Eles chegavam aos poucos, com os ombros curvados e o corpo
encolhido, os olhos de bicho escaldado que já conheceu a dor, o coração em
carne viva, pulsando feridas que o tempo ainda não havia cicatrizado. Entravam
de mansinho, como quem não ousa acreditar que pode ser acolhido sem pagar o
preço amargo da vergonha, sem ter que justificar a própria existência.
Ali, encontravam-se travestis expulsas de casa aos quatorze
anos, com a alma marcada pela rejeição, prostitutas que, com um rosário
apertado no bolso, sustentavam seis filhos, a dignidade intacta apesar dos
julgamentos, ex-dependentes químicos que trocavam a pedra pelo pão, a esperança
renascendo em cada migalha, meninos da periferia que nunca haviam escutado um
“você tem valor” sem um “mas” logo em seguida, uma condicional que lhes roubava
a plenitude.
Gente que havia sido chutada para fora das igrejas, com
versículos bíblicos cuspidos como pedras, ferindo mais do que qualquer agressão
física. Todos, agora, sentavam-se em roda, partilhavam o café, escutavam com
atenção e, mais importante, eram escutados. Ali, ninguém precisava pedir perdão
por ser quem era. Em Raham, o pecado se dissolvia onde o amor florescia.
Lúcia observava aquela gente com uma ternura feroz, um
brilho nos olhos que denunciava a profundidade de sua alma. Sabia, como mulher
ferida e curada, que aquele lugar havia transcendido a mera definição de casa.
Era um refúgio, um colo, um porto seguro onde as almas cansadas podiam
finalmente descansar.
Calum, por sua vez, falava menos com discursos eloquentes e
mais com o olhar, com a presença. Raham já não era apenas uma ideia abstrata,
uma filosofia distante, era carne, era presença, era a manifestação do amor em
cada toque, em cada abraço, em cada reconstrução de vidas. Até que...
Naquela manhã de sexta-feira, a surpresa chegou em forma de
um carro da prefeitura. Dele desceu um fiscal burocrático, com a cara de uma
segunda-feira eterna, carregando uma ordem impressa em papel timbrado, fria e
impessoal como a morte.
— Irregularidades estruturais, senhor. Zoneamento
residencial. Atividades religiosas não podem ser realizadas aqui.
A voz do fiscal era monótona, desprovida de qualquer emoção,
como a de um robô programado para cumprir ordens. Lúcia tentou argumentar, a
voz embargada pela indignação.
— Mas temos todos os alvarás da prefeitura, dos bombeiros...
As palavras se perderam no ar, ignoradas pela muralha da
burocracia.
O homem, impassível, repetiu.
— Ordem superior. Denúncia anônima. Não posso fazer nada. O
espaço está interditado.
E, com um gesto mecânico, colou o selo na porta. Um selo
feio, burocrático, repleto de carimbos e letras miúdas. Mas o que ele colava,
na verdade, era o medo. O velho medo, que se esgueirava pelas frestas da alma,
ameaçando sufocar a esperança.
Aletéia chegou correndo, os olhos arregalados. Leu o papel,
a raiva crescendo em seu peito, e, num acesso de fúria, rasgou-o em pedaços.
— Isso aqui não é papel. Isso aqui é censura disfarçada!
Sua voz ecoou, carregada de indignação e desafio.
— E agora?
Perguntou uma mulher com os olhos inchados, que havia saído
da prostituição duas semanas antes e começado a trabalhar como ajudante na
cozinha da casa. Sua voz era um fio de esperança, prestes a se romper.
Calum tentou responder. Abriu a boca, mas nada saiu. Nem ar.
Tentou de novo, um som rouco, abafado, que não se transformou em palavra. Nada.
— Calum... está tudo bem?
Lúcia tocou seu braço, a preocupação estampada em seu rosto.
Ele levou a mão à garganta, tossiu, mas o silêncio permaneceu. Aletéia se
aproximou, o rosto em pânico contido.
— Você está bem?
Ele piscou, lento, como se estivesse processando a
realidade. Tentou mais uma vez. Nada. Nenhuma palavra. A voz... sumiu. Como se
Raham, o Deus que sussurra, tivesse decidido calar seu mensageiro. Ou, talvez,
protegê-lo do ruído ensurdecedor do mundo.
Naquela noite, Calum foi ao hospital. Exames, a tensão
palpável no ar, o diagnóstico. Disfonia funcional. Trauma súbito. Sem lesão.
Sem prazo para retorno. O médico explicou, com uma frieza clínica que
contrastava com a dor de Calum.
— É como se sua voz tivesse desistido de lutar.
Lúcia entendeu, a verdade atingindo-a como um raio. Calum,
porém, não. Apenas chorou, um choro silencioso, de quem ainda não sabia se
aquilo era punição, exaustão ou, quem sabe, um milagre disfarçado.
O domingo chegou. Sem casa. Sem voz. Sem planos. A incerteza
pairava no ar, densa e opressora. Mesmo assim, o povo veio. Chegaram com seus
banquinhos improvisados, seus violões desafinados, seus cadernos de anotações.
Vieram à praça, aquela que ficava a duas quadras da casa interditada, um novo
palco para a fé que se recusava a ser calada. Vieram com medo, sim, mas também
com uma fé inabalável. A fé dos que já foram expulsos de tudo e, ainda assim,
continuam vindo, buscando um lugar para pertencer.
Lúcia subiu em um pequeno coreto, um altar improvisado de
cimento, que se erguia como um símbolo de resistência. Puxou o microfone
portátil, sua voz ecoando pela praça, e olhou a multidão. Duzentas, talvez
trezentas pessoas, e o número continuava a crescer, almas sedentas por
esperança.
— Calum não pode falar.
Disse, firme, a voz carregada de uma emoção contida.
— Mas Raham nunca precisou de microfone. Nunca precisou de
um intermediário. Ele habita em cada um de nós.
Apontou para o meio do povo. Calum estava lá, sentado, com
uma plaquinha escrita à mão no colo.
“Onde dois ou mais se amam, eu respiro.” - Raham.
A multidão aplaudiu, chorou e cantou, a voz coletiva se
erguendo em um coro de fé e resistência. Aletéia, que nunca havia desejado ser
líder, puxou a fala, sua voz vibrando com a força de quem já enfrentou a
adversidade.
— Já quiseram nos calar antes. Quando nos chamaram de
aberração, de ladrão, de vagabunda, de desviado, prostituta, de viado.
A lista de ofensas ecoou, um lembrete doloroso das batalhas
travadas.
— Mas a gente não cala. Porque enquanto houver uma boca para
dizer “eu existo”, Raham vive.
E então, com a ousadia de quem já perdeu tudo e não tem mais
nada a perder, ela proferiu as palavras que selariam o destino daquela fé.
— Essa fé não precisa de parede. Não precisa de alvará. Não
precisa de aval de pastor nem de bênção de juiz. Essa fé... é viva. E vocês são
a prova.
A multidão levantou-se em silêncio, um protesto sagrado que
falava mais alto do que qualquer grito. Calum, com os olhos marejados, pegou
uma folha e escreveu uma última frase, as palavras brotando de sua alma como um
rio. Subiu no coreto, sua presença imponente, e mostrou a placa.
“Raham perdeu um templo. Mas ganhou uma cidade.”
O silêncio que se seguiu foi profundo, carregado de
significado. Depois, como um trovão feito de palmas, o grito coletivo de quem
finalmente entende que, quando a boca do profeta se cala, é o povo que fala,
que o amor, em sua forma mais pura, grita mais alto do que qualquer voz.