Milhares de amendoins voando na sua direção. Uma batata frita e uma costela de porco.
A garota, estonteante no seu baby-doll branco, se oferecendo a ele, com uma faca escondida nas costas.
John Kennedy de repente aparecendo, com seu cérebro despedaçado, dizendo:
E, no meio de tudo isso, uma aguda e dolorosa picada de abelha.
Anthony acordou encharcado de suor, com a mão sobre o braço, onde, na tarde anterior, havia recebido uma picada de abelha. Estava infeccionando e dolorido.
Levantou-se, esfregou as mãos sobre o rosto, mas não acordou direito. Ainda ouvia vozes na cabeça. Vozes sem sentido, restos de um sonho ruim, ainda não totalmente acabado. Foi até o banheiro e pegou um antisséptico. Havia um pouco de pus na ferida. Anthony limpou, aplicou o remédio e cobriu com um band-aid. Lembrou-se do que Bryan havia dito: ele acordaria no meio da noite, então deveria ir para lá. Ah, e mais uma coisa...
Pegou o celular. Não, não havia nenhuma ligação perdida, nem da loira, nem de ninguém. Seja qual fosse a fórmula de Bryan para prever o futuro, essa parte da equação estava errada... por enquanto. Ops! Será que ele realmente conseguiu prever aquilo tudo?
Aproveitou que o celular estava na mão. Olhou no Whatts. Bryan estava online. Ficou uns cinco minutos olhando para o aparelho, sem saber o que fazer.
Olhou para o quadro branco, na parede oposta à da TV. Estava com algumas pequenas anotações. Apagou todas. Decidiu pensar na primeira coisa que lhe viesse à mente, algo que não fizesse sentido algum, e que Bryan não tivesse como descobrir, e após alguns instantes, uma frase lhe veio à mente, cristalina – algo que devia ter visto na TV. Pegou o canetão e escreveu, em letras garrafais:
Por fim, pegou o celular novamente e mandou a mensagem:
“Acertô, mizerávi. Tô indo pra aÃâ€.
A resposta veio quase imediata.
“Okâ€.

Cerca de quinze minutos depois, o carro de Anthony parava em frente ao portão da casa de Bryan. Entrou e foi direto para a sala, onde, sobre a mesinha de centro, agora haviam alguns recipientes de comida japonesa.
– Eu acho que tratei mal da sua fome na noite passada – ou agora há pouco. Resolvi que quando você voltasse eu tivesse algo melhor pra oferecer... – e o comentário de Bryan veio seguido de um sorriso de desculpas.
Anthony suspirou fundo. Pegou um sushi com a mão, mergulhou no shoyu, enfiou inteiro na boca e engoliu quase sem mastigar. Enquanto isso, Bryan esperava pacientemente, olhando para ele com aquele já costumeiro olhar distante.
– Ok – Anthony disse, por fim – Então você quer me contar sobre como viajou no tempo. Você sabe que isso é impossÃvel e que viagens no tempo não existem, mas, ok, você é o gênio da turma. Estou ansioso para descobrir o que você pretende com essa história.
– Perfeito – disse Bryan, como se voltasse do transe – Escuta só: Eu vou repetir o mega-resumo da história. De novo. Mas presta atenção dessa vez. Eu criei uma fórmula pra navegar pelo tempo e espaço. Essa é a parte boa. Mas tem partes ruins também, como, por exemplo...
– Espera. – disse Anthony – Você não vai nem me explicar como é que fez isso? Você diz que criou uma coisa ultra-mega-revolucionária-ao-quadrado, e já passa para a parte ruim? Tipo, “ah, eu consegui caçar um Tiranossauro Rex ontem à noite, mas agora estou com um problemão porque a carne dele não cabe na minha geladeiraâ€, é isso mesmo?
– Vai ajudar em quê se eu te explicar as fórmulas? – devolveu Bryan – você não ia entender nenhuma delas mesmo! Por que perder esse tempo?
É, fazia sentido.
