Chácara nos arredores de Jundiaí, 05:17 da manhã
Amaral observava o nascer do sol através da janela empoeirada da pequena casa rural. Uma cena bucólica, incomum ao homem da cidade grande, acostumado ao caos diário da metrópole. Ao seu lado, Clara dormia inquieta no sofá desgastado, finalmente sucumbindo ao esgotamento após horas de uma tensa e maçante vigilância.
A chácara pertencia a um tio falecido de Amaral. Um lugar esquecido nos registros oficiais, herdado mas nunca formalmente transferido, nem tampouco visitado pelo herdeiro. Um ponto cego burocrático que agora servia como refúgio temporário.
Seu telefone seguro vibrou. Mensagem de Carla através do canal de emergência: “Posição comprometida durante a noite. Realocamos. Seguras por enquanto. Ponto Delta cancelado. Aguardar instruções para Ponto Echo”.
Amaral digitou rapidamente:
“Confirmado. Mantendo posição atual. Recursos limitados, mas seguros”.
A resposta veio quase imediatamente:
“Preparando distribuição de emergência. 48 horas. Estejam prontos”.
Amaral guardou o telefone, processando a implicação. Distribuição de emergência significava liberação completa de todos os arquivos. Todas as evidências. Todos os nomes. Um tsunami de informação impossível de conter.
Era o plano de último recurso. O botão nuclear da operação.
Clara acordou, piscando confusa por um momento antes que a realidade de sua situação retornasse.
— Alguma notícia, Amaral? — Sua voz rouca entregava seu estado anímico.
— Carla e Bianca tiveram que se mover. Estão preparando a distribuição de emergência.
Clara franziu a testa e balançou a cabeça, absorvendo a informação. — Quanto tempo temos?
— Dois dias, quando muito.
— E depois disso, que fazemos?
— Depois, o mundo muda, amiga. Assim espero
Clara levantou-se, passando as mãos pelo cabelo desgrenhado.
— Precisamos de um plano para quando tudo explodir. Um lugar para estarmos. Uma plataforma para falarmos. Não vai ser fácil, você sabe, né?
— Estou trabalhando nisso, desde que vi que a situação ia ficar difícil para nós. Tenho alguns contatos que ainda confiam em mim. Pessoas fora do sistema. Jornalistas internacionais. ONGs.
— E você, ainda confia neles, cara?
Amaral não respondeu imediatamente. A pergunta pairou entre eles, pesada com todas as suas implicações.
— Clara, tenho que confiar, é o que nos resta. Nem todo mundo deve ser tão filho da puta, assim.
— E isso será suficiente?
— Terá que ser, terá que ser...
Escritório de Eduardo Salles, 08:30
— Nada ainda? — A voz de Salles era controlada, mas a tensão era demasiadamente visível.
— Estamos usando todos os recursos, — respondeu Pimentel. — Reconhecimento facial em todas as câmeras de segurança. Monitoramento de todas as comunicações possíveis. Bloqueios em todas as principais saídas da cidade e até do estado.
— E ainda assim, quatro civis conseguiram desaparecer completamente, quase sem rastro hein? — Observou Salles, a ironia cortante em sua voz.
— Não são civis comuns, agora já sabemos. — Lembrou o Juiz Menezes, sentado desconfortavelmente em uma poltrona de couro. — Temos um detetive com décadas de experiência. Uma especialista em segurança digital. Uma jornalista treinada em zonas de conflito. E uma acadêmica com conexões internacionais.
— Precisamente o tipo de pessoas que deveríamos ter eliminado muito antes, — comentou o Promotor Dantas, servindo-se de mais café. — Muito arriscadas. Muito capazes. Nesta, cagamos.
— Agora é fácil ver que deu errado! — Respondeu Salles secamente. — A questão agora é: o que fazemos?
— Continuamos a busca, oras, é o que temos que fazer. — disse Pimentel. — Eles não podem permanecer escondidos para sempre. Precisarão de recursos. Comunicação. Assim que cometerem um erro, a gente os pega.
