As reuniões, antes sussurros tímidos em um círculo de cadeiras desbotadas, na sala de uma casa velha, mas que exalava honestidade, começaram a transbordar. Ali, gente de pés descalços e corações expostos, com os olhos marejados de quem já havia se cansado de fingir, encontrava refúgio.
No início, o silêncio era quase palpável, quebrado apenas por suspiros pesados. Mas Raham, esse sopro teimoso de esperança, crescia. Crescia com a força de um capim que rompe o asfalto, sem pedir licença, sem se importar com as convenções. Era uma força vital, indomável, que se espalhava de alma para alma.
Lúcia, com seu olhar que parecia ler as profundezas da alma alheia, foi a primeira a sentir a mudança. A sala, antes acolhedora, tornava-se pequena demais. Não apenas para os corpos que a preenchiam, mas para a vastidão das almas que ali se expandiam. As pessoas vinham, não em busca de um milagre espetacular, mas porque, finalmente, podiam ser quem realmente eram.
Sem a necessidade de pagar por um lugar, sem a humilhação de pedir desculpas por sua existência. Raham podia ser divino em sua essência, mas a realidade terrena impunha seus custos. E, embora nunca tivessem exigido dízimos, dinheiro ou qualquer tipo de retribuição, a gratidão transbordava. Alguns ofereciam dinheiro, outros, o suor do trabalho, e muitos, o tempo precioso de suas vidas.
— Calum... se continuarmos assim, tudo vai desabar. A casa, eu, você.
A voz de Lúcia, firme como uma rocha, cortou o ar, carregada de uma verdade inegável.
Calum soltou um riso nervoso, um som rouco que mal escapou de sua garganta, o riso de quem reconhece a inevitabilidade de uma verdade que já sabia. Ela, Lúcia, sempre estava certa. Sempre.
— A gente vai precisar se organizar. Profissionalizar, talvez.
A sugestão pairou no ar, carregada de um peso que eles ainda não compreendiam totalmente.
— Profissionalizar?
Aletéia, com sua ironia afiada como sempre, lançou a pergunta, um sorriso debochado brincando em seus lábios.
— Vai rolar crachá? Uniforme? Farda da fé?
— Não. Só um CNPJ mesmo.
Calum respondeu, um sorriso cansado, mas determinado, surgindo em seu rosto.
E foi assim que, com o estômago revirando em uma mistura de apreensão e esperança, e um nó apertado na garganta, eles deram o passo impensável, abriram uma “igreja”. O nome, escolhido com a delicadeza de um sussurro, era “Orada Leb Raham”, que na antiga língua de Jesus significava.
"Encontro do Coração e do Amor".
Contrariando todas as suas expectativas, a burocracia brasileira se mostrou mais complacente do que imaginavam. Abrir uma igreja no Brasil era, surpreendentemente, mais fácil do que montar uma barraca de cachorro-quente gourmet.
CNPJ? Três cliques no site da Receita Federal. Estatuto? Um simples copiar, colar e adaptar. Endereço? A casa de Calum, claro, o berço de tudo. Nome fantasia? Desnecessário. No mais, era apenas juntar documentos, reconhecer firma, dar entrada no cartório e, num piscar de olhos, Raham tinha uma certidão de nascimento e um contador.
— Engraçado... o Deus que nasceu do amor agora tem inscrição municipal.
Calum murmurou, a caneta deslizando sobre os papéis, um misto de ironia e resignação em sua voz.
Mas não era por vaidade que faziam isso. Era por um cuidado profundo, uma responsabilidade que nascia com o crescimento do amor. Porque quando o amor se expande, ele exige estrutura. Precisa de extintor de incêndio, de banheiro com acessibilidade, de uma planta aprovada pelos bombeiros. E isso, eles sabiam, também era sagrado. Amor sem responsabilidade, sem alicerces, corria o risco de se transformar em seita, em algo distorcido e perigoso. Eles tinham essa consciência gravada na alma.
Com o novo espaço adaptado, o antigo quintal transformado em um galpão erguido com doações, o suor de voluntários, abraços e cimento, os encontros ganharam uma nova dimensão. Agora, mães com crianças no colo, jovens com olhos que brilhavam com uma nova luz, idosos com a Bíblia em uma mão e o Manifesto da Nova Fé na outra, todos se misturavam. Gente de todo tipo, de todas as crenças, de todas as histórias. E quando o amor começa a se tornar o assunto principal, a televisão, com sua sede insaciável por narrativas, inevitavelmente aparece.
Foi em um domingo escaldante, com o calor rachando o telhado, que a equipe da TV Cultura Vida Plena, um canal nacional dedicado à espiritualidade, chegou. Microfones, câmeras, uma repórter de beleza estonteante, quase inacreditável para alguém que falava de fé, invadiram o espaço.
— Calum, como você define a fé em Raham?
A pergunta da repórter pairou no ar, carregada de uma curiosidade genuína. Ele pensou por um instante, os olhos fixos em um ponto distante, como se buscasse a resposta nas profundezas de sua alma. Então, com a voz calma e serena, respondeu.
— É como café coado em pano limpo, forte, sem frescura, sem açúcar. Mas com sabor, com afeto.
A simplicidade da resposta, carregada de uma profundidade inesperada, silenciou a todos. A matéria foi ao ar em uma terça-feira e o impacto foi explosivo. Três dias depois, eles retornaram, mas desta vez, não estavam sozinhos. Foi então que o inferno, em sua forma mais intolerante, veio visitar.
Durante uma reunião, sem qualquer aviso, um grupo de religiosos irrompeu no local. Três homens engravatados, com semblantes carrancudos, uma mulher com ares de poucas amizades, todos empunhando Bíblias sublinhadas, dedos em riste e olhos em brasa, como se a própria fúria divina os impulsionasse.