– Além do mais – continuou Bryan – nada do que eu te disser vai ser suficiente até que você experimente por si mesmo – o que eu não pretendo permitir que aconteça tão cedo. Então, por enquanto, você confia na minha palavra. Você falou em um Tiranossauro Rex. Você pode não entender bulhufas de equações nem de como eu consigo viajar no tempo, mas não vai poder questionar minhas afirmações se eu te trouxer um Tiranossauro Rex vivo... bem, ou um bebê de Tiranossauro, enfim.
– Ok. Concordo. É justo. Então, cadê o filhote de Tiranossauro?
– Pois é, essa é uma das partes ruins que eu estava tentando te dizer – Bryan disse, cabisbaixo. – Por enquanto, eu tenho algumas limitações no meu sistema. A primeira delas é que não posso viajar para nenhum perÃodo onde eu esteja vivo. Eu nasci em 1985, então todo o perÃodo entre 1985 e o ano que eu vou morrer – e eu chego nessa parte da história daqui a pouco – é inacessÃvel para mim. Então, não posso por exemplo, saber como foi o acidente de Chernobyl, ou como morreu a Lady Diana. E a segunda grande limitação é que, por enquanto, eu só consigo fazer a viagem dos sinais elétricos do cérebro, que não têm massa. Não consigo ir “de corpo presente†a lugar nenhum. Pra isso eu precisaria de uma outra máquina. Uma verdadeira Máquina do Tempo.
– Certo – balbuciou Anthony, com um filé de peixe cru entre os lábios. – Na prática, o que você está me dizendo é que consegue sonhar que está no passado ou no futuro. Parabéns! Esse é um dos sinais de uma mente criativa!
– Não é sonhar. Eu descobri coisas que não seriam possÃveis de serem descobertas num sonho. Sabe aquelas músicas nossas, que os crÃticos dizem que “Mozart se reviraria no túmulo se ouvisse dizer que eram inspiradas neleâ€?
– Sei.
– Pois então. Durante várias noites, eu volto até o tempo-espaço em que Mozart estava compondo. Muito do que ele compôs se perdeu no tempo. Partituras foram guardadas de forma errada, pegaram fogo, molharam, rasgaram-se. O que temos hoje é apenas uma parte do que a mente genial de Mozart pôde criar. Tudo o que ele compunha, eu anotava mentalmente. Depois, ao voltar, fazia uma extensa pesquisa, para ter certeza de que aquela peça, especificamente, havia se perdido para sempre. Tentava rastrear os papeis, andando pelo tempo em passos largos, até me certificar de que os originais estavam realmente perdidos. E então, depois de tudo isso, eu te trazia a peça original, que os “especialistas†em Mozart dizem não ter nada a ver com ele...
– Cara, que viagem é essa? Não é muito mais fácil você simplesmente admitir que compôs aquelas coisas todas? Não é feio ser um gênio. Isso é um sentimento de culpa idiota.
– Não, estou te dizendo... Todos os conceitos de música do futuro que eu te passei foram roubados... bem... do futuro. Será que é roubo eu me apropriar de uma coisa que ainda não foi inventada? Todas as minhas contribuições para os hologramas, todas as grandes ideias, tudo isso não passa de uma cola do que é simplório e comum daqui a cem anos. E, a propósito, por que você escreveu aquela baboseira sobre “Papai, não desistimos de você� De onde você tirou isso? Você não tem filhos, nem nunca vai ter, eu te garanto.
Opa! Essa pegou Anthony de surpresa. Será que Bryan tinha instalado alguma câmera na sua casa?
– Como sabe o que eu escrevi?
– Já te disse... eu visitei você no futuro... no meu futuro. Eu te pediria para não apagar aquilo pelas próximas semanas – mas sei que não vai apagar, porque eu consegui ler...
– Tudo isso pode ser explicado de formas totalmente prosaicas. Tirar da cartola uma história de viagem no Tempo não ajuda muito. Se você está dizendo a verdade, me diga qual será minha próxima frase?
– Não funciona assim, – reiterou Bryan – eu não tenho como saber. Já te falei, só posso viajar para épocas em que eu não esteja vivo. Não posso viajar para daqui a dois minutos – a não ser que eu morra daqui a um minuto e meio, e isso ainda não está nos meus planos. Posso continuar a te explicar, ou você vai ficar me interrompendo o tempo todo?
