A carta tinha chegado há dias, um mistério em papel, mas
ninguém sabia se o homem, viria mesmo. A curiosidade era um fogo miúdo,
crepitando nas almas da comunidade. Um pastor com trinta anos de púlpito,
querendo apenas... escutar? Em silêncio? Isso, por si só, já era quase um
milagre, um paradoxo que desafiava a lógica do mundo religioso.
E então, num sábado nublado, ele apareceu. Chegou sozinho,
de carro simples, um modelo discreto que não chamava atenção, com uma pasta de
couro gasta debaixo do braço, testemunha silenciosa de anos de serviço. Usava
terno bege, camisa branca, e um par de olhos que misturavam humildade com uma
ponta de suspeita, como se ainda estivesse avaliando o terreno. Chamava-se
Pastor Benjamim. Ninguém sabia se era o nome verdadeiro, mas ninguém perguntou.
Em Raham, a verdade se revelava em gestos, não em certidões.
Calum o recebeu na varanda da casa-templo, o coração batendo
um ritmo diferente. Sentaram-se. Tomaram café. E o silêncio, esse velho
conhecido dos dois, foi o primeiro a falar, um diálogo mudo que transcendia as
palavras. Benjamim olhou ao redor, absorvendo a atmosfera. A casa viva,
pulsando com a energia das almas que a habitavam. As fitas coloridas tremulando
ao vento, como orações visíveis. As crianças correndo, a inocência em sua forma
mais pura. As mãos entrelaçadas, um símbolo de união. A simplicidade como
método e profecia, a prova de que o sagrado reside no ordinário. Enfim o pastor
quebra o silêncio.
— Durante anos, ensinei que Deus era justo, mas nunca o vi
ser gentil.
Disse ele, enfim, a voz carregada de uma melancolia que
denunciava anos de desilusão. Calum, com a voz já recuperada, mais firme que
nunca, respondeu, a sabedoria em cada sílaba.
— E agora?
— Agora... quero aprender a escutar.
A confissão de Benjamim era um grito de rendição, um desejo
profundo de desaprender para reaprender. Eles não sabiam se ele estava ali como
irmão... ou espião. Lúcia observava de longe, seu instinto aguçado como o de
uma loba protegendo sua alcateia. Aletéia, com sua desconfiança inerente, não
confiava.
Mas Raham nunca foi religião de portas fechadas, de corações
blindados. Então, deixaram-no ficar. E ele ficou. Participou das reuniões.
Nunca falou. Só ouvia. Um dia lavou a louça, um gesto de humildade que desarmou
muitos. Noutro, carregou cadeiras, um pastor de terno carregando cadeiras, a
imagem quebrava paradigmas. Era estranho, sim, mas ali, nada mais era estranho.
Conversou com travestis, com ex-prostitutas, com mendigos, com seres humanos
reais, despidos de rótulos, buscando apenas acolhimento.
Enquanto isso, algo crescia. Não só a comunidade, que se
expandia como um rio que transborda suas margens. Não só o canal no YouTube,
agora com dezenas de milhares de seguidores e vídeos legendados em espanhol,
francês, árabe, a mensagem de Raham alcançando os confins do mundo. Mas dentro
de Lúcia, um outro mundo, um universo em miniatura, começava a bater, a pulsar
com vida.
O bebê. As náuseas vieram como pequenos avisos, sussurros do
milagre que se anunciava. Depois, os desejos malucos, torresmo com manga,
cuscuz com leite condensado, uma sinfonia de sabores inusitados. Calum ria, um
riso que era pura alegria. Ela ria também, mas no fundo... sentia medo.
“E se eu não der conta? E se eu me tornar tudo o que tentei
fugir? E se... Deus me tirar isso também?”
As perguntas ecoavam em sua mente, fantasmas de um passado
que insistia em assombrá-la. Calum, deitado ao lado dela numa madrugada quente,
segurou sua mão, a palma macia contra a dela, e respondeu baixinho, a voz
carregada de uma ternura que acalmava a alma.
— Raham não dá provas. Ele dá presentes e nós fomos
abençoados, Lúcia. Chega de medo, chega de culpa. Raham é só amor.
Ela chorou, lágrimas que lavavam a alma, e dormiu, com a mão
dele sobre o ventre, um escudo protetor contra as incertezas do mundo.
