. Nunca tinha parado pra pensar nisso.
– Eu não posso te mostrar todas as fórmulas. Tem coisa que eu nunca escrevi em lugar nenhum. Não posso correr o risco de que alguém um dia descubra meu trabalho. Algumas equações eu decorei usando uma técnica mnemônica: eu “escondo†as fórmulas em um poema. Quer ouvir?
Poema?!
– É importante? Se não for, deixa pra lá; depois você até pode recitar poesia pra mim – já estava tarde e Anthony não estava no clima para poemas; a outra parte da conversa estava bem mais interessante. – Continua a explicar o que é que você vem escondendo.
– Ok – Bryan estava cada vez mais empolgado – Baseado nesses estudos, eu criei um equipamento que altera os campos eletromecânicos para que nossa consciência consiga “fugir†desse espaço-tempo e, de forma controlada, visite novos tempos e lugares. Você se acopla no equipamento e, com as configurações corretas, consegue fazer sua consciência acessar novos caminhos temporais. Em outras palavras, viaja no tempo.
Bryan dizia tudo como se fosse a coisa mais simples do mundo. Anthony tinha a impressão de que a próxima frase seria algo como “Quer um cafezinho?†ou “Agora vamos parar de falar, porque vai começar meu desenho animado preferido, e depois eu continuo a explicarâ€. Bryan já tinha passado do limite da sanidade, e Anthony achava que precisava fazer alguma coisa para salvar o amigo. Como ajudar um gênio louco? Todos eles já não são loucos, de qualquer forma?
Bryan continuou, um pouco mais na defensiva:
– Eu te mostraria esse equipamento. Aliás, sei que vou te mostrar em breve. Mas, por enquanto, não posso permitir que você saiba onde ele está.
– Sei, sei. Isso colocaria a minha vida em perigo, certo?
– Não, Tom, isso já colocou sua vida em perigo, e mais de uma vez – disse Bryan – você ainda não entendeu que o passado e o futuro coexistem? Você não está acreditando em uma só palavra do que eu estou dizendo, não é?
– Claro que estou, Bryan – disse Anthony, em tom apaziguador. Claro que não estava.
– Tudo bem, tudo bem. Hoje à noite você vai começar a entender. Preste atenção aos sinais. Há coisas que eu não vou ficar explicando – já te disse, meu tempo agora é curto.
– Bem, se era isso, acho melhor eu ir para casa então. – disse Anthony – Tem certeza de que não quer que eu fique aqui com você esta noite?
– Eu já disse, eu estou bem, minha saúde está ótima. Minha preocupação agora é com você. Só me prometa uma coisa: Se a gata loira te ligar, não atenda. E venha pra cá assim que acordar – o que eu suponho que seja no meio da madrugada, mas pode vir.
– Então são duas coisas que eu tenho que prometer – disse Anthony.
– Ah, você entendeu! Ah, e tem mais uma coisa. Eu sei que você tem um quadro branco no seu quarto, onde você anota coisas importantes, ideias que não quer perder, etc. Quando você chegar em casa, quero que escreva, em letras legÃveis, algum poema que você goste muito, alguma coisa bem estranha que lhe venha à cabeça. Não pode ser óbvio. Letra legÃvel, hein, não esquece. Agora some daqui.
Anthony saiu da casa de Bryan muito preocupado. Bryan sempre teve a capacidade de falar coisas completamente avançadas com uma facilidade impressionante, de um jeito que até o mais idiota dos homens conseguisse ver sentido (entender o que ele dizia já era outra coisa, outro nÃvel). O que mais o preocupava não eram os delÃrios de Bryan sobre viagens no tempo – isso era simplesmente ridÃculo – mas a desconfiança dele a respeito do Dr. Hartmann e da sua secretária americana. Isso poderia arruinar o fechamento do contrato. Ou será que Bryan sabia algo realmente assustador sobre esse pessoal?
Agora, sim, sentiu que Bryan, do alto da sua loucura, bem que poderia ter oferecido o tal do cafezinho.
[1] Se eu não tivesse estragado tudo dias atrás
[2] Música não autoral, versão de uma música de outro artista