— E se não cometerem esse erro? — Perguntou Menezes. — E se já tiverem enviado tudo para a imprensa, para o escambau, para a puta que o pariu?
— A imprensa pode ser controlada, você sabe melhor que ninguém. — Respondeu Dantas com confiança. — Temos influência suficiente para suprimir qualquer história localmente e praticamente em todo o país.
— E internacionalmente, porra? — Insistiu Menezes. — ONGs? Redes sociais? Plataformas independentes, Coletivos, essas merdas todas?
Um silêncio desconfortável seguiu-se à pergunta.
— Precisamos de uma estratégia de contenção alternativa, — disse Salles, olhar perdido no nada. — Assumindo o pior cenário, aquele onde todos os arquivos serão liberados publicamente.
— Negação plausível, — sugeriu Dantas. — Alegações de manipulação digital. Deepfakes, ironicamente somos vítima disso.
— Contra evidência corroborativa de múltiplas fontes, esqueceu? — Questionou Menezes. — Depoimentos diretos das vítimas? Registros financeiros verificáveis?
— Então mudamos a narrativa, simples assim. — Disse Pimentel. — Transformamos isso em uma conspiração política. Uma tentativa de desestabilizar instituições. Um ataque coordenado contra figuras públicas respeitáveis.
Salles concordou, não tão convicto. — Possível, possível... mas insuficiente sozinho.
— O que sugere, então, cara, tem ideia melhor? — Perguntou Dantas.
— Uma combinação de abordagens, — Respondeu Salles. — Negação. Contra-narrativa. Ataques à credibilidade das fontes. E... Fez uma pausa significativa. — Sacrifícios estratégicos.
— Sacrifícios, como assim? — Gritou Menezes, tensionando-se visivelmente.
— Precisaremos oferecer algo ao público, — explicou Salles. — Alguém para culpar. Alguém para punir. Alguém para satisfazer o desejo de justiça enquanto protegemos o núcleo da operação.
— Quem, quem seria essa madre de Calcutá a se entregar e eximir nossos pecados? — Perguntou Pimentel, temendo a resposta.
— João Elias, obviamente, não te preocupa, não seria um de nós. — Respondeu Salles. — Já está morto. O gênio tecnológico perturbado que agiu sozinho. O manipulador digital que enganou até mesmo seus associados. O verdadeiro vilão por trás de tudo.
— E Dr. Campos, ele é quase um de nós. — continuou. — Um psiquiatra que abusou da confiança de pacientes vulneráveis. Que manipulou tratamentos para seus próprios fins distorcidos.
— Campos não vai aceitar isso facilmente, observou Dantas.
— Campos não terá escolha, não daremos essa possibilidade a ele. — Respondeu Salles friamente. — Assim como João, ele se tornou dispensável, vai-se um dedinho, ficamos com os anéis.
A implicação ia além do que já tinham feito até então, e isso tornou o clima na sala quase sufocante.
— E nós, pelo amor de Deus, e nós? — Questionou Menezes, visivelmente abalado, voz trêmula. — Também somos dispensáveis?
Salles sorriu. Um sorriso cercado de entrelinhas de um canto a outro da boca. — Todos somos dispensáveis, Roberto. A questão é: somos mais valiosos vivos ou mortos neste momento particular?
Ninguém respondeu. Ninguém precisava. Suas caras diziam tudo. E mais um pouco.
— Continuem a busca, vamos nos mexer! — Ordenou Salles, encerrando efetivamente a reunião. — Encontrem esses filhos da puta antes que seja tarde demais. E preparem os sacrifícios necessários.
Quando todos saíram, Salles permaneceu sozinho em seu escritório. Contemplando o império que havia construído tão meticulosamente. O poder que havia acumulado tão cuidadosamente. Tudo ameaçado por um grupo de párias desesperados.
Seu telefone tocou. Número privado.
— Sim? — Atendeu cautelosamente.
— Eduardo. — A voz de sua esposa, Cristina. — Precisamos conversar.
