Calum Silva enterrou o pai numa manhã cinzenta, o céu chorando em silêncio cúmplice, uma semana após o golpe fatal da demissão. Cinquenta anos. Um marco que deveria ser celebrado com bolo e abraços, mas que se transformou em epitáfio. Não havia tempo para festas, para o doce sabor da comemoração. Apenas o amargo da terra recém-revolvida e o suor frio que grudava a camisa ao corpo, uma segunda pele de luto e exaustão.
A boca seca, a alma emudecida, um vazio que ecoava mais alto que qualquer lamento. Ninguém o esperava em casa. Ninguém ligaria. Ninguém, absolutamente ninguém, perguntaria se ele estava bem. E, se por um milagre, alguém o fizesse, Calum não saberia o que responder. As palavras, assim como a esperança, haviam se dissolvido no ar rarefeito daquele dia.
Nos últimos tempos, a vida de Calum havia se transformado em um campo de batalha, um exercício diário de resistência. Ele trabalhava, ou melhor, trabalhava em um pequeno escritório fiscal. A palavra “trabalhava” agora soava como um eco distante, um fantasma de um passado recente.
Sua demissão não fora por incompetência, mas por um incômodo moral que se recusava a calar. Calum, um homem de integridade inabalável, ousou confrontar as fraudes fiscais da empresa.
“Você é bom, Calum. Mas atrapalha o jogo.”
Foi a sentença que ouviu, um eufemismo polido para “você é decente demais para este covil de lobos”. Integridade, ele sabia, não pagava aluguel, não enchia a geladeira, não aquecia a alma. Era uma moeda sem valor no mercado da sobrevivência.
Calum nunca foi um homem de grandes ambições. Nunca almejou os holofotes, os tapetes vermelhos da fama ou da fortuna. Sua essência era a simplicidade, a contenção, um boêmio tardio que encontrava poesia na mesa de bar, na conversa fiada que se estendia pela madrugada, na filosofia destilada em goles de cerveja barata.
Ele fazia seu trabalho com esmero, mas a corrida desenfreada por promoções e ascensão social nunca o seduziu. E, para muitos, essa falta de “fome” era quase um pecado capital, uma afronta à lógica do mundo moderno.
As mulheres que cruzaram seu caminho, invariavelmente, partiram pelo mesmo motivo, um refrão repetido à exaustão.
“Você não quer crescer, não tem ambições.”
E Calum, em seu íntimo, pensava com uma ironia amarga.
“Eu não quero ter. Quero apenas ser.”
Ele preferia a paz ao frenesi da conquista, o silêncio à gritaria ensurdecedora do mundo, o sentido à aparência vazia. Mas, em um universo obcecado por metas, selfies e boletos, essa era uma filosofia imperdoável, uma heresia silenciosa.
Anos antes, a doença e a subsequente morte da mãe o trouxeram de volta ao lar paterno. Ele ficou. Cuidou. E, de alguma forma, parou de viver. O mundo encolheu para o perímetro da casa, suas saídas se resumindo a uma cerveja solitária no bar da esquina, uma vez por mês, um ritual melancólico de quem se agarra a um fiapo de normalidade.
A vida se tornou pequena, mas ainda fazia algum sentido, um sentido ancorado na presença dos pais. Agora, sem eles, sem emprego, sem ninguém, nem mesmo esse fiapo restava. A solidão era um manto pesado, sufocante.
Chegou em casa, os sapatos pesados como âncoras, o corpo exausto. Jogou-se no sofá, um naufrágio em terra firme. Abriu o cooler, o som do “Tshisss...” da lata de cerveja rompendo o silêncio opressor. O celular vibrava, uma cacofonia de alertas idiotas, o mundo inteiro gritando dentro de um retângulo de vidro.
Por inércia, abriu o TikTok. Gente dançando, gente vendendo, gente pregando em nome de deuses, demônios e duendes. Um circo de horrores e maravilhas, tudo compactado em vídeos de quinze segundos.
Então, como um soco no estômago, surgiu um vídeo com três figuras conhecidas, um documentário editado sobre Edir Macedo, R.R. Soares e Valdemiro Santiago. O narrador, com voz monocórdica, revelava a gênese daqueles impérios, todos nascidos de um mesmo ventre, de uma mesma ideia, lá por 1977.
Edir Macedo fundou sua igreja, tempos depois brigou com R.R. Soares que fundou a sua, o terceiro Valdemiro, seguiu o mesmo caminho. Milhões de fiéis, fortunas incalculáveis, tudo em nome de Deus. Mas que Deus?
Calum riu, um riso amargo que arranhou a garganta.
“Parece franquia... tipo McIgreja.”
Pensou, a ironia escorrendo pelos cantos da boca. A ideia, absurda e tentadora, talvez sussurrada pela cerveja, brotou em sua mente.
“Se esses caras fundaram uma igreja, por que eu não posso fundar a minha?”
Mas a lucidez, cruel e implacável, o puxou de volta à realidade. Ele sorriu, tomou outro gole de cerveja. Sabia a resposta. Não acreditava em nada daquilo. Nunca tinha acreditado, de verdade, não no Deus deles. Esse Deus, para Calum, sempre pareceu mais um produto, uma marca a ser vendida, do que uma presença divina e sabia que nunca conseguiria enganar ninguém por dinheiro.
Foi então que, como um milagre do algoritmo, surgiu na tela aquele texto famoso, “O Deus de Spinoza”, atribuído a Einstein. Calum clicou. Leu. E cada palavra era um bálsamo para sua alma ferida, uma revelação que desnudava as hipocrisias e os dogmas que o haviam afastado da fé.
“Pare de ficar rezando e batendo no peito! O que quero que faça é que saia pelo mundo e desfrute a vida. Quero que goze, cante, divirta-se e aproveite tudo o que fiz pra você.”