– Continuar a me contar que você viaja no tempo, lendo as partituras de Mozart e o que um amigo escreve no quadro branco de madrugada? Ah, claro, conte mais, isso será muito útil... A gente vai seguir na linha de “De volta para o Futuro†ou de “Dark�
Bryan fez uma expressão sinceramente ofendida. Anthony percebeu que havia sido rude com ele. Ele deveria estar passando por uma situação de extremo stress, só tinha uma pessoa para ajudá-lo, e o mÃnimo que Anthony podia fazer era não deixar o amigo ainda mais nervoso. Por isso, disse:
– Se você vai me dar outras provas, ou se vai me contar mais alguma coisa sobre o que eu fiz, então vá em frente.
– Pois bem. – Bryan deu um suspiro e continuou – Além da limitação de eu só poder voltar no tempo em que não estou vivo, tenho a limitação de só poder carregar uma parte da minha consciência no processo. Isso quer dizer que não posso trazer nenhum souvenir de lugar nenhum, mas também quer dizer que não posso ser visto ou ouvido. E que não consigo interagir com nada nesse espaço-tempo alternativo. Não consigo empurrar uma mesinha na sala de Mozart. Não consigo surrupiar o Grande Diamante Azul da Coroa Francesa. Não consigo sequer sussurrar no ouvido do Rockfeller: “Abra uma conta, em nome de Bryan...â€
– Humm, isso seria uma boa ideia – brincou Anthony, para quebrar o clima pesado.
– ... Também não consigo alterar o futuro, não da maneira que você vê nos filmes. Quando eu crio ou faço algo aqui, no nosso presente, não tenho como saber se isso deu certo amanhã. Tudo o que que eu posso fazer é seguir até o futuro e tentar descobrir, ouvindo conversas, lendo coisas que estejam abertas, sejam páginas da internet ou livros, assistindo a programas de TV... e, de repente, achar algo que ateste o resultado daquilo que eu fiz. E isso dá um trabalhão...
Pegou um amendoim perdido sobre a mesa – esses amendoins estavam por toda a parte – e o mastigou com vontade. Depois, continuou:
– Então, esse negócio todo começou a ocupar um tempo enorme da minha vida, e a ficar muito grande na minha cabeça... Na verdade, percebi que esse lance de viagem no tempo é uma droga. Literalmente uma droga, no sentido viciante da coisa. Você tem medo de descobrir demais, mas, ao mesmo tempo, não quer parar. E é por isso que não me sinto confortável em apresentar essa droga para você. Um irmão não faz isso com o outro.
Drogas. Devia ser isso, alguma coisa bem pesada que Bryan estava usando. Mas Anthony não disse nada, então Bryan continuou:
– Acontece que, nessas idas e vindas, descobri umas coisas muito sérias... Uma das limitações atuais dos nossos hologramas se assemelha à minha limitação com relação à viagem no tempo: assim como eu, estes hologramas não conseguem pegar coisas, tocar fisicamente em ninguém, nada disso. Hoje, eles nem mesmo podem ser usados para espionagem, porque para que funcionem é necessária toda aquela parafernália que a gente monta. Mas, no futuro, eles serão capazes de andar por aÃ, sem limitações, tocar e pegar coisas, serão barreiras ou alvos, serão coisas sólidas. Eu sei, porque vi tudo isso. E, se eles conseguem, é porque há um jeito de eu conseguir a viagem no Tempo de forma fÃsica – porque as equações que eu usei foram basicamente as mesmas. Está entendendo?
– Hummm, mais ou menos. Você foi pro futuro, viu que nossos hologramas se tornaram fisicamente “sólidos†e, a partir disso, deduziu que suas viagens no tempo podem ser sólidas da mesma forma, é isso?
– Sim! Sim! – Bryan estava exultante – As fórmulas são as mesmas! As equações existem, só não foram descobertas ainda!