— Agora não é um bom momento, querida, — respondeu, mantendo o tom casual. — Estou no meio de uma situação complicada.
— Eu sei exatamente em que situação você está, respondeu Cristina, — sua voz surpreendentemente firme. — E é sobre isso que precisamos conversar.
Salles sentiu um arrepio percorrer sua espinha.
— O que quer dizer?
— Quero dizer que sei sobre o Projeto Cassandra. Sobre os deepfakes. Sobre as mulheres destruídas. Sobre João Elias. Sobre tudo, meu querido.
Salles congelou, a mente processando rapidamente as implicações.
— Como... como assim?
— Como sei? — Cristina riu suavemente. — Eduardo, estamos casados há vinte anos. Você realmente acha que não aprendi a prestar atenção? A conectar pontos? A reconhecer padrões?
— O que você quer, afinal? Perguntou Salles, a voz controlada apesar do pânico crescente.
— Quero negociar, querido. — Respondeu Cristina simplesmente. — Os termos da minha cooperação. Ou da minha, digamos... não-cooperação.
— Está me chantageando?
— Estou oferecendo uma saída, não entenda isso como chantagem. — Corrigiu Cristina. — Uma saída para mim, para nossa filha. E talvez, se você for inteligente, para você também.
— Que tipo de saída, posso saber?
— O tipo que envolve imunidade. Proteção. Um novo começo.
— Em troca de?
— Evidência, — respondeu Cristina. — Testemunho. Nomes.
Salles sentiu o mundo desmoronando ao seu redor. Sua própria esposa. Sua parceira de duas décadas. A pessoa que deveria ser sua aliada mais confiável.
— Por quê, porra disso, agora? Perguntou finalmente. —Por que assim?
— Porque finalmente tenho uma chance real, meu bem — respondeu Cristina. — Porque finalmente há outras pessoas dispostas a enfrentar você. A enfrentar todo o sistema que você construiu.
— Bianca Oliveira, concluiu Salles. — Você a ajudou.
— Ajudei, sim. — Confirmou Cristina sem hesitação. — Dei a ela tudo. Os arquivos. Os registros. As gravações. Tudo que coletei ao longo dos anos.
— Você não tem ideia do que fez, sua víbora! — Disse Salles, a raiva finalmente penetrando sua compostura cuidadosamente mantida.
— Tenho exatamente ideia do que fiz, sim. — Respondeu Cristina calmamente. — Escolhi um lado, Eduardo. O lado certo da história.
— E acha que vai sobreviver a essa sua merda de escolha?
— Com as precauções adequadas, sim. O mesmo “botão do apocalipse” que eles têm, eu tenho. Se algo acontecer comigo, ou com Sofia, tudo vai a público imediatamente. Cada detalhe sórdido. Cada crime. Cada abuso de poder.
Salles ficou em silêncio, avaliando suas opções. Que eram, percebeu com crescente desespero, extremamente limitadas.
— O que propõe, exatamente?
— Apenas um encontro. Você, eu, e um representante federal confiável. Termos de imunidade em troca de cooperação completa.
— Quando?
— Hoje, respondeu Cristina. — Às 15h. Enviarei o local por mensagem.
— E se eu recusar?
— Então às 16h todos os arquivos serão liberados publicamente, e você enfrentará não apenas a justiça legal, mas a fúria pública sem qualquer proteção.
A linha ficou muda. Salles encarou o telefone em sua mão, uma raiva gelada crescendo em seu peito. Vontade de jogar o aparelho longe, e se possível na cara da agora, traíra.
Traído. Por sua própria esposa. Fosse um amante, não seria tão dolorido.
Pegou outro telefone. Um dispositivo seguro, usado apenas para comunicações extremamente sensíveis. Discou um número memorizado, nunca salvo.
— Precisamos implementar o Protocolo Omega, — disse quando a linha conectou. — Imediatamente, agora!
— Confirmando, — respondeu a voz do outro lado. — Protocolo Omega. Alvo?
Salles hesitou apenas por um segundo antes de responder:
— Cristina Salles.