Os dois mundos que eu mantinha tão cuidadosamente separados acabaram de colidir de forma catastrófica. Tudo estava congelado ao meu redor: o mundo, o momento, as pessoas... As peças do tabuleiro holográfico, a sala, as vozes distantes dos adultos – tudo desapareceu.
Só restava aquela frase, aquelas palavras que me fizeram arrepiar. Minha mente gritava que era absurdo que o olhar de Mirela agora parecesse tão familiar. Ao mesmo tempo, perguntava-me como não percebi antes. Meu coração estava em disparada e não diminuía o ritmo, a respiração presa na garganta. Sebatia. Mirela era Sebatia.
— Você não foi muito criativo no seu avatar — continuou ela com a casualidade de quem se divertia às minhas custas, um brilho no olhar e um sorrisinho travesso nos lábios. — Te reconheci no exato momento em que te vi. Por que você não fez um avatar diferente para o mundo virtual? Você o quê? Clareou um pouquinho o cabelo, só isso?
As palavras travaram na minha garganta. Uma parte de mim queria fazer mil perguntas, outra queria simplesmente sair correndo. Era como encontrar um fantasma, alguém que deveria existir apenas em outro plano. Como reagir quando seu sonho mais precioso de repente materializa-se na sua frente, usando roupas formais e um penteado conservador?
Mas quando ela inclinou levemente a cabeça daquele jeitinho, algo dentro de mim cedeu. Deixei um sorriso escapar, percebendo a minha própria tolice. As barreiras que eu havia construído tão cuidadosamente entre esses dois mundos começaram a desmoronar, e me vi confiando nela como sempre confiei em Sebatia.
De repente lá estava eu abrindo a minha boca e falando tudo para a garota, como se agora ela tivesse se tornado uma humana aceitável de se conviver. Como se nossa intimidade no RV2500 tivesse sido baixada para ser utilizada na realidade também.
— Não entrei no mundo virtual para ser outra pessoa. Entrei apenas para ter uma nova vida.
— E o que tem de tão ruim na sua vida aqui? — perguntou ela, seus olhos agora mais sérios.
— Não sei.
Como eu poderia explicar para ela o vazio? A falta de vontade, o conforto insípido do meu quarto, a irritação das pessoas. A ausência do meu pai, a morte da minha mãe, e a incompreensão de Molly?
Falando nela, Molly havia acabado de aparecer para nos oferecer sorvete. Ela perguntou os sabores que iríamos querer e Mirela pediu chocolate com pistache sem hesitar. Molly virou-se para mim já se preparando para o meu dilema habitual.
Eu não sabia, não tinha a menor ideia do que eu queria. Na realidade, sorvete não me causava a animação que percebi em Mirela, que percebo na maioria das pessoas da minha idade. Creio que seja um dos motivos de não querer me relacionar com elas.
— O senhor quer tentar a sorte? — perguntou Molly, já familiarizada com minha constante indecisão.
— Sim, obrigado.
— Por que você não pede o seu favorito? — Mirela perguntou, e havia uma curiosidade genuína em sua voz.
— Não tenho um. — Desviei de seu olhar, sentindo o peso daquela confissão. Era mais do que sorvete; era sintomático de tudo em minha vida. No RV2500, eu sabia exatamente o que queria: trabalhar em uma padaria no porto, aventuras com Sebatia, reinos novos para explorar. Aqui, nesse mundo de superfícies frias e luz artificial, nada despertava em mim qualquer desejo genuíno. Nem mesmo algo tão simples quanto um sabor de sorvete.
Mirela me observou por um momento, como se enxergasse além das minhas palavras, decifrando o vazio que eu tentava esconder.
— Então, marinheiro, vai me contar? — perguntou com um tom que me transportou imediatamente para nossa padaria virtual.
Olhei direto em seus olhos e, por um momento vertiginoso, vi neles a sobreposição impossível de duas pessoas. Ali estava Mirela, com sua blusa abotoada até o último botão, saia que descia comportadamente abaixo dos joelhos, e cabelo castanho preso num coque tão rígido quanto as regras sociais que ela aparentemente seguia. E dentro desse invólucro perfeitamente adequado às convenções, pulsava Sebatia – rebelde, vibrante, com seu cabelo azul de pontas brancas dançando em liberdade, piercing brilhando provocativo no nariz, e roupas que celebravam em vez de esconder.
A menina que sorria e iluminava o meu dia, que me contava histórias sobre os lugares estranhos onde já havia trabalhado no mundo virtual e sobre as grandes oportunidades que teve de aprender variadas profissões. Sebatia sabia até pilotar um avião. A mesma pessoa. Duas identidades tão distintas que pareciam habitações diferentes para a mesma alma. Eu me perguntei qual delas era mais real.
— Fiz alguns trabalhos extras quando você não estava logada. Quando falamos sobre os locais que você já havia trabalhado e tudo que você aprendeu neles, isso me animou. Queria ter dinheiro para quando fôssemos para os outros reinos. Afinal, eu estava te pedindo para desistir do seu trabalho...
Abaixei a cabeça, sentindo-me muito idiota.
— Eu queria passar mais tempo com você. É isso — confessei de uma vez.
Minhas mãos apertavam a borda do tabuleiro com força e, pela primeira vez, eu senti o toque de uma menina no mundo real. Meus olhos correram para o rosto de Mirela.
— Brian, se somos amigos e vamos fazer uma viagem juntos, você precisa confiar em mim. Eu tenho dinheiro suficiente para viajar por todos os reinos. Você não podia ter arriscado sua vida por uma coisa assim.
— Não imaginei que levaria tanto dano. Eu gosto de viver lá, é muito melhor que aqui.
— Você ao menos se dá a oportunidade de viver aqui? Seu pai disse que você não frequenta nenhum centro escolar, nenhuma comunidade esportiva...
— Aqui está sempre chovendo, não tenho vontade de sair de casa. As mães e os pais levam os filhos nesses locais, meu pai não tem tempo para isso e minha mãe morreu quando eu nasci. Aquele mundo é muito mais bonito, o dia, o sol de lá, a natureza, nada disso existe aqui.
Mirela suspirou profundamente. Ela entendia sobre o que eu estava falando. Creio que ela fosse a única capaz de me entender.
— Você quer conhecer a comunidade musical? Eu frequento um dos centros e posso passar aqui para te buscar todas as vezes. Meus pais também não me levam. É o Gérard que me leva... E, o que acha de convidar a Molly para ir também? Há algum tempo eu estou tentando arrumar uma namorada para o Gérard.
Eu ri.
— Molly não sabe amar — falei, repetindo a frase de sempre que Molly me dava quando eu questionava sobre o amor.
— Gérard também não — ela respondeu, e rimos juntos.
Aceitei a proposta de Mirela. Iria viver com ela o mundo real e com Sebatia o mundo virtual: eram duas aventuras nas quais eu estava me jogando.
E, por mais estranho que pareça, eu vi no sorriso dessa garota uma razão para esperar o amanhã também no mundo real.
Recadinho da Autora:
Quando até escolher um sabor de sorvete parece demais, talvez o problema não seja o sorvete.
Talvez seja aquele cansaço invisível, o peso constante de não sentir vontade de nada — nem do que costumava ser doce.
Você já se sentiu assim também?
Comenta aqui com um emoji que represente como você tá se sentindo hoje. Sem pressão. Só pra começar.
Nos vemos no próximo capítulo!