– Tudo bem, mas então, não é mais fácil ir até o futuro e copiar essas fórmulas? Isso te pouparia um bom tempo, não?
Bryan olhou desiludido para o amigo. Era evidente que ele não estava percebendo o problema:
– Tom, preste atenção. Eu não consigo ir até o futuro, sentar em um cybercafé e digitar no Google: “Fórmula para a viagem no tempoâ€. Provavelmente isso nem estaria no Google, mas, mesmo que estivesse, eu não consigo interagir fisicamente com o teclado. O máximo que eu consigo fazer é estar “presente†se alguém fizer uma pesquisa como esta, e ler a tela que esta pessoa abriu. Entendeu?
– Certo, certo... – Anthony respondeu, pensativo; até para inventar uma história maluca, Bryan era meticulosamente pragmático. – Vem cá: você não pode deixar uma mensagem para seu eu do futuro, igual fizeram com o Marty McFly?
– Está difÃcil fazer você entender... – suspirou Bryan – Não há um “eu-do-futuroâ€. Se houver um “euâ€, eu não posso ir pra lá.
– Ah, é, tinha esquecido dessa. E para mim? Você pode ir pra um lugar em que eu esteja.
Bryan se calou. Mexeu em uns rolinhos de arroz, tentou balbuciar alguma coisa:
– Hoje, você está seguro, porque todos sabem que você não faz ideia das fórmulas nem das equações dos hologramas, e, consequentemente, de tudo o mais. Mas, a partir do momento em que eu não estiver mais vivo, você passa a ser o Alvo. – enrolou uma bolinha de wasabi entre os dedos, mas pareceu não ter coragem de enfiar na boca – A questão é: se essa Teoria já está completa num futuro próximo, é porque, de alguma forma, alguém completou as equações. Esperava que pudesse ter sido eu, mas agora já não tenho certeza.
Anthony percebeu que Bryan não estava dizendo tudo o que queria. Talvez Bryan não tivesse pensado nessa parte da brincadeira. Anthony não conseguia entender até onde ia chegar isso tudo; o velho Oscar, pai de Bryan, certamente se dedicaria a montar uma história como essa e manter as coisas até esse nÃvel, só para, depois, terminar com uma grande piada – era bem o estilo dele. Mas Bryan nunca teve essa veia artÃstica; na verdade, ele abominava essas coisas de pregar peça nos outros. Anthony estava tentando encontrar alguma falha na história toda. Devia ter alguma. Esticou mais a corda:
– Mas deve ter algum livro em alguma Universidade do futuro, em algum momento, que contenha essa informação. Ou, talvez, dentro de alguma empresa que fabrique os tais hologramas. Em algum momento, alguém deve acessar essa informação.
– Deve ter, é claro. O problema é saber onde está isso, em que computador, quem tem acesso a essas informações, e depois de saber tudo isso, basta ir para o futuro e ficar lá, indefinidamente, aguardando que um dia alguém vá acessar essa informação... Isso é impraticável.
Droga. Outra saÃda pela direita do Leão-da-Montanha.
– Agora, sabe qual é a empresa lÃder mundial na construção desses hologramas no futuro? – continuou Bryan, antes que Anthony pudesse impor mais alguma barreira – Uma certa empresa americana, chamada... IncCorp! E sabe quem é que aparece na presidência da empresa? Uma senhora loura, de uns cinquenta anos, muito, mas muito parecida com a sua “gataâ€. E não usam para “Aprendizagem Acadêmica†como disseram nas reuniões e no escopo do projeto. Usam para treinamento militar baseado em gamificação de situações de guerra, mesmo.
Bryan percebeu que Anthony não tinha entendido nada dessa última parte, e resolveu explicar melhor:
– Gamificação de situações de guerra é uma forma de desenvolver um tipo de “jogoâ€, para treinar os soldados para situações reais. Os caras entram na guerra já sabendo o que devem fazer, porque já treinaram isso em simulações. Hoje em dia, já temos isso via Realidade Virtual, mas é óbvio que com avatares reais a coisa fica muito mais eficiente.