E então, algo começou a inquietar Calum de novo. Um sopro
antigo, uma febre que vem quando as palavras não cabem mais dentro da pele,
quando a alma transborda e precisa se expressar. Ele levantava no meio da
noite, acendia o abajur, a luz tênue iluminando seus pensamentos, e escrevia.
No caderno. No bloco. No verso das contas.
Escrevia sobre o que estavam vivendo. Sobre os encontros. As
dores. As dúvidas. Sobre o dia em que perdeu a voz. Sobre o batismo de Clara.
Sobre a carta do pastor. Sobre o filho que ainda era um feixe de células e luz,
um futuro que se anunciava.
Um dia, Benjamim entrou na sala e viu Calum escrevendo, a
caneta deslizando sobre o papel, a alma se derramando em palavras.
— Vai ser um livro?
Calum sorriu, um sorriso que misturava cansaço e esperança.
— Vai ser um sopre de ar puro. Para quem sufoca.
Benjamim se ofereceu para ajudar a organizar. Tinha
experiência com revisão, edição, diagramação. Calum hesitou, a desconfiança
ainda presente, mas aceitou, sentindo que aquele era o caminho. E assim nasceu
o esboço do livro que começava a circular impresso em poucas cópias
mimeografadas, um tesouro para poucos, mas uma promessa para muitos.
“Raham: Um Deus Que Abraça”.
Nas primeiras páginas, Calum escrevia, a alma em cada
palavra.
“Este não é um livro de respostas. É um espelho. Se você
se enxergar nele, bem-vindo. Você não está mais só.”
No final daquele mês, Lúcia sentiu o bebê chutar pela
primeira vez, um movimento suave que a encheu de alegria. Sorriu. Depois
vomitou. Depois riu de novo, a ironia da vida se manifestando em sua plenitude.
— Raham sabe ser dramático.
Disse, enxugando a testa, a voz carregada de um humor que só
a maternidade pode trazer. E Aletéia, observando tudo, murmurou, um sorriso
maroto nos lábios.
— Esse menino vai nascer com nome e causa.
— E se for menina?
Perguntou Calum, a curiosidade evidente.
— Vai nascer com duas causas, então.
A resposta de Aletéia ecoou com a sagacidade de sempre. A
comunidade crescia, e com ela, os inimigos. Pastores começavam a pregar “contra
Raham” como se fosse entidade pagã, suas vozes carregadas de ódio e
preconceito. Vídeos circulavam com trechos distorcidos do batismo, a verdade
sendo manipulada para servir a interesses escusos.
Mas agora, pela primeira vez, Calum não tinha medo. Porque
agora... tudo estava escrito. E uma vez escrito, Raham não poderia mais ser
apagado. A verdade, como a água, sempre encontra seu caminho.
Numa tarde, o Pastor Benjamim sentou ao lado de Calum, o
olhar fixo em seus olhos, a alma em cada palavra.
— Sabe, Calum, vim com uma missão aqui. Não vim à toa,
pessoas poderosas me enviaram. Quando cheguei, estava certo do que encontraria.
Mais uma seita pregando apostasias, de mentiras. Mas o que vi aqui foi
acolhimento sincero, amor ao próximo na prática, as palavras de Jesus postas em
ação. Me envergonho do motivo que me trouxe aqui, mas fico muito feliz por
Raham ter permitido que o conhecesse.
A confissão de Benjamim era um testemunho da força
transformadora de Raham, da capacidade do amor de quebrar barreiras e
preconceitos. Pastor Benjamim levantou e entregou um envelope lacrado a Calum.
Nele, um bilhete simples, mas carregado de um peso imenso.
“Aqui estão nomes. Informações. Pessoas que estão se
organizando para nos calar à força. Não sou mais parte deles. Mas eles ainda me
escutam.”
Calum leu. Fechou o envelope. Olhou para o céu, um sorriso
desafiador em seus lábios.
— Então tá. Se querem guerra... a gente vai continuar entregando
amor.
A resposta de Calum era um grito de resistência, uma
declaração de que o amor, em sua forma mais pura, é a arma mais poderosa contra
o ódio. E assim, Raham continuava a se espalhar, uma palavra, um abraço, um
sorriso de cada vez, transformando o mundo, uma alma por vez.