— Isso aqui é heresia!
Gritou um deles, que parecia ter saído diretamente de um seminário dos anos 80, sua voz ecoando com um fanatismo assustador.
— Vocês estão pervertendo o evangelho! Estão blasfemando contra Deus Nosso Senhor!
Calum, com uma calma que beirava o sobrenatural, levantou-se. Respirou fundo, e o silêncio caiu sobre a sala como um manto pesado, sufocando qualquer som.
— Pervertendo o evangelho? Irmão, vocês venderam o evangelho em suaves parcelas e ainda botaram juros. A gente só está tentando devolvê-lo ao povo como ele nos foi dado, puro e sem cobrança.
A resposta de Calum, carregada de uma verdade incômoda, provocou uma risada nervosa na plateia, um som que oscilava entre o alívio e a tensão. Lúcia, com o cabelo preso e o rosto sereno, levantou-se, sua presença irradiando uma autoridade silenciosa.
— Deus não está preso na sua doutrina, meu senhor. O Espírito sopra onde quer. E hoje ele sopra aqui. Se quiser escutar, sente-se. Se quiser gritar, vai gritar sozinho.
As palavras de Lúcia, ditas com uma tranquilidade que desarmava, deixaram o religioso sem resposta. A mulher que acompanhava o grupo tentou retrucar, sua voz carregada de indignação.
— Isso aqui é confusão, não é culto!
Ela bradou, os olhos faiscando.
Foi Aletéia quem respondeu, com um sorrisinho debochado que desdenhava da hipocrisia alheia.
— Culto é onde as pessoas fingem que estão bem. Aqui é onde elas param de fingir e ficam porque estão se sentindo bem.
Aletéia, com sua sagacidade, transformou a acusação em um elogio.
A discussão foi acalorada, longa, e filmada ao vivo pela equipe da TV, que, para seu deleite, agradeceu o barraco inesperado. Quando os religiosos, derrotados pela própria intolerância, finalmente se retiraram, uma salva de palmas explodiu. Não era uma celebração de vitória, mas um grito de alívio. Era como se tivessem vencido um câncer da alma, o medo que os aprisionava. Mas o milagre, se é que se pode chamar assim, ainda estava por vir.
Entre os frequentadores da nova fé, figuras antes impensáveis começaram a surgir. Homens de semblante duro, com olhares pesados, tatuagens de caveiras discretamente escondidas sob as camisas.
Milicianos.
Aos poucos, com uma discrição surpreendente, eles começaram a aparecer nos encontros. Sem armas. Sem a arrogância que os definia. Alguns traziam as esposas, outros apenas o silêncio pesado de suas almas. E o que ouviram ali, as palavras de Raham, os desmontou, os desarmou de uma forma que nenhuma força policial jamais conseguiria. Um deles, após uma reunião, chamou Calum para um canto, a voz embargada, os olhos marejados.
— Pastor...
Ele começou, a palavra soando estranha em seus lábios. Calum sorriu, um sorriso gentil que desfez qualquer formalidade.
— Não sou pastor. Me chame de Calum ou amigo.
A simplicidade da resposta abriu uma fresta na armadura do homem.
— Tá. Irmão. Sei lá. Eu fiz muita merda na vida. Extorqui, bati, humilhei. Mas quando você fala... eu lembro da minha avó. E da última vez que vi ela sorrir, foi quando eu voltei da cadeia e prometi que ia mudar. Prometi. Mas não consegui cumprir. Até hoje.
A confissão, carregada de um peso existencial, revelava a dor de uma alma perdida, a luta interna de um homem que ansiava por redenção. Calum, vendo o arrependimento genuíno e o desespero de alguém que se sentia à deriva, estendeu a mão, não em julgamento, mas em compaixão.
— Raham é amor, meu amigo. Ele não julga, não condena, mas ele é justo. O primeiro passo é aceitar que erramos, e isso você já fez. Mas agora você tem que começar a mudar de vida, a consertar tudo o que você fez de errado. Somos livres para plantar, mas a colheita é obrigatória. Raham está sempre ao seu lado, mas somente você pode fazer isso. Mas lembre-se sempre que precisar conversar, desabafar ou só mesmo tomar um café, estamos aqui de braços abertos.
As palavras de Calum, carregadas de uma sabedoria ancestral, ofereceram um caminho, uma esperança. O homem chorou. De verdade. Lágrimas que lavavam a alma, que libertavam anos de culpa e dor. E no dia seguinte, três deles, com a coragem que só a fé em Raham poderia inspirar, foram até a delegacia civil.
Contaram tudo. Entregaram nomes, esquemas, esconderijos. Foi um vendaval que varreu a cidade. Em menos de duas semanas, a comunidade testemunhou a milícia perder o fôlego, não por balas, mas por arrependimento, por uma transformação que brotou do mais profundo do ser.
A fé em Raham, tão suave, tão humana, tão irônica em sua simplicidade, havia realizado o que nenhuma operação policial, por mais bem-sucedida que fosse, jamais conseguiria, quebrar o medo que paralisava uma comunidade inteira.
Calum olhou para Lúcia e Aletéia naquela noite. Sentados no chão, entre travessas de pão caseiro e canecas de café fumegante, cercados por uma multidão de pessoas que riam, choravam, se abraçavam, sorriam, ele sentiu a magnitude do que haviam construído.
— Isso ainda é fé?
Ele perguntou, num sussurro, a voz embargada pela emoção. Lúcia respondeu com os olhos úmidos, um brilho de milagre em seu olhar.
— Isso é milagre, Calum. Mas não aquele de fazer cego enxergar. É o de fazer quem tem olhos... finalmente querer ver.
E naquelas palavras, a essência de Raham, do amor e da transformação, se revelava em toda a sua glória.