Ficaram em silêncio por alguns minutos, Anthony esperando que Bryan terminasse o sashimi que estava comendo para continuar o roteiro do filme, e Bryan, taciturno e pensativo, como sempre. Terminou um sashimi. Pegou outro. Saboreava cada filezinho como se fosse a comida dos Deuses. Anthony já estava ficando impaciente.
– Então eu vou te dizer o que eu acho. – Bryan disse, depois de lamber os dedos – Eu acho que eles também não sabem as fórmulas. O que eles têm é o modelo de construção. Eles não sabem desenvolver a coisa toda, apenas pegaram a coisa pronta – provavelmente, roubaram isso da gente. Como eu te disse, eu escondi as principais equações. Mas agora chegamos a um grande impasse: eu tenho que garantir que seja eu o responsável por desenvolver o resto da Teoria, senão, é sinal de que isso caiu em mãos erradas, e eu não quero nem imaginar o que aconteceria. Por enquanto, eu estou na frente de todo mundo... porque, por enquanto, tudo o que a IncCorp consegue vislumbrar da nossa engenharia de hologramas é que eles podem criar hologramas sólidos... Se, no futuro, eles ainda não perceberam o alcance das equações, é porque nunca conheceram essas equações. Se eles tivessem chegado às equações e completado a Teoria, então certamente teriam percebido a analogia com a viagem no Tempo. Eu não sou o único gênio do mundo...
– Então, qual é a solução para isso tudo?
– A solução parece bastante óbvia, não? – Bryan começou a rabiscar alguns papéis; dizia que ajudava a pensar – Preciso chegar à Teoria Unificada antes de qualquer um... e depois destruir tudo. Bom, a gente sabe que de alguma forma a Teoria foi completada...
– Você sabe, ou diz que sabe – corrigiu Anthony, mas Bryan nem deixou que ele concluÃsse; estava acelerado.
– Não me atrapalha! A Teoria foi completada, mas não há nenhum indÃcio de que tenha sido usada para viagem no Tempo. Isso nos abre diversas alternativas.
Rabiscou um “1†em uma folha e escreveu: “Eu conseguiâ€. Depois, disse:
– Se eu consegui terminar essa maldita Teoria, e se consegui consertar tudo, é sinal de que o problema foi resolvido e eu destruà a Máquina e a Teoria... e é por isso que não existem máquinas do Tempo no futuro que eu vi.
Escreveu um “2†em outra folha, seguido de “Eles conseguiramâ€:
– Agora, se eu não tiver conseguido isso, é sinal de que eles conseguiram. No futuro ainda não vi nenhuma Máquina do Tempo, e é muito difÃcil procurar uma coisa dessas, porque certamente isso não vai estar à venda no Wall-Mart. Mas, se eles conseguiram completar a Teoria, vai ser questão de tempo até que alguém consiga fazer a ponte entre os hologramas e o Espaço-Tempo. Mas há uma terceira possibilidade...
E escreveu um “3â€, seguido de uma frase muito, mas muito assustadora:
– Aqui – continuou Bryan – eu já não estou mais com você, mas, mesmo assim, a Teoria é completada. Por você.
– Bom, essa a gente já pode descartar – disse Anthony amassando a folha – porque eu não entendo nada dessas fórmulas malucas que você usa nas suas teorias...
– Dá aqui essa folha! – interrompeu Bryan, tirando a bolinha de papel das mãos de Anthony e tentando alisar o papel na mesa – Você não, seu tonto, mas seus Sistemas de Machine Learning, sim. Com a minha ajuda, é claro.
Anthony estava suando frio. Estava cansado, teria que fazer um monte de coisas no dia seguinte... Não estava mais com cabeça para a loucura de Bryan. “Preciso procurar um bom psiquiatra pra ele, amanhã logo cedoâ€, pensou. Por fim, deu um suspiro fundo, e disse:
– Você me garante que tudo isso vai dar em alguma coisa, né... Que, no fim, essa conversa toda vai nos fazer melhorar os nossos hologramas...