A voz, que parecia vir das profundezas de sua própria consciência, o convidava a uma liberdade que ele jamais imaginara.
“Pensei que o senhor quisesse que eu fosse um mártir.”
Sussurrou Calum, a voz embargada.
“Pensei que o senhor quisesse que eu me sacrificasse, que eu sofresse.”
Mas a voz continuava, doce e firme.
“Minha casa são as montanhas, os bosques, os rios, os lagos, as praias, onde vivo e expresso Amor por você.”
Era um Deus que não exigia sacrifícios, mas celebração. Um Deus que não vivia em templos lúgubres, mas na exuberância da natureza. Um Deus que não o culpava por sua vida miserável, mas o convidava a vivê-la plenamente.
“Eu nunca disse que há algo mau em você, que é um pecador ou que sua sexualidade seja algo ruim. O sexo é um presente que lhe dei e com o qual você pode expressar amor, êxtase, alegria. Assim, não me culpe por tudo o que o fizeram crer.”
A cada linha, as amarras da culpa e do medo se desfaziam, revelando um Deus de puro Amor, um Deus que não julgava, não criticava, não se irava, não incomodava, não castigava.
“Pensei que o senhor fosse um juiz severo”
Pensou Calum, as lágrimas escorrendo pelo rosto.
“Pensei que o senhor me puniria por cada erro, por cada falha.”
Mas a voz continuava, um sussurro divino.
“Pare de acreditar que eu poderia criar um lugar para queimar todos os meus filhos que não se comportem bem, pelo resto da eternidade? Que Deus faria isso? Esqueça qualquer tipo de mandamento, qualquer tipo de lei, que são artimanhas para manipulá-lo, para controlá-lo, que só geram culpa em você!”
Era um Deus que desconstruía dogmas, que libertava a alma, que convidava à autenticidade.
“Respeite seu próximo e não faça ao outro o que não queira para você! Preste atenção na sua vida, que seu estado de alerta seja seu guia!”
A vida, ele percebeu, não era uma prova, nem um degrau, nem um passo no caminho, nem um ensaio, nem um prelúdio para o paraíso. Era apenas o que havia ali e agora, e só o que ele precisava.
“Eu o fiz absolutamente livre. Não há prêmios, nem castigos. Não há pecados, nem virtudes. Ninguém leva um placar. Ninguém leva um registro. Você é absolutamente livre para fazer da sua vida um céu ou um inferno.”
A liberdade, antes um conceito abstrato, agora se materializava em cada fibra de seu ser.
“Não lhe poderia dizer se há algo depois desta vida, mas posso lhe dar um conselho, viva como se não o houvesse, como se esta fosse sua única oportunidade de aproveitar, de amar, de existir. Assim, se não houver nada, você terá usufruído da oportunidade que lhe dei.”
E, se houvesse, ele sabia, aquele Deus não perguntaria se ele foi comportado ou não. Perguntaria se ele gostou, se se divertiu, do que mais gostou, o que aprendeu.
“Pensei que o senhor quisesse que eu acreditasse em ti.”
Pensou Calum, a voz embargada.
“Pensei que o senhor quisesse que eu te louvasse, que eu te agradecesse.”
Mas a voz continuava, um convite à experiência.
“Pare de crer em mim! Crer é supor, adivinhar, imaginar. Eu não quero que você acredite em mim, quero que me sinta em você. Quero que me sinta em você quando beija sua amada, quando agasalha sua filhinha, quando acaricia seu cachorro, quando toma banho de mar.”
Era um Deus que se manifestava na vida, na alegria, no amor, na simplicidade do cotidiano.
“Pare de louvar-me! Que tipo de Deus ególatra você acredita que eu seja? Aborrece-me que me louvem. Cansa-me que me agradeçam. Você se sente grato? Demonstre-o cuidando de você, da sua saúde, das suas relações, do mundo. Sente-se olhado, surpreendido? Expresse sua alegria! Esse é um jeito de me louvar.”
A gratidão, ele percebeu, não era um ato de louvor, mas um ato de cuidado, de alegria, de celebração da vida.
“Pare de complicar as coisas e de repetir como papagaio o que o ensinaram sobre mim! A única certeza é que você está aqui, que está vivo e que este mundo está cheio de maravilhas. Para que precisa de mais milagres? Para que tantas explicações? Não me procure fora. Não me achará. Procure-me dentro de você. É aí que estou, batendo em você.”
Calum leu de novo. E de novo. Cada palavra, um eco em sua alma. E então, como quem encontra um espelho em meio a escombros, sentiu que aquele Deus... era o único que fazia sentido.
“Quero conhecer esse Deus... o que se revela na harmonia do que existe... não o que pune ou recompensa.”
O peito apertou, uma dor doce e libertadora. Os olhos marejaram, e pela primeira vez em anos, Calum chorou. Não por dor, não por tristeza, mas por reconhecimento. Como se o universo, finalmente, tivesse dito.
“Eu estou aqui, mas não como te ensinaram.”
Naquela noite, Calum não acendeu a luz. Não comeu. Não rezou. Mas olhou para o teto e disse em voz baixa, quase um sussurro, as palavras se perdendo na escuridão.
“Talvez eu não tenha perdido tudo. Talvez eu esteja, enfim, somente começando.”
A voz, antes embargada pela dor, agora carregava um tom de esperança, um prenúncio de um novo começo, de uma nova vida. A escuridão do quarto, antes opressora, agora parecia um útero, um espaço de renascimento. E Calum, o homem que enterrou o pai e a si mesmo no mesmo dia, sentiu um vislumbre de luz, uma promessa de que, mesmo na mais profunda escuridão, a vida sempre encontra um caminho para florescer.