Apartamento seguro, Zona Sul de SĂŁo Paulo, 23:17
O apartamento era pequeno, funcional e completamente anônimo. Paredes brancas sem quadros, móveis básicos sem personalidade, cortinas cinzas que bloqueavam qualquer visão externa. Um não-lugar, como Bianca chamava. Um espaço sem identidade, sem história, sem rastros digitais. O tipo de lugar que não existia em nenhum banco de dados.
Bianca conectou o laptop a três monitores diferentes. Em um deles, códigos de programação desfilavam em cascata. No segundo, um mapa da cidade com pontos vermelhos pulsantes. No terceiro, rostos. Dezenas de mulheres. Algumas sorridentes em fotos de redes sociais. Outras devastadas em capturas de tela de reportagens policiais. Algumas marcadas com pequenas cruzes digitais. Mortas.
— Esse é o padrão, explicou para Amaral e Carla, que observavam em silêncio. Não são apenas ataques aleatórios. Há uma metodologia. Algo tipo uma curadoria.
Seus dedos deslizaram pelo teclado, reorganizando as imagens. As mulheres começaram a se agrupar em categorias.
— Grupo um: jornalistas, advogadas, ativistas. Mulheres que desafiam estruturas de poder. Grupo dois: profissionais em ascensão. Médicas, executivas, acadêmicas. Mulheres ocupando espaços tradicionalmente masculinos. Grupo três: influenciadoras, atletas, figuras públicas. Mulheres com plataforma, com voz.
— Qual é o denominador comum? — Perguntou Amaral, estudando os padrões.
— Ameaça, — respondeu Bianca, sem hesitar. — Todas representam algum tipo de ameaça ao status quo. Todas desafiam as estruturas de algum poder estabelecidas.
Carla se aproximou do monitor, analisando os cĂłdigos.
— Isso Ă© parte do algoritmo que encontrei no computador de JĂşlia, — disse, apontando para uma sequĂŞncia especĂfica. Mas está evoluindo, ficando mais complexo. Como se tivesse aprendido.
— Porque aprendeu, Ăłbvio! — Confirmou Bianca. — Cada vĂtima Ă© um conjunto de dados. Cada reação, cada colapso emocional, cada tentativa de defesa... tudo alimenta o sistema. É um ciclo de feedback contĂnuo.
Amaral sentiu um arrepio que percorreu a espinha como uma ameaça silenciosa. NĂŁo estavam apenas perseguindo um criminoso. Estavam enfrentando algo mais insidioso. Um sistema que aprendia, que se adaptava, que evoluĂa.
— Como você conseguiu esses dados, afinal, garota?
Bianca trocou um olhar rápido com Carla.
— Você não quer saber, imagino. Digamos apenas que tenho meus métodos.
— Métodos ilegais, só pode!
— Métodos necessários, — corrigiu Bianca. — Quando o sistema está comprometido, jogar pelas regras é garantia de derrota.
O silĂŞncio que se seguiu era quase insuportável, carregado de coisas nĂŁo ditas. Ficou pesado. Amaral encarou as duas mulheres, consciente do abismo Ă©tico que se abria Ă sua frente. Vinte e trĂŞs anos de polĂcia. Vinte e trĂŞs anos seguindo protocolos, respeitando limites, acreditando no sistema. E agora...
— Precisamos de mais, isso me parece pouco. Não apenas padrões e teorias. Precisamos de nomes. De provas concretas.
— Estamos chegando lá, — respondeu Carla, apontando para uma sequência de códigos. — Veja isso. É uma assinatura digital. Única. Como uma impressão digital eletrônica. E eu já vi isso antes.
— Onde?
— Em um caso antigo. Um grupo chamado Prometheus. Hack ativistas com uma filosofia distorcida sobre “evolução digital forçada”. A ideia deles era que a humanidade precisava desenvolver resistência psicológica à manipulação digital, e a única forma era... bem, expor pessoas a traumas digitais extremos.
— Sobrevivência do mais adaptado, — murmurou Bianca. — Darwinismo digital, vejam só.
— Exatamente. Os fracos sucumbem, os fortes se adaptam e evoluem.
Amaral balançou a cabeça, enojado.
— E quem decide quem é fraco ou forte? Quem escolhe quem merece sobreviver?
— Eles decidem, — respondeu Carla. — Ou melhor, o algoritmo decide. Baseado em critĂ©rios programados por alguĂ©m com uma visĂŁo muito especĂfica de como o mundo deveria ser.
Bianca voltou ao teclado, abrindo uma nova janela. Um rosto apareceu na tela. Homem, meia-idade, cabelos grisalhos nas têmporas, terno impecável, sorriso confiante de quem nunca conheceu consequências.