– Cara, esquece os hologramas... Há vidas em jogo... – Bryan estava impaciente, mas, por fim, disse – Ok, se é isso que te importa, sim, nossos hologramas serão um maravilhoso efeito colateral do nosso sucesso. Dou a minha palavra. Satisfeito? Agora deita aà no sofá, está tarde pra você ir embora.
– Não, eu aguento dirigir até em casa. Preciso pensar em tudo isso. E além do mais, você sabe, não consigo dormir fora da minha cama, fico tendo pesadelos e acordo com enxaqueca.
– Eles não sumiram, não é?
– Não, e acho que não vão sumir nunca... mas enfim, a gente se acostuma. Até amanhã. Você vai estar na MyRobot?
– Não, mas, saindo de lá, venha direto pra cá.
Toda empresa é assim, afinal: enquanto um trabalha, o outro inventa história.

O caminho de volta para casa acabou sendo muito rápido, porque o mundo ainda não tinha acordado. Quando Anthony saiu da casa de Bryan, o sol ainda tentava aparecer por trás dos prédios. O céu já estava claro, mas ainda cinzento: talvez fosse mais um daqueles dias nublados de chuva. Olhou para o celular: havia duas ligações perdidas, de um número desconhecido. E uma mensagem no Whatts:
“Oi, Anthony. É a Samantha. Preciso falar com você urgente.â€
Bingo. Bryan acertara de novo. Ele devia ter combinado alguma coisa com esta moça, e Anthony era o bobalhão da pegadinha. Mas havia algo estranho, que Anthony não notou à primeira vista...
O que ocupava sua cabeça, no entanto, era a conversa que haviam tido. Bryan à s vezes dava umas belas “viajadas†– e Anthony sempre entrava na onda, porque sabia que fazia parte do processo criativo do guitarrista. Os outros caras da banda normalmente não tinham paciência pra essas coisas, então ficavam num canto, bebendo cerveja e tirando sarro de uma coisa ou outra que conseguiam entender. Normalmente, as conversas mais “cabeça†eram travadas pelos dois nerds da turma. Mas dessa vez, Bryan tinha passado de todos, todos os limites possÃveis. O que será que iria sair nessa próxima música? Será que ele já estava pensando em algo maior, como um álbum inteiro, um show conceitual, um filme, ou o quê? Por que se dar ao trabalho de colocar uma câmera na sua casa, para conseguir ler o que ele tinha escrito no quadro – e, aliás, quando foi que ele fez isso, já que quase nunca ia até o apartamento de Anthony?
Quando chegou em casa, foi direto para o quarto e vasculhou em todos os cantos à procura de uma microcâmera. Nada.
“Ele conseguiu ler de lá de fora. Sei lá, algum droneâ€.
Olhou para a janela. Fechada.
Olhou pela fresta da janela. O de sempre: o cemitério.
Anthony morava em um belo apartamento no décimo andar, com vista para o cemitério. Havia sido muito mais barato de comprar, porque, segundo o sÃndico que o acompanhou na visita com o corretor, “as pessoas adoravam o apartamento, até olhar pela janela. Depois que viam o cemitério, desistiam da compraâ€. Anthony não tinha essas superstições; pra falar a verdade, adorava o fato de que nunca haveriam de construir outro prédio na frente da sua janela. “A vizinhança é bem silenciosaâ€, ele dizia, brincando, “apesar de ser meio fria...â€
Se Bryan não havia conseguido ler através das frestas da janela, e se não havia nenhuma câmera escondida por ali, como é que ele conseguia saber o que Anthony tinha escrito? Não podia ser um chute; a frase não fazia o menor sentido – nem mesmo para Anthony, um rapaz solteiro e sem filhos. E o que Bryan quis dizer com “Você não tem filhos, nem nunca vai ter�
Aliás, o que Bryan quis dizer com cada coisa que disse? O que significava tudo aquilo? Simplesmente loucura? Questão de vida ou morte? E, se fosse, morte de quem?
E foi então que, com um arrepio de gelar a alma, Anthony entendeu o que Bryan quis dizer com a parte 3: “Eu não vou estar mais com você, mas você vai conseguir sozinho.â€