— Dr. Eduardo Salles. CirurgiĂŁo plástico renomado. Dono de clĂnicas de estĂ©tica, laboratĂłrios farmacĂŞuticos. Filantropo. Membro de conselhos administrativos. Doador de campanhas polĂticas.
— E o que ele tem a ver com isso? — perguntou Amaral.
— Tudo, tudinho! — Respondeu Bianca. — Ele é o financiador. O cliente principal. O arquiteto intelectual por trás do Projeto Cassandra.
— Cassandra?
— A profetisa que ninguém acreditava, — explicou Carla. Amaldiçoada por Apolo a sempre dizer a verdade e nunca ser acreditada.
— Irônico, não? — comentou Bianca amargamente. — Mulheres dizendo a verdade e sendo sistematicamente desacreditadas. A metáfora perfeita para o que estamos enfrentando.
Amaral estudou o rosto de Salles. Havia algo familiar nele. Algo que coçava no fundo de sua memória.
— Já o vi antes, em eventos beneficentes. Sempre cercado de polĂticos, juĂzes, promotores.
— Exatamente! Ele cultiva conexões. Constrói redes de influência. Garante que seus interesses sejam protegidos.
— E quais são seus interesses?
— Poder, — respondeu Bianca simplesmente. — Controle. Manutenção de uma ordem social que o beneficia.
— E para isso ele precisa destruir mulheres com deepfakes?
— NĂŁo Ă© apenas sobre destruir indivĂduos, — explicou Carla. — É sobre criar um efeito cascata. Um clima de medo. Um aviso para todas as outras: 'Isso pode acontecer com vocĂŞ tambĂ©m.'
— Intimidação em escala industrial, — completou Bianca. — Tecnologicamente otimizada.
Amaral passou a mão pelo rosto cansado. A magnitude do que enfrentavam começava a se revelar. Não era apenas um criminoso. Era uma rede. Uma ideologia. Um sistema.
— Como provamos isso? — perguntou. — Como conectamos Salles diretamente aos crimes?
— Precisamos de alguĂ©m por dentro, — respondeu Bianca. — AlguĂ©m que tenha acesso ao cĂrculo interno.
— ImpossĂvel, — disse Amaral. — Eles sĂŁo paranĂłicos com segurança. Camadas sobre camadas de proteção.
Um sorriso lento se formou nos lábios de Bianca. Não era um sorriso alegre. Era o sorriso de alguém que já tinha calculado todos os riscos e decidido que valia a pena.
— NĂŁo Ă© impossĂvel, veja bem, Ă© apenas perigoso. E muito, eu sei.
Abriu outra janela no computador. Uma foto sua, manipulada digitalmente. Cabelo diferente, maquiagem sutil alterando traços faciais, roupas que nunca usaria.
— Conheçam Beatriz Mendonça, jornalista freelancer. Especializada em perfis de empresários bem-sucedidos. Recém-chegada a São Paulo. Ambiciosa. Impressionável. E completamente fascinada pelo trabalho filantrópico do Dr. Eduardo Salles.
Amaral e Carla trocaram olhares alarmados.
— Você não pode estar pensando em...
— Já estou e pensei, sim. — Interrompeu Bianca. — Na verdade, já comecei. Tenho uma entrevista marcada com ele na próxima semana. Para um perfil na revista Empresários do Futuro.
— Isso Ă© suicĂdio, protestou Amaral. Se eles descobrirem quem vocĂŞ Ă©...
— Se descobrirem, já estarei morta de qualquer forma, respondeu Bianca calmamente. Eles sabem que estou investigando. É apenas questão de tempo até me encontrarem. Pelo menos assim, sou em quem escolhe o campo de batalha.
O silêncio que se seguiu era quase sepulcral, carregado de coisas não ditas. Amaral queria protestar mais, queria impedir aquela loucura. Mas sabia que não tinha esse direito. Não quando Bianca já tinha perdido tanto. Não quando ela estava disposta a arriscar tudo por justiça.
— O que precisamos fazer. “Dona Beatriz”?
— VocĂŞs continuam investigando por fora, — respondeu Bianca, com um leve sorriso pela ironia do investigador. — Rastreiem o dinheiro. Encontrem o programador, esse tal de Architect. E mais importante: identifiquem todas as vĂtimas. Vivas e mortas. Construam uma rede de testemunhas dispostas a falar quando chegar a hora.
— E você?
— Eu vou fazer o que faço de melhor, — respondeu, fechando o laptop. — Vou contar uma história. Uma história tão convincente que Eduardo Salles não resistirá à tentação de me mostrar quem